Governo deve mirar
futuro da questão indígena além de apagar incêndios, diz liderança
A
19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), a maior mobilização dos povos
indígenas do país, começou nesta segunda-feira (24) em Brasília com uma demanda
principal: a retomada da política de demarcações. Há a expectativa entre as lideranças
de que durante o encontro, que acontece até sexta-feira (28), o governo federal
anuncie a homologação de pelo menos algumas das 14 terras indígenas cujos
processos estão prontos para serem concluídos. A medida era aguardada para os
primeiros cem dias da presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas não
ocorreu.
Na
manhã desta terça (25), em plenária de autoridades indígenas no acampamento, a
presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joenia Wapichana,
explicou que o órgão precisou fazer uma revisão dos 14 processos. “Não vou
assinar qualquer papel [vindo] de outra gestão, tenho que ter responsabilidade
de atualizar esses processos”, destacou. Ela disse ainda que, desde que assumiu
o cargo, tem se dedicado a reestruturar minimamente a Funai, que estava
“sucateada”.
À Agência Pública, Wapichana disse logo
depois que já enviou ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI) os 14 processos de
terras aptas à homologação. Destes, o MPI enviou 11 para análise da Casa Civil,
com quem a ministra Sonia Guajajara se reuniu hoje para tratar do assunto. Lula
deve visitar o acampamento na sexta, quando é esperado o anúncio das
homologações.
A
expectativa tem gerado ansiedade entre os indígenas. Em entrevista à Pública, o advogado Maurício
Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(Apib), organizadora do ATL, afirma que entende a necessidade de resolver as
demandas urgentes. “No entanto, é importante que, ao passo que o governo faz
essa política de apagar incêndios, também olhe para o futuro para que
justamente não venha um outro governo e, com uma canetada, acabe com tudo”,
diz.
Isso
depende, em sua avaliação, da criação de novos marcos jurídicos, mas também da
mudança de mentalidade social em relação aos povos indígenas. Para ele, nesse
ponto os posicionamentos públicos do presidente da República têm peso. “Com
discursos políticos, o presidente consegue fazer o enfrentamento ao racismo que
os povos indígenas sofrem”, pontua.
Terena
cobra também que Lula se expresse mais incisivamente contra o marco temporal,
cujo julgamento, que se arrasta há anos, deve ser retomado pelo Supremo
Tribunal Federal (STF) em 7 de junho. De acordo com a tese, só podem ser
formalmente reconhecidos pelo Estado brasileiro os territórios que estavam
ocupados por indígenas na data de promulgação da Constituição, em outubro de
1988. Áreas das quais as comunidades haviam sido expulsas e que foram
posteriormente retomadas não poderiam ser demarcadas.
“Precisamos
de um posicionamento muito mais firme por parte do presidente da República”,
indica o advogado. “Não estamos pedindo que o governo faça lobby contra o marco
temporal, mas existe a necessidade de que a Constituição Federal seja
resguardada, porque o que está em jogo é justamente o estatuto constitucional
das terras indígenas.”
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Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
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A principal demanda desta edição do Acampamento Terra
Livre é a retomada das políticas de demarcação. Algumas lideranças indígenas
têm dito que o governo federal deve apresentar um plano de como pretende lidar
com essa questão nos próximos anos, já que há territórios em diferentes etapas
do processo. Você concorda?
O
terceiro mandato de Lula entra na dinâmica do poder muito mais enfraquecido do
que o primeiro e o segundo. Existe um jogo de forças que está travando muito a
pauta do governo no Congresso Nacional que ele não está conseguindo destravar.
Por óbvio, o presidente vai empenhar boa parte da sua força em pautas
econômicas, isso é inegável porque é o que pode tornar o eleitor favorável ou
não a um governo. A pauta indígena é prioritária dentro do governo? Ele tem
dito que sim, mas a máquina não está andando [como deveria], as nomeações da
Funai e Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena] não foram todas feitas. É
legítimo que, no início, o Lula apenas apague incêndios e tente reconstruir
aquilo que Bolsonaro destruiu. Sem dúvida, a resposta [à crise humanitária] dos
Yanomami demanda logística, recursos e pessoal. No entanto, é importante que,
ao passo que o governo faz essa política de apagar incêndios, também olhe para
o futuro para que justamente não venha um outro governo e, com uma canetada,
acabe com tudo. Ainda estamos em abril, é tudo muito recente, mas queremos mais
sinalizações, queremos que o jogo que está sendo jogado seja transparente para
nós. A partir do momento que não é, começamos a ficar ansiosos no sentido de
cobrar e pressionar. Por isso, entendemos que é importante que o movimento
indígena se mantenha organizado, diferente do que houve nas últimas
presidências do PT, em que o movimento social entrou no governo e se fragmentou
politicamente. Nós, enquanto movimento indígena, olhando para esse passado, não
iremos fazer isso. Apesar de contarmos com um ministério, continuaremos fazendo
as devidas pressões e judicializando o que for preciso para que as coisas
andem.
·
Havia a expectativa de que fossem anunciadas as
homologações de 14 terras indígenas nos cem primeiros dias de governo, o que
não ocorreu. Você avalia que o Ministério dos Povos Indígenas e Funai precisam
também comunicar melhor as razões para esse atraso e as dificuldades que têm
encontrado em relação à retomada da política de demarcação?
Estou
na expectativa de que ainda venham alguns anúncios, aqui [no ATL]
possivelmente. Mas é importante que a comunicação seja transparente. O governo
Lula, não só em relação à pauta indígena, não tem apresentado uma estratégia de
comunicação robusta, não tem conseguido comunicar, e isso é uma falha do campo
da esquerda como um todo, que precisa ser reavaliada. É importante que a Funai
e o Ministério dos Povos Indígenas tenham seus mecanismos de comunicação. É sim
necessário comunicar de maneira mais transparente, porque isso gera ansiedade,
animosidade, e pode criar um processo de mal estar. Estamos a todo momento
lutando contra isso porque acreditamos muito no ministério, nas pessoas que lá
estão.
·
É possível reverter o desmonte da política indigenista
até o fim do governo? Qual a expectativa da Apib em relação a isso?
A
gente entende que quatro anos é pouco para fazer tudo que queremos que o
governo faça: demarcar as terras, reestruturar a saúde indígena, garantir
orçamento para Funai e Sesai. Talvez, de fato, quatro anos não sejam
suficientes para alcançar a mudança que a gente almeja. Mas acho que quatro
anos é tempo suficiente para garantir que a reestruturação seja amarrada de
maneira mais concreta, para que no futuro as coisas não sejam destruídas tão
facilmente.
·
Como fazer isso?
A
questão seria pensar novos marcos jurídicos que garantam uma proteção mais
forte da Funai, o órgão responsável pela política indigenista, mas também uma
nova cultura para a sociedade brasileira. Quando falamos de política, estamos
nos referindo à possibilidade de mudança por meio do discurso. Então muita
coisa o presidente pode fazer enviando sinais e discursando. Com discursos
políticos, o presidente consegue fazer o enfrentamento ao racismo que os povos
indígenas sofrem. Isso é uma mudança estrutural, que não envolve recursos. É
mudança de cultura e de mentes, produção de novas formas da sociedade repactuar
o seu modo de vida, de ver o outro. Isso foi muito bem elaborado pelo
presidente Bolsonaro no sentido negativo. Tanto que estamos vivendo a
violência, [vendo] o fascismo mostrando a sua face. Estados como Santa Catarina
têm células fascistas, e tudo isso foi construído a partir do discurso [de
Bolsonaro]. O presidente Lula está priorizando a pauta econômica, mas é
necessário que se construa uma pauta cultural no sentido de mudar a mente das
pessoas em relação aos povos indígenas.
·
O futuro do marco temporal será definido pelo
Judiciário. Mas, na sua avaliação, o governo federal poderia tomar alguma
medida para que a tese seja rejeitada, como o movimento indígena
defende?
Considerando
que estamos tratando de uma arena onde o discurso é um instrumento, está
faltando posicionamento do próprio presidente. Já sabemos que a ministra Sonia
Guajajara é contrária. Então falta o discurso, uma agenda política de governo
voltada para isso, encontros com ministros, de uma maneira institucional. Não
estamos pedindo que o governo faça lobby contra o marco temporal, mas existe a
necessidade de que a Constituição Federal seja resguardada, porque o que está
em jogo é justamente o estatuto constitucional das terras indígenas. Já que o
governo expôs um posicionamento favorável à constituição de uma nova política
indigenista, é necessário que se enterre de uma vez por todas o marco temporal.
Para isso, no campo político, precisamos de um posicionamento muito mais firme
por parte do presidente da República.
·
A Advocacia-Geral da União (AGU) poderia ser um
instrumento para isso?
A
AGU defende o governo em alguns processos envolvendo a questão indígena – a
Funai, inclusive, é assistida pela AGU. Posicionamentos no âmbito de processos
judiciais, seja de primeira ou segunda instância, seria algo a se fazer. Além
disso, a Funai [de Bolsonaro] se posicionava, inclusive por meio da AGU,
favorável ao marco temporal em processos judiciais. É necessário também que o
governo Lula, usando a AGU para atuar nesses processos, também incida [sobre
essa pauta]. Por que a AGU não divulga um parecer público marcando os elementos
que entende como inconstitucionais em relação ao marco temporal? Essas são
estratégias que poderiam ser adotadas. Por que ainda não se fez?
·
Quais as principais pautas jurídicas que a Apib tem
trabalhado?
Principalmente
o marco temporal, o julgamento que está na pauta do Supremo. Esse é o
julgamento do século, que vai definir o estatuto constitucional da demarcação
das terras indígenas. Além disso, existe a questão da violência territorial –
invasão e desintrusão das terras indígenas. Em 2020, conseguimos adentrar o
Supremo Tribunal Federal e advogar perante a Suprema Corte, então estamos
utilizando esse espaço para levar a demanda dos povos indígenas. Na semana
passada, entramos com uma ADPF [Arguição de descumprimento de preceito
fundamental] sobre violência policial no Mato Grosso do Sul, porque é usada uma
força desproporcional contra os parentes Guarani e Kaiowá.
·
Você é do Mato Grosso do Sul. Em março, a ministra
Sonia Guajajara visitou territórios dos Guarani e Kaiowá no estado, onde há uma
enorme demanda não atendida de demarcações. Como avalia as medidas do MPI em
relação a essa situação?
As
sinalizações estão sendo feitas, existe uma preocupação dentro do ministério de
trazer uma solução pra isso. Só que esbarramos na competência dos estados. Uma
coisa é um território indígena não estar demarcado, isso é atribuição da esfera
federal. Outra coisa é as forças do agronegócio formarem um conluio com as
forças de segurança para atacar os povos indígenas. Depois da visita da
ministra ao estado, percebemos que não tem vontade política local para
resolver a questão. Diante desse cenário, a gente judicializou, fomos para o
Supremo. Apesar de a ministra e sua equipe estarem fazendo as articulações
políticas, não está surtindo resultado porque o estado – onde o agronegócio
elege prefeitos e governadores – se constitui como uma máquina de guerra contra
os povos indígenas. Os Guarani e Kaiowá se encontram numa situação de extrema
vulnerabilidade, e não vimos outra alternativa no tabuleiro senão colocar o
Supremo como uma peça para ver se minimamente apazigua os ânimos. Mas resolver
é só com demarcação.
Fonte:
Por Anna Beatriz Anjos, da Agencia Pública
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