O grito indígena à
espera do julgamento do século: ‘Sem demarcação não há democracia’
Povos
indígenas de todo o Brasil rumam a Brasília para, a partir desta segunda-feira,
24 de abril, gritar que “sem demarcação não há democracia”. Esse é o slogan da
19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), o maior encontro anual das
organizações e povos indígenas do país, realizado desde 2004. “O futuro indígena
é hoje”, vão cobrar os povos indígenas. Para isso, porém, é preciso desatar um
nó: o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do chamado “marco
temporal”.
Trata-se
de uma tese, defendida por exploradores de monoculturas como a soja, criadores
de gado, garimpeiros, madeireiros, desmatadores e uma boa parte do Exército,
segundo a qual só podem ser demarcadas as terras que os indígenas ocupavam
quando a Constituição foi promulgada, em 5 de outubro de 1988. Essa tese
inviabiliza a reivindicação de territórios dos quais os povos originários já
haviam sido expulsos anos ou décadas antes de a Carta entrar em vigor. A
votação estava empatada em 1 a 1 quando o ministro Alexandre de Moraes pediu
vista – termo que, no linguajar jurídico, significa suspender o julgamento por
tempo indeterminado para análise mais aprofundada dos ministros.
Uma
semana antes do início do ATL, a presidenta do STF, a ministra Rosa Weber,
anunciou que a votação do marco temporal será retomada a partir de 7 de junho.
Em setembro passado, ela já havia prometido a líderes indígenas que retomaria a
votação ainda em sua gestão na presidência da Corte, que se encerra em outubro
deste ano.
A
retomada do julgamento do marco temporal causa um misto de expectativa e
apreensão entre os povos indígenas. Trata-se do “julgamento do século”, segundo
duas lideranças da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ouvidas por
SUMAÚMA – Mauricio Terena, advogado indígena e coordenador jurídico, e Dinaman
Tuxá, coordenador-executivo.
“É
de suma importância que nós tenhamos esse julgamento ainda neste ano e que nós
consigamos de uma vez por todas afastar essa tese tão danosa para todos os
povos indígenas. Estamos falando de terras e territórios milenares, de direitos
originários, que antecedem a formação do Estado brasileiro”, diz Dinaman.
Para
Mauricio Terena, o marco temporal impacta diretamente as crises do clima e da
biodiversidade. “O marco temporal não vai afetar só os povos indígenas
brasileiros. Porque, quando a gente está falando de terras indígenas, está
falando de territórios que possuem uma biodiversidade muito mais preservada.
Esse julgamento tem implicações na emergência climática”, afirma o advogado
indígena. “Se a demarcação ficar prejudicada caso o Supremo reconheça a tese do
marco temporal, vai causar um processo de etnocídio imensurável. Porque, quando
a gente fala de territórios indígenas, a gente está falando de identidade
cultural, de povos que precisam de seus territórios para exercerem seus
direitos culturais, seus usos e costumes, sua saúde. Para além dos nossos
territórios estarem em disputa, a nossa existência também está.”
No
ATL deste ano, os povos indígenas também vão decretar um estado de “emergência
climática” para denunciar violações de direitos ocasionadas pelo aquecimento
global. Segundo a Apib, um cruzamento de dados realizado em 2022, em parceria
com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), mostra que 29% do
território ao redor das terras indígenas (TIs) no Brasil está desmatado. Dentro
das TIs, porém, o desmatamento é de apenas 2%. “Não existe solução para a crise
climática sem os povos indígenas e a demarcação plena das nossas terras”,
afirma Dinaman.
·
O
extermínio praticado por ‘bugreiros’
O
caso que está em análise no STF discute a extensão da Terra Indígena Ibirama-La
Klãnõ, no Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina, lar dos indígenas Guarani,
Guarani Mbya, Guarani Ñandeva, Kaingang e Xokleng. Esse debate chegou aos
tribunais em 2009, quando a Fundação do Meio Ambiente (Fatma), atual Instituto
do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), alegou ser a verdadeira dona de 8
hectares dentro da terra indígena, de mais de 37 mil hectares, e pediu a
reintegração de posse da área. A burocracia catarinense venceu a disputa na
primeira e na segunda instâncias, e o processo chegou ao Supremo após um
recurso da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O relator sorteado
para cuidar do caso, o ministro Edson Fachin, admitiu o recurso da Funai e
afirmou ser necessário definir o “estatuto jurídico-constitucional das relações
de posse das áreas de tradicional ocupação indígena, nos termos do artigo 231
do texto Constitucional”.
