segunda-feira, 3 de abril de 2023

Não há paralelismo entre determinação constitucional e ingerência fardada

Nos primórdios deste ano parlamentares integrantes do Partido dos Trabalhadores tomaram uma de suas primeiras iniciativas, qual seja, conseguir a quantidade de assinaturas necessárias para apresentar uma proposta de emenda constitucional destinada a reformular o artigo 142 da Constituição que trata do papel das Forças Armadas com base em alguns argumentos dentre os quais aparece o da interpretação distorcida feita por Jair Bolsonaro e seus seguidores, visando defender uma intervenção militar no país, haja vista que eles não aceitaram o resultado da eleição presidencial. Esta asserção fundamenta-se no pressuposto de que a intervenção militar tem por âncora uma indicação legal. 

O referido artigo estabelece que cabe às Forças Armadas a defesa da Pátria, a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Apenas para fins comparativos vale lembrar o que as constituições anteriores previam. A primeira, de 1824 fixou o exercício do poder coercitivo do Estado. A de 1891 determinou a elas defender o país internacionalmente, manter as leis internamente e apoiar as instituições constitucionais. A de 1934 firmou a defesa do território nacional e a proteção do poder constitucional, da lei e da ordem. As de 1937 e 1946 apenas trataram da organização e das particularidades das instituições castrenses. A de 1967 instituiu para as mesmas defender a Pátria e garantir o poder, a lei e a ordem.

Correlatos a esses papéis emprazados nas respectivas Cartas Magnas ocorreram ações políticas levadas a cabo pelos servidores de uniforme.  Sob a égide da Constituição de 1824 aconteceu a denominada Questão Militar que se referiu à um conjunto de incidentes entre militares do Exército e autoridades do Império durante os anos de 1886 e 1887 os quais contribuíram muito para a proclamação da República liderada pelo marechal Deodoro da Fonseca em 1889, apoiado pelos seus comandados. Sob o manto da Constituição de 1891 ocorreu o movimento tenentista na década de 1920 do século passado que englobou o apoio à candidatura Nilo Peçanha, a rebelião do Forte de Copacabana, a Revolta Paulista e a Coluna Prestes. Aconteceu também a Revolução de 1930 com a ascensão de Vargas sustentado pelos fardados e o envolvimento deles na Revolução de 1932.

Observe-se que não é possível perceber qualquer tipo de apoio do que se encontra escrito sobre o papel das Forças Armadas nas duas primeiras constituições às ações políticas dos militares. Tal constatação inclina-se a enfraquecer a tese de que as intervenções castrenses possuem base legal. Entretanto, na vigência da Constituição de 1934 veio à tona o Estado Novo iniciado em 1937 com esteio castrense. Sua emergência, de acordo com declaração oficial, se deveu a um plano comunista para a tomada do poder, haja vista a intentona ocorrida dois anos antes, e a situação de pré-guerra civil em desenvolvimento. Aqui já é possível notar que estas duas justificativas aparentam ter relação com a Carta Magna de então a qual previa para as instituições bélicas a tarefa de proteção da ordem e da lei.

As Constituições de 1937 e 1946, tal como foi visto, não apresentaram o papel das Forças Armadas, porém em 1945 por pressão dos militares Vargas foi obrigado a renunciar, muito embora a derrota do nazifascismo e a demanda pela abertura política se apresentaram como fatores determinantes. No período de 1945 a 1964 ocorreram manifestações de grupos militares favoráveis e contra a participação do capital estrangeiro e à aliança com os Estados Unidos. Aconteceram em 1954 o alcunhado Manifesto dos Generais exigente da renúncia de Vargas, o apoio deles à uma candidatura única de união nacional, o Golpe Preventivo de 1955 destinado a garantir a posse de Juscelino, liderado pelo marechal Lott e um grupo de comandados, o veto à posse de Goulart juntamente com a implantação do parlamentarismo em 1961 e o golpe militar no ano de 1964. Novamente não se verifica uma correlação entre o fundamento legal e a ação política dos servidores de uniforme. Entretanto, a Constituição de 1967 ao instituir novamente a defesa da lei e da ordem serviu para amparar o prosseguimento da ditadura civil militar que avançou até o ano de 1985. E o artigo 142 da Constituição atual não fornece sustentação aos atos de insubordinação praticados pelo comandante do Exército contra o ministro da Defesa da época do primeiro governo de Lula e nem com as execráveis ações praticadas por militares decorrentes da íntima ligação deles com o bolsonarismo.

Considerando que não há paralelismo entre a determinação constitucional e a ingerência dos fardados na política, conforme ficou claro nessa abordagem histórica, cabe perguntar se é válido alterar o papel das Forças Armadas com vistas a barrar futuras intervenções. Junte-se a isso o fato de que as leis, apesar de objetivarem o controle dos comportamentos das pessoas, não se mostram totalmente eficientes para tanto pois muitos as burlam, então por mais legalistas que se acredite serem os militares seu poder regulador pode não funcionar a contento.

Embora isto seja verdade, a referida abordagem histórica revelou também que os militares atuaram bastante na forma de um poder moderador, bem como revelou ainda que eles possuem um elevadíssimo grau de autonomia que não pode ser aceito de maneira alguma em um regime democrático. Assim sendo, o modo pelo qual o artigo 142 se encontra redigido tende a expressar, legitimar e estimular essa autonomia, bem como favorecer o abominável e incontido anseio de tutelar a sociedade, dominante na subjetividade de muitos fardados. Outrossim, é preciso ressaltar que a mesma não tem um significado pleno haja vista que as Forças Armadas em qualquer país do mundo, principalmente o nosso, se encontram estreitamente ligadas aos setores dominantes da sociedade, e seus integrantes costumam praticar intervenções para favorecer os interesses de tais setores. Essas ingerências se tornam mais fáceis quando recebem apelos dos segmentos empresariais e encorajamentos de intelectuais orgânicos, que costumam prestar auxílio hermenêutico sobre o conteúdo do artigo em questão, já praticado inclusive por um eminente jurista brasileiro que, equivocadamente, o interpretou de modo muitíssimo limitado, levando em conta apenas a sua construção gramatical, desconsiderando comparações, contextualizações e historicidade.

