Caía
a tarde feito um oleoduto e o carro se aproximava da Refinaria Presidente
Getúlio Vargas que a história não conta, mas foi assassinado pelo acordo
secular de elites. O mesmo que ora se faz com outro estadista que quis
construir nação menos injusta e mais soberana.
Chegava
a uma cidade pequena, próxima de Araucária, no Paraná. Deveria sugerir a uma
plateia de agricultores como produzir mais, melhor e com menor custo. No
aplicativo havia selecionado Dinah Washington. Ela cantava Stormy Weather e me
lembrava de como as tempestades políticas chegam ao Brasil da mesma forma que
os aguaceiros chegam às encostas de morros e fazem desmoronar os sonhos de quem
ali vive.
Hotel
modesto, estaciono o carro. O manobrista veste terno, camisa e gravata pretos.
Não abre a porta do carro nem se oferece a carregar minha mochila. Não me
importo. Deve estar mal-humorado.
No
lobby, estranho os dois funcionários da recepção com as mesmas feições e vestes
do manobrista. Penso: uniformes e gêmeos. Tez morena, lábios finos, olhos
atilados triunfantes, cabelos negros alinhados, sorrisos disfarçados,
entreolham-se vaidosos. Um deles aperta a gravata sobre o colarinho:
-
Já esteve hospedado aqui?
-
Não.
-
Preencha a ficha completa.
Noto
oito folhas à minha frente. Dou uma passada de olhos e pergunto:
-
Mas tudo isso, por quê?
-
Normas do hotel.
-
Há informações absurdas diante do que exige a lei. Vivo me hospedando em
hotéis, vou preencher apenas o que sei necessário.
Olham-se.
Um deles apoia-se no balcão e quase encosta em meu nariz:
-
Não preenche, não assina, não fica. É o único hotel em 50 quilômetros. E todos
exigirão o mesmo procedimento. Foi padronizado. O senhor está no Paraná. Aliás,
pagamento antecipado.
Tenho
uma hora para chegar ao local da palestra. Gastarei 50 minutos preenchendo a
ficha. Sobrarão dez minutos para o banho, trocar de roupa, colocar o endereço
no Waze, e partir. Chegarei atrasado ao evento.
Topei.
Não havia rodado quase 500 quilômetros para dar o cano. Facilitava o fato de as
perguntas serem na forma sim ou não.
Já
votou no PT? Reconhece em Lula e Dilma ladrões? Tem em casa alguma obra de
Marx? Concorda que Veja e Globo News representam o melhor do jornalismo feito
no país? Sabe que José Dirceu matou Celso Daniel e José Genoíno é podre de
rico? Tivesse oportunidade, que lábios beijaria, os da antipática Angelina
Jolie ou do probo Gilmar Mendes?
Percebendo
estar em hotel de alguma seita, tal qual goleiro que na hora do pênalti escolhe
um dos cantos para se jogar, sabedor do atual clima político do país, em todas
respostas arrisquei a direita. Deixei em branco os “lábios que beijei”, aí não
dava. Felizmente o inquiridor não percebeu.
Um
deles me seguiu até o quarto. Em cada andar, nas paredes do patamar, uma foto
enorme dos gêmeos em diferentes posições, mas com faixas presidenciais verdes e
amarelas no peito. Sobre a cama, a mesma foto. Seriam mesmo eles os ali
retratados?
Sou
medroso. Confesso já ter visto mula-sem-cabeça quando visitei o Congresso
Nacional, em Brasília. Na dúvida sobre os rituais da seita, cobri a foto com um
lençol. Também decidi que lá não dormiria de jeito nenhum. Terminado o evento,
voltaria para casa, em São Paulo.
Somente
no salão da palestra conheci o professor de agronomia que havia me convidado.
Surpresa. Reproduzia à perfeição o pessoal do hotel. Quadrigêmeos?
Compilara
58 assinaturas de presença. Peço para ver. Nova surpresa. Todas iguais,
rabiscos em formas diversas das letras SM.
-
Vamos lá, Doutor Rui. Vamos instalar o PowerPoint?
-
Não uso, nunca usei.
-
Como? Mesmo depois do sucesso de nosso Procurador? Isso não é bom. O pessoal
daqui não vai gostar.
Começo
a me irritar com toda a situação.
-
Pois é, não trouxe. Desistimos? Pode chamar outro leitor de slides.
-
Não dá mais tempo. Vai sem PowerPoint mesmo.
-
Bom.
-
Amigos e amigas agricultores paranaenses. A comunidade Sertão Modelador, SM,
neste momento em que estamos prestes a salvar o Brasil da corrupção introduzida
na pátria pelo Partido dos Trabalhadores e os ex-presidentes Lula e Dilma
Rousseff, traz o consultor em agronegócios, Rui Daher, que irá falar sobre como
aumentar a produtividade de suas lavouras e diminuir os custos de produção com
novas tecnologias. Vamos ouvi-lo.
Fico
mudo. Estou travado. Não consigo começar. Todos me olham ansiosos. O
apresentador vai ficando cada vez mais aflito. Um rumor baixo começa a
percorrer o salão. Os presentes, mesmo mulheres, crianças e cachorros
frequentes em palestras nas zonas rurais, têm feições idênticas às dos
funcionários do hotel. Como fossem bonecos de cera saídos da mesma fôrma.
Lábios finos, olhos atilados, cabelos negros bem alinhados.
Realismo
mágico? Afinal, havia relido Gabo e Rosa, recentemente. Traquinagem de Darcy
Ribeiro sempre em minha cabeceira? O filme de Luís Buñuel, relembrado por um
amigo? Ibsen, Kafka, socorro, onde estou?
O
que aconteceu com o estado do Paraná? Onde os descendentes de alemães, suas
loirinhas lindas, narizes aquilinos, feições gansolinas? E as italianinhas
gostosas? Cadê os musculosos campônios vindos dos pampas e os Vênetos
vermelhões das colônias em serras gaúchas?
Fujo
em desabalada carreira. Lembro o final de um filme dos Irmãos Cara-de-Pau. No
carro, o retrovisor não indica nenhum farol atrás de mim. Só paro em um posto
de gasolina, depois de cruzar a fronteira do Paraná com São Paulo.
-
Sei que é proibido em estradas, mas sofri uma violência muito grande que
prefiro não narrar, o senhor não me arruma uma cervejinha.
-
Pela sua palidez, vai precisar mais de uma e ainda uma cachacinha. Se ficar mal
para dirigir, durma aqui. É mais seguro.
Um
rapaz ao meu lado, boné da Scania, ouve a conversa, vira-se para mim, com forte
sotaque carioca:
-
Senhorrrr, apossssto que tá vindo do Paraná.
Balanço
a cabeça positivamente.
-
Soube não? Transssfixação Mental e de Imagem.
-
O que é isso?
Seu
companheiro, pelo jeito paulista, entra na conversa. Já estou na segunda dose
de Seleta.
-
Um laboratório de Curitiba que inventou. Na medicina o termo é usado para
atravessar de um lado a outro, perfurar, muito usado em amputações e suturas.
-
Cara!
-
Pois é, caras foram os que inventaram um método de amputação mental que, tão
intenso, vai modificando não só o pensamento, mas também a fisionomia de tudo o
que for humano. Eu e o amigo aqui, depois que soubemos disso, nunca mais
aceitamos carga para o Paraná.
-
Puta loucura! E se levarem o método para outras regiões do Brasil?
-
Já chegou. Não viu o Dória?
-
Merrrmão, nos Estados Unidos, muita gente tá ficando vermelhona, plastificada,
cabeleira dourada e com gestos do Mussolini. E olha, nem precisa serrr
branquelo, não. Negro fica, chicano tamém.
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