domingo, 9 de outubro de 2016

“A transfixação mágica no Paraná.” Por Rui Daher

Caía a tarde feito um oleoduto e o carro se aproximava da Refinaria Presidente Getúlio Vargas que a história não conta, mas foi assassinado pelo acordo secular de elites. O mesmo que ora se faz com outro estadista que quis construir nação menos injusta e mais soberana.
Chegava a uma cidade pequena, próxima de Araucária, no Paraná. Deveria sugerir a uma plateia de agricultores como produzir mais, melhor e com menor custo. No aplicativo havia selecionado Dinah Washington. Ela cantava Stormy Weather e me lembrava de como as tempestades políticas chegam ao Brasil da mesma forma que os aguaceiros chegam às encostas de morros e fazem desmoronar os sonhos de quem ali vive.
Hotel modesto, estaciono o carro. O manobrista veste terno, camisa e gravata pretos. Não abre a porta do carro nem se oferece a carregar minha mochila. Não me importo. Deve estar mal-humorado.
No lobby, estranho os dois funcionários da recepção com as mesmas feições e vestes do manobrista. Penso: uniformes e gêmeos. Tez morena, lábios finos, olhos atilados triunfantes, cabelos negros alinhados, sorrisos disfarçados, entreolham-se vaidosos. Um deles aperta a gravata sobre o colarinho:
- Já esteve hospedado aqui?
- Não.
- Preencha a ficha completa.
Noto oito folhas à minha frente. Dou uma passada de olhos e pergunto:
- Mas tudo isso, por quê?
- Normas do hotel.
- Há informações absurdas diante do que exige a lei. Vivo me hospedando em hotéis, vou preencher apenas o que sei necessário.
Olham-se. Um deles apoia-se no balcão e quase encosta em meu nariz:
- Não preenche, não assina, não fica. É o único hotel em 50 quilômetros. E todos exigirão o mesmo procedimento. Foi padronizado. O senhor está no Paraná. Aliás, pagamento antecipado.
Tenho uma hora para chegar ao local da palestra. Gastarei 50 minutos preenchendo a ficha. Sobrarão dez minutos para o banho, trocar de roupa, colocar o endereço no Waze, e partir. Chegarei atrasado ao evento.
Topei. Não havia rodado quase 500 quilômetros para dar o cano. Facilitava o fato de as perguntas serem na forma sim ou não.
Já votou no PT? Reconhece em Lula e Dilma ladrões? Tem em casa alguma obra de Marx? Concorda que Veja e Globo News representam o melhor do jornalismo feito no país? Sabe que José Dirceu matou Celso Daniel e José Genoíno é podre de rico? Tivesse oportunidade, que lábios beijaria, os da antipática Angelina Jolie ou do probo Gilmar Mendes?
Percebendo estar em hotel de alguma seita, tal qual goleiro que na hora do pênalti escolhe um dos cantos para se jogar, sabedor do atual clima político do país, em todas respostas arrisquei a direita. Deixei em branco os “lábios que beijei”, aí não dava. Felizmente o inquiridor não percebeu.
Um deles me seguiu até o quarto. Em cada andar, nas paredes do patamar, uma foto enorme dos gêmeos em diferentes posições, mas com faixas presidenciais verdes e amarelas no peito. Sobre a cama, a mesma foto. Seriam mesmo eles os ali retratados?
Sou medroso. Confesso já ter visto mula-sem-cabeça quando visitei o Congresso Nacional, em Brasília. Na dúvida sobre os rituais da seita, cobri a foto com um lençol. Também decidi que lá não dormiria de jeito nenhum. Terminado o evento, voltaria para casa, em São Paulo.
Somente no salão da palestra conheci o professor de agronomia que havia me convidado. Surpresa. Reproduzia à perfeição o pessoal do hotel. Quadrigêmeos?
Compilara 58 assinaturas de presença. Peço para ver. Nova surpresa. Todas iguais, rabiscos em formas diversas das letras SM.
- Vamos lá, Doutor Rui. Vamos instalar o PowerPoint?
- Não uso, nunca usei.
- Como? Mesmo depois do sucesso de nosso Procurador? Isso não é bom. O pessoal daqui não vai gostar.
Começo a me irritar com toda a situação.
- Pois é, não trouxe. Desistimos? Pode chamar outro leitor de slides.
- Não dá mais tempo. Vai sem PowerPoint mesmo.
- Bom.
- Amigos e amigas agricultores paranaenses. A comunidade Sertão Modelador, SM, neste momento em que estamos prestes a salvar o Brasil da corrupção introduzida na pátria pelo Partido dos Trabalhadores e os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, traz o consultor em agronegócios, Rui Daher, que irá falar sobre como aumentar a produtividade de suas lavouras e diminuir os custos de produção com novas tecnologias. Vamos ouvi-lo.
Fico mudo. Estou travado. Não consigo começar. Todos me olham ansiosos. O apresentador vai ficando cada vez mais aflito. Um rumor baixo começa a percorrer o salão. Os presentes, mesmo mulheres, crianças e cachorros frequentes em palestras nas zonas rurais, têm feições idênticas às dos funcionários do hotel. Como fossem bonecos de cera saídos da mesma fôrma. Lábios finos, olhos atilados, cabelos negros bem alinhados.
Realismo mágico? Afinal, havia relido Gabo e Rosa, recentemente. Traquinagem de Darcy Ribeiro sempre em minha cabeceira? O filme de Luís Buñuel, relembrado por um amigo? Ibsen, Kafka, socorro, onde estou?
O que aconteceu com o estado do Paraná? Onde os descendentes de alemães, suas loirinhas lindas, narizes aquilinos, feições gansolinas? E as italianinhas gostosas? Cadê os musculosos campônios vindos dos pampas e os Vênetos vermelhões das colônias em serras gaúchas?
Fujo em desabalada carreira. Lembro o final de um filme dos Irmãos Cara-de-Pau. No carro, o retrovisor não indica nenhum farol atrás de mim. Só paro em um posto de gasolina, depois de cruzar a fronteira do Paraná com São Paulo.
- Sei que é proibido em estradas, mas sofri uma violência muito grande que prefiro não narrar, o senhor não me arruma uma cervejinha.
- Pela sua palidez, vai precisar mais de uma e ainda uma cachacinha. Se ficar mal para dirigir, durma aqui. É mais seguro.
Um rapaz ao meu lado, boné da Scania, ouve a conversa, vira-se para mim, com forte sotaque carioca:
- Senhorrrr, apossssto que tá vindo do Paraná.
Balanço a cabeça positivamente.
- Soube não? Transssfixação Mental e de Imagem.
- O que é isso?
Seu companheiro, pelo jeito paulista, entra na conversa. Já estou na segunda dose de Seleta.
- Um laboratório de Curitiba que inventou. Na medicina o termo é usado para atravessar de um lado a outro, perfurar, muito usado em amputações e suturas.
- Cara!
- Pois é, caras foram os que inventaram um método de amputação mental que, tão intenso, vai modificando não só o pensamento, mas também a fisionomia de tudo o que for humano. Eu e o amigo aqui, depois que soubemos disso, nunca mais aceitamos carga para o Paraná.
- Puta loucura! E se levarem o método para outras regiões do Brasil?
- Já chegou. Não viu o Dória?

- Merrrmão, nos Estados Unidos, muita gente tá ficando vermelhona, plastificada, cabeleira dourada e com gestos do Mussolini. E olha, nem precisa serrr branquelo, não. Negro fica, chicano tamém.

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