Acrescente-se que os dizeres genéricos, abstratos e indefinidos pertinentes à garantia da lei e da ordem inscritos no artigo ora na berlinda são condizentes com a estrutura jurídica de um país que apresenta as denominadas lacunas da lei. Os vazios e brancos da legislação não decorrem apenas de possíveis descuidos ou cegueira provocados pelo caráter ideológico de ocultação que faz parte do Direito. É intencional e atende ao interesse de incluir brechas para ir além da própria lei. Esta tarefa possibilita aos militares continuarem exercendo o antidemocrático poder moderador que veio à tona novamente durante o governo de Bolsonaro em suas contendas com o Judiciário.

Quanto à parte relativa à expressão por iniciativa de qualquer destes nele previsto, ela pode ensejar um conflito entre os poderes, provocar uma situação de insubordinação legalizada porquanto o comandante supremo das Forças Armadas é o presidente da República, e criar uma circunstância inusitada caso não haja um acordo entre os poderes quanto ao uso das Forças Armadas. Estas possibilidades foram amenizadas por meio de uma Lei Complementar a qual previu que cabe ao presidente decidir a respeito da concretização das tarefas destinadas às instituições castrenses. Observe-se que a mencionada lei, apesar de ter solucionado a questão da subordinação não resolveu o problema da concentração do poder no executivo e nem a sua autonomia. Isto é deveras preocupante porque por motivação determinada um presidente da República pode ameaçar o regime democrático com o apoio dos fardados, tal como insinuava Bolsonaro.

Vale lembrar também que a escrita do artigo em questão não encontra paralelo em outros países democráticos. A Constituição de Portugal aponta que às Forças Armadas incumbe a defesa militar da República. Outrossim, estabelece que cabe a elas satisfazer os compromissos internacionais do Estado português no âmbito militar e participar de missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte. Internamente devem colaborar em missões de proteção civil e em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e melhoria da qualidade de vida da população. Acentua ainda que seus elementos não podem aproveitar-se da sua arma, do seu posto ou de sua função para qualquer intervenção política. Na Alemanha destinam-se à proteção contra um perigo iminente ameaçador da existência livre e democrática do Estado. No âmbito interno devem apoiar a polícia na proteção das fronteiras e no combate a grupos rebeldes organizados e armados militarmente. Na Suíça servem para evitar guerras, contribuir para a manutenção da paz, defender o país e sua população, apoiar as autoridades civis na defesa contra ameaças graves à segurança interna e no controle de outras situações extraordinárias.

Ressalte-se que o estabelecido na Constituição portuguesa se mostra bem pertinente e atualizado. De fato, a institucionalização do papel das Forças Armadas de qualquer país não é uma tarefa elementar como talvez pensem os parlamentares do PT, que por sinal leva em conta num estudo muito bem elaborado, feito por acadêmicos de renome, mas que indicaram para as instituições bélicas apenas a função objetiva e unitária de defesa do país. Note-se que o atual pensamento estratégico internacional, válido para todas as nações, fixado após a queda do muro de Berlim, estabeleceu para as Forças Armadas a tarefa de garantir a estabilidade mundial. Isto significa uma mudança radical na função desempenhada pelos fardados, porquanto devem colocar em segundo plano seus impulsos guerreiros e priorizar o papel de agentes da conciliação. Por sua vez, o avanço da globalização transformou a guerra num empreendimento internacional. Assim sendo, qualquer conflagração entre dois países tende a colocar aliados em ambos os lados, localizados em diversos recantos do planeta. Portanto, se mostra como um novo compromisso internacional.

De forma derradeira cabe um exame a respeito da posição assumida pelo hábil atual ministro da Defesa quanto ao assunto em pauta, haja vista que o mesmo é o comandante das três armas. A esse respeito os meios de comunicação divulgaram que ele tem se colocado contra qualquer alteração no anacrônico e ilídimo artigo 142 para não irritar os militares e não prejudicar a relação entre eles e o atual presidente. Disse também que está atuando para convencer o governo a não apoiar a proposta dos parlamentares petistas. Tal postura permite inferir que tanto ele quanto seus comandados parecem estar vendo a referida proposta como uma mera ação revanchista em aproveitamento da momentânea situação de fragilidade vivida pelos servidores de uniforme. Este presumível entendimento não pode, de forma alguma prevalecer, pois é contrário a toda argumentação anteriormente exposta. Ademais, tal mudança, imprescindível e urgente, não deve ser feita por leigos, pois exige considerar a razão existencial das Forças Armadas, nem de maneira impositiva e sim resultante de um debate entre integrantes da universidade e militares intelectuais, reconhecidos no meio científico como eminentes estudiosos das mesmas. A fixação do papel constitucional dos estabelecimentos castrenses é um trabalho relativamente complexo e demorado o qual exige levar em conta as prementes demandas da contemporaneidade e a real submissão dos fardados ao regime democrático.

 

Fonte: Por Antônio Carlos Will Ludwig, na Conjur

 

Nenhum comentário: