A
ascensão dos investimentos transfronteiriços nas décadas recentes não configura
a primeira explosão significativa da globalização financeira. O estudo
Financial Globalization: Retreat or reset, do McKinsey Global Institute,
publicado em 2013, confirma que a Segunda Revolução Industrial coincide com uma
nova era da mobilidade de capitais, que se estendeu, aproximadamente, de 1860 a
1915, quando os ativos de investimentos estrangeiros globais alcançaram 55% do
porcentual do Produto Interno Bruto de uma amostra significativa de países.
A
participação dos ativos estrangeiros globais sofreu uma queda acentuada no
período que compreende as duas grandes guerras mundiais e a Grande Depressão,
voltando a atingir seu pico histórico apenas no início dos anos 1990.
Recentemente, tais ativos alcançaram 160% do PIB dos países da amostra.
Antes
ou agora, a globalização jamais cumpriu as promessas de dependências
harmoniosas. A fantasia de capitais abundantes transbordando das economias
centrais paras as periféricas, em busca de maior remuneração pelo seu emprego
(em decorrência de uma situação “inicial” de escassez), homogeneizando
sociedades e taxas de juro ao redor do globo, vive apenas nas mentes herméticas
de alguns economistas.
O
verdadeiro sentido da globalização é o acirramento da concorrência entre
empresas, trabalhadores e nações, inserida em uma estrutura financeira global
monetariamente hierarquizada. A convulsão das sociedades ante a falência dos
nexos econômicos é o corolário das simbioses e contradições das relações
“inter-nacionais”, que elevaram exponencialmente a complexidade da gestão das
políticas econômicas nacionais. Os dados sobre concentração de renda corroboram
a polarização observada na população.
Conforme
o Global Wealth Databook, publicado pelo Credit Suisse, a riqueza acumulada
pelo 1% mais abastado da população mundial agora equivale, pela primeira vez, à
riqueza dos 99% restantes. A Oxfam afirma que, em 2015, apenas 62 indivíduos
detinham a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas, a metade mais afetada pela
pobreza da humanidade.
A
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico afirma que, entre
1975 e 2012, perto de 47% do crescimento total da renda antes de impostos nos
Estados Unidos foi para o 1% no topo. O Fundo Monetário Internacional aponta
queda de 11% na participação da população de renda média entre 1970 e 2014 nos
Estados Unidos, em razão do “baixo dinamismo do mercado de trabalho”. A
tendência de polarização é consistente para diferentes cortes de definição de
renda média.
Não
é recente a inquietação com o movimento do capitalismo impulsionado pelas
contradições entre sociedades com “espaços democráticos” nacionais e mercados
globais. Ainda em 1848, o velho Marx, ao observar o desenvolvimento “de um
intercâmbio universal e uma universal interdependência das nações”, sentenciou:
“Assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que
invocou”.
Em
Guerres et Capital, Éric Alliez e Maurizio Lazzarato afirmam: “O capitalismo e
o liberalismo carregam as guerras dentro de si como as nuvens carregam a
tempestade. Se a financeirização do fim do século XIX e início do século XX
conduziu à guerra total e à Revolução Russa, à crise de 1929 e às guerras civis
europeias, a financeirização contemporânea dirige à guerra civil global, ordenando
todas as suas polarizações... À era da desterritorialização sem limites de
Thatcher e Reagan sucedeu a reterritorialização racista, nacionalista, sexista
e xenófoba de Trump, que assumiu a liderança do novo fascismo”.
Ante
o nervosismo da insegurança econômica, a polarização política se eleva,
fomentada pelo crescimento da massa daqueles que tiveram suas condições de
trabalho e vida precarizadas na senda da arbitragem geográfica de salários,
impostos e juros pela finança globalizada.
A
política e a mídia tornam-se o palco de demagogos que capitalizam essas fontes
de preocupação e raiva, manejando com desembaraço a técnica das oposições
binárias, método que se esparrama nas modernas ações e interações entre os
participantes das redes sociais.
A
rejeição ao outro e a reputação das causas do mal aos que não são iguais
excitam o ódio de classe, raça, religião e gênero pelos quatro cantos do globo,
impossibilitando a articulação do movimento de grupos sociais heterogêneos em
uma grande coalizão progressista, reduzindo a esperança de reedição de um
ambiente econômico onde decisões sejam permeadas por instâncias democráticas.
O
protofascismo de Trump não é um fenômeno isolado. O Brexit foi marcado pelo
assassinato da deputada britânica Jo Cox. Antes do ataque, o assassino gritou:
“Reino Unido primeiro”, lema da ultradireita britânica.
Ao
analisar a vitória nas eleições regionais do Alternativa para a Alemanha,
partido de extrema-direita, a revista Der Spiegel afirmou: “A estratégia de
apresentar uma solução única e incontestável deve ser reavaliada. Caso
contrário, o mundo estará encarando uma era na qual serão cada vez mais fortes
aqueles que não oferecem qualquer solução, os que só oferecem rejeição e medo”.
No
Brasil, as heranças e sestros da casa-grande aproveitam-se dos desconfortos da
crise econômica deflagrada pelos aloprados dos mercados financeiros em
contubérnio com um governo aturdido por suas próprias incoerências, para
assaltar trabalhadores, aposentados e o orçamento público. A limitação dos
gastos com serviços públicos cauciona o rentismo sem limites.
Destroçada
pelas exigências da política antidemocrática dos tecnocratas de turno, a
economia entrega seu destino às forças do empobrecimento conceitual e da
apologética sem limites. O esvaziamento se faz em nome da despolitização