Assim
como sofremos um golpe de novo tipo, estamos vivendo o início de uma ditadura
de novo tipo. Não será o regime de um ditador pessoal, até porque nenhum dos
possíveis candidatos ao posto tem força suficiente para alcançá-lo. Não será
uma ditadura das forças armadas, ainda que sua participação na repressão tenda
a crescer. Provavelmente, muitos dos rituais do Estado de direito e da
democracia eleitoral serão mantidos, mas cada vez mais esvaziados de sentido.
A
ditadura se expressa no alinhamento dos três poderes em torno de um projeto
claro de retração de direitos individuais e sociais, a ser implantado sem que
se busque sequer a anuência formal da maioria da população, por meio das
eleições. Entre muitos outros sinais de que ela já começou, é possível citar:
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A decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no dia 22 de setembro,
concedendo ao juiz Sérgio Moro poderes de exceção. Na prática, as garantias
constitucionais ficam suspensas para qualquer um que seja alvo do juiz
curitibano.
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A decisão do Supremo Tribunal Federal, do último dia 5 de outubro, de permitir
o encarceramento de réus sem que os recursos tenham sido esgotados. Vendida
como medida para impedir a impunidade dos poderosos, amplia o poder
discricionário de um Judiciário que é notoriamente enviesado em suas decisões.
Apenas como ilustração, a Defensoria Pública do Rio de Janeiro afirmou em nota
que mais de 40% de seus recursos ao STJ têm efeito positivo. É, portanto, um
contingente muito expressivo de pessoas que começariam a cumprir penas depois
consideradas injustas.
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Outra decisão do STF no mesmo dia permitindo que a polícia invada domicílios
sem mandado judicial.
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O aumento generalizado da truculência policial, algo que vem desde o final do
governo Dilma, estimulado pelo clima político de avanço da reação - e também
pela legislação que o próprio governo Dilma aprovou.
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O rolo compressor das mudanças na lei e na Constituição, com o uso inaceitável
do instrumento da medida provisória (como no caso do ensino médio) ou a
ausência de qualquer debate, seja com a sociedade, seja dentro do próprio
Congresso. A entrega do pré-sal e a PEC de estrangulamento do investimento
público servem de exemplo: a "base governista" nem tentou fingir que
não estava apenas cumprindo o ritual da aprovação parlamentar, sem qualquer
engajamento em discussões com a oposição.
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O avanço da censura e a imposição da narrativa única pelos oligopólios da mídia
empresarial, parceiros de primeira hora da ditadura em implantação. Isso se dá
em várias frentes. Há o estrangulamento econômico dos meios de comunicação
independentes. Há a intimidação das vozes críticas, da qual o exemplo maior são
as inúmeras decisões judiciais que penalizam qualquer um que ouse falar sobre o
ministro Gilmar Mendes. E há o cerceamento à liberdade de expressão nos espaços
em que ela possa ocorrer, como faz o projeto Escola Sem Partido. A comissão
especial criada para discuti-lo na Câmara dos Deputados é formada quase que
exclusivamente por fundamentalistas cristãos e outros direitistas extremados.
Uma ação no Supremo, contra a lei que foi aprovada em Alagoas, mas que barraria
iniciativas similares no Brasil todo, está parada nas mãos do ministro Luís
Roberto Barroso.
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A volta da tortura a prisioneiros, com motivação política. O encarceramento por
tempo indefinido, com o objetivo expresso de "quebrar a resistência"
de suspeitos (pois nem réus são) e levá-los à delação, tornou-se rotina no
Brasil e é uma forma de abuso de poder, de constrangimento ilegal e, enfim, de
tortura. (E antes de que alguém lembre que a tortura a presos comuns nunca se
extinguiu no Brasil, cabe ponderar que a extensão da prática em nada melhora a
situação dos presos comuns; ao contrário, pode piorá-la.)
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A volta da perseguição política, com inquéritos farsescos contra alvos
selecionados, com o objetivo de apenas encontrar justificativas para punições
definidas de antemão. O cerco a Lula é o exemplo mais claro.
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A criminalização do PT e da esquerda em geral, alimentada pelos meios de
comunicação empresariais e pelos poderes de Estado, com destaque agora para a
campanha do governo Temer sobre "tirar o Brasil do vermelho". A
agressividade crescente dos militantes da direita, produzida de forma
deliberada, tenta emparedar as posições à esquerda, progressistas e
democráticas, ao mesmo tempo em que a cassação de registros partidários torna-se
uma possibilidade mais palpável.
O
novo regime busca hoje manter ao máximo a aparência de legalidade, mas a
tendência é que caminhe para formas cada vez mais escancaradas de violência. Há
uma razão simples para isso. Seu projeto é a confluência de quatro eixos: (1)
entrega do patrimônio nacional; (2) ampliação da taxa de exploração do
trabalho; (3) retrocesso nos direitos de grupos subalternos, com a reafirmação
das hierarquias tradicionais (penso nas mulheres, na população negra, em
lésbicas, gays e travestis); e (4) permanência das práticas de corrupção e de
saque do Estado em favor da elite política reinante. Os eixos revelam o
espectro de interesses diversos que se reuniram para a deflagração do golpe.
Trata-se
de um projeto extraordinariamente lesivo para a grande maioria do povo
brasileiro. Graças à baixíssima educação política da maior parte da população e
à campanha incessante da mídia, para muita gente a ficha não caiu. Mas os
efeitos da redução dos salários, do aumento do desemprego, do subfinanciamento
do Estado e do desmonte dos serviços públicos logo se farão sentir de forma
plena. Para conter a inevitável reação popular, será necessária uma escalada
repressiva e restrições cada vez maiores aos direitos.
Diante
deste cenário, de uma luta desigual e prolongada, o campo democrático
brasileiro parte atrasado e sem clareza. As eleições municipais funcionaram e
ainda funcionam como uma bela armadilha para colocar as forças de esquerda,
progressistas e democráticas brigando entre si, enquanto os novos donos do
poder nadam de braçada. É triste perceber a falta de visão e de grandeza que
faz com que lideranças e militantes do PT e do PSOL prefiram puxar o tapete uns
dos outros em vez de unir forças contra o inimigo comum; é triste ver um
candidato de esquerda anunciando que a campanha no segundo turno será
"municipalizada" e não tocará em questões nacionais; é triste ver
como a energia que devia ser canalizada para a construção da resistência é
desperdiçada no conflito interno.
Há
muito o que criticar na trajetória das organizações de esquerda e suas
lideranças - sobretudo do PT, que foi o principal partido durante décadas e
exerceu o poder. Que o PT errou, todos sabemos. Mas a discussão, necessária,
sobre seus erros e seus limites não pode impedir a unidade de ação contra o
golpe e sua agenda. A expressão "Frente Ampla" está na boca de todo
mundo, mas para muitos ela parece designar "somente eu e meus
amigos". Não. É uma frente, isto é, reúne uma diversidade de grupos. E é
ampla: nela devem estar aqueles com quem eu divirjo sobre muitas coisas, desde
que possamos agir juntos em relação a algo que concordamos que, no momento, é o
prioritário.
E
o prioritário é restabelecer a vigência das regras democráticas e impedir o
recuo social. Se as lideranças da esquerda brasileira não entendem isso, não
entendem nada.
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