O
artigo citado pelo ministro Fachin diz o seguinte: “São reconhecidos aos índios
sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Os constituintes
se aprofundaram na definição sobre o que são terras indígenas nos parágrafos 2 (“As
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e
dos lagos nelas existentes”) e 4 (“As terras de que trata este artigo são
inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”).
Em
outras palavras, Fachin disse que havia chegado a hora de o Supremo decidir se
o direito dos indígenas a seus territórios era anterior à Constituição de 1988
e até mesmo à formação do que viria a se chamar Brasil. O julgamento do marco
temporal move a luta indígena nos últimos anos porque não se trata de um caso
isolado em Santa Catarina. O voto final dos ministros terá repercussão geral:
vai afetar o futuro das demarcações de todas as terras indígenas no Brasil.
Os
Xokleng foram quase exterminados, durante o século 20, por colonos italianos
que ganharam do governo brasileiro terras “despovoadas” em Santa Catarina. Eram
caçados por “bugreiros”, como eram chamados os assassinos contratados pelos
colonos para entrar na mata e caçar e dizimar seus moradores originais. Mas a
ideia de um marco temporal é bem anterior à briga judicial do governo
catarinense com a Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ.
·
Os
senhores naturais da terra
A
ideia de que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a
sua posse permanente”, expressa na Constituição, se apoia em uma tese jurídica
já consolidada, chamada de “teoria do indigenato”. Segundo essa teoria, “os
direitos dos povos indígenas são anteriores até à própria concepção da ideia de
Estado Nacional”, explica Mauricio Terena. “Essa tese remonta ao período
colonial, onde as leis que foram editadas respeitaram a posse dos povos
originários como senhores naturais de suas terras”, escreveu em 2020 o advogado
indígena Eloy Terena, hoje secretário-executivo do Ministério dos Povos
Indígenas.
Existe,
no entanto, outra visão que se contrapõe à teoria do direito originário. Essa
tese é chamada de “teoria do fato indígena”, na qual se apoia o conceito do
marco temporal: a ideia de que só podem ser consideradas terras indígenas as
que estavam ocupadas pelos povos brasileiros originários quando a atual
Constituição entrou em vigor, em 1988.
A
tese do marco temporal ganhou notoriedade em 2009, quando do julgamento, pelo
Supremo, da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, lar dos povos
Macuxi, Taurepang, Patamona, Ingarikó e Wapichana, em Roraima. “A expressão é
anterior até mesmo à Constituição de 1988, mas se popularizou no julgamento de
Raposa Serra do Sol”, explica Deborah Duprat, que à época chefiava a 6.ª Câmara
de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, responsável pela defesa
dos direitos de povos indígenas, quilombolas, comunidades extrativistas,
comunidades ribeirinhas e ciganos. Aposentada, atualmente ela é advogada.
“O
primeiro grande julgamento do Supremo após [a promulgação da Constituição de]
1988 é o caso Raposa Serra do Sol. Ele já tinha vários componentes que só se
intensificaram no período posterior, como a concepção de que é preciso ‘gente’
para ocupar a Amazônia, ou seja, que considera os indígenas não capazes de
defender aquelas fronteiras”, afirma Deborah. “[Houve] Uma presença militar
muito forte, digamos assim, no Supremo, no sentido de ter cautela na demarcação
de terras indígenas na Amazônia. Foi um julgamento que acabou atrapalhando
muito a questão indígena, muito embora ele tenha sido extremamente favorável à
área indígena Raposa Serra do Sol.”
Relator
do caso Raposa Serra do Sol no STF, o então ministro Carlos Ayres Britto votou
a favor da demarcação contínua da terra indígena e da remoção dos não indígenas
daquele território. Mas não só isso: ele também elencou uma série de
condicionantes, que não valeriam para aquele caso, mas para outras demarcações,
no futuro, entre as quais a ideia de que era preciso estabelecer um marco
temporal, sob o argumento de que essa era uma intenção dos autores da
Constituição.
“Ayres
Britto diz em seu voto que o marco temporal foi um propósito constitucional, ou
seja, que isso foi discutido por quem escreveu a Constituição durante a
Assembleia Nacional Constituinte [de 1987]”, afirmou a SUMAÚMA a advogada
Carolina Santana, que trabalha para o Observatório dos Povos Indígenas e há
poucas semanas teve sua tese de doutorado, que trata justamente do tema,
aprovada pela Universidade de Brasília (UnB).
“Resolvi
ler os anais [da Assembleia Constituinte]. Li todas as discussões [sobre a
redação do artigo 231]. A primeira coisa que eu constatei é que isso [o marco
temporal] não foi discutido, segundo os documentos oficiais”, explica Carolina.
“Ou seja, [defender agora o marco temporal] é uma reescrita absurda do texto
constitucional, uma espécie de um acordo de cavalheiros velado, uma mentira
repetida muitas vezes que agora tem roupagem de coisa verdadeira, mas que não subsiste
se você for buscar o fundamento.”
Carolina
Santana, assim como Deborah Duprat, Mauricio Terena e Eloy Terena, faz parte do
grupo de 51 advogados indígenas e não indígenas que atuam em defesa dos povos
originários no julgamento do marco temporal no STF.
“A Constituição tem um sentido protetivo, de
proteger os povos indígenas. Uma norma nunca é literal, pode ser interpretada,
mas nunca para chegar a um resultado de desproteção quando a norma fala em
proteção. É isso que o marco temporal faz”, argumenta Carolina. Na pesquisa
para sua tese de doutorado, a advogada aponta uma tentativa de reescrever a
história sob a óptica de quem se opõe à demarcação das terras indígenas.
A
ideia de que órgãos como a Funai são “parciais” para tratar de temas ligados
aos povos indígenas também faz parte desta narrativa que visa minar os direitos
indígenas. Esse argumento é usado na ação direta de inconstitucionalidade em
que o PP, partido que apoiou a reeleição de Jair Bolsonaro, pede ao Supremo que
retire do Ministério dos Povos Indígenas a prerrogativa de demarcar terras
indígenas, por não ser “imparcial” para tanto. A ação foi ajuizada dias antes
do início do ATL, o que não parece ser uma coincidência, já que é intenção do
governo federal anunciar novas demarcações no evento em Brasília. Na mesma
lista de argumentos consta a tese da “internacionalização da Amazônia”, a
partir da atuação de organizações não governamentais (ONGs).
Em
2008, o general de exército Augusto Heleno, à época comandante militar da
Amazônia, afirmou a colegas da reserva no Clube Militar: “Estamos cada vez mais
aumentando a extensão das terras indígenas na faixa de fronteira e caminhando
numa direção que me preocupa. Poderão representar um risco para a soberania
nacional”. Ele se referia à demarcação de Raposa Serra do Sol. Heleno e vários
de seus colegas nunca esconderam o temor – sem nenhuma base factual – de que
povos indígenas amazônicos viessem a declarar a independência de seus
territórios do Brasil.
·
De
volta a 1934?
Deborah
Duprat, que atuou no início do julgamento, em 2019, acredita que hoje há um
cenário mais favorável aos direitos dos indígenas: “Acho que aquele ambiente
que tomou de assalto o Supremo por ocasião do julgamento de Raposa Serra do Sol
se modificou para melhor, sabe? Porque aconteceu o [atentado antidemocrático
de] 8 de janeiro. E, por isso, a força militar que havia naquele julgamento de
Raposa Serra do Sol, de alguma maneira, se acabou ou pelo menos não tem a
potência que tinha”.
A
advogada afirma, porém, estar angustiada com a demora. “A gente já teve uma
época melhor para o julgamento, o fim do governo Bolsonaro, com toda a barbárie
registrada nas terras indígenas. Foi um momento em que houve uma reação da
mídia, da sociedade, de alguns espaços institucionais. Não sei se a consternação
que houve num determinado momento no Supremo [se manteve]. É preciso brevidade,
é preciso que esse julgamento seja retomado, porque as coisas se perdem, com o
tempo, muito fortemente ali”, alerta.
Causa
preocupação, entre os advogados que defendem os povos indígenas no caso, a
saída do ministro Ricardo Lewandowski, que se aposentou em 11 de abril. O voto
dele contra o marco temporal era tido como certo. Também se teme a
possibilidade de que a Corte decida contemporizar os interesses dos indígenas com
os do agronegócio e os da extrema direita – mais fortes do que nunca no
Congresso Nacional. Especula-se, por exemplo, a respeito de uma decisão que
estabeleça um marco temporal, mas relativo a 1934. A data não é aleatória. Mais
breve das constituições brasileiras, sepultada em 1937 pela ditadura do Estado
Novo, a Carta de 1934 foi a primeira a reconhecer os direitos das populações
indígenas.
“Qualquer
marco temporal é ruim, porque isso exige que os indígenas comprovem, por um
pleito processual, uma matéria jornalística ou qualquer outro registro, que
lutaram para ficar na terra da qual eles foram expulsos”, explica Carolina
Santana. “Só que os povos indígenas eram tutelados [em 1934], e é impossível
você encontrar um processo deles demandando judicialmente as terras. A prática
de expulsar indígenas das suas terras era tão comum que nem sequer virava
notícia. Há uma dificuldade imensa de comprovar o esbulho pelas características
da nossa sociedade de não produzir informações sobre pessoas cujas vidas não tinham
valor.” Deborah Duprat concorda: “Estabelecer qualquer marco temporal, agora,
vai ser sentido como uma derrota”.
Neste
momento, o julgamento tem 1 voto contra o marco temporal, o do relator,
ministro Edson Fachin, e 1 a favor, o do ministro Nunes Marques. O próximo a
votar é Alexandre de Moraes, que em setembro de 2021 pediu vista do processo. A
grande expectativa, entre os advogados que defendem os povos indígenas, é pelo
voto dele. A posição de Moraes é uma incógnita. “É um ministro que surpreende em
vários aspectos, positiva e negativamente”, resumiu um deles, que falou sob a
condição de não ser identificado. Também são considerados dúvidas os votos dos
ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Já os votos de Rosa Weber, Luís Roberto
Barroso e Luiz Fux contra o marco temporal são tidos como prováveis pelas
lideranças e advogados indígenas. Do outro lado estariam os ministros André
Mendonça, indicado por Bolsonaro, e Dias Toffoli.
·
‘Com
o marco temporal, a extinção será total’
Em
meio à expectativa pelo ATL e pela retomada do julgamento no Supremo, a
primeira advogada indígena do país, Joenia Wapichana, que atuou no caso Raposa
Serra do Sol e é a atual presidenta da Funai, inaugurou dias atrás uma
exposição de 15 grandes fotografias feitas em 2017 pelo fotógrafo Sebastião
Salgado. O conjunto retrata os Korubo, um povo indígena de recente contato que
vive no Vale do Javari, no estado do Amazonas.
Doadas
pelo artista à Funai, as fotografias foram rejeitadas pelo governo Bolsonaro
após Salgado criticar o presidente de extrema direita, em 2020. Na época, coube
ao Ministério Público Federal interceder e dar uma guarda adequada às peças.
Presente à cerimônia de reincorporação das obras ao acervo da Funai, Salgado
falou a SUMAÚMA sobre o julgamento no STF: “O marco temporal é uma ameaça, uma
tentativa de roubar as terras indígenas. Tem que haver uma defesa desse
território, que é protegido pela Constituição”.
A
liderança indígena Ana Patté Xokleng, atual assessora de assuntos parlamentares
no Ministério dos Povos Indígenas, sabe que, caso o Supremo se decida pelo
marco temporal, não será apenas seu povo que terá mais um pedaço de seu hoje já
diminuto território roubado. “Meu povo já foi quase extinto uma vez. Se o marco
temporal for aprovado, o que vai acontecer é a extinção total. E talvez de
todos os povos indígenas”, disse a SUMAÚMA.
A
deputada federal Célia Xakriabá (PSOL/MG) explica por que o marco temporal põe
em risco não apenas os indígenas, mas um país que bate novos recordes de
desmatamento e também um planeta assombrado por eventos climáticos extremos:
“Quando se demarca um território indígena, é a oportunidade de ter água para
beber. Quando se demarca um território indígena, é a oportunidade também de ter
respiração. Nós somos pneumologistas. Nós sustentamos os pulmões do mundo e das
pessoas”.
Fonte:
Sumaúma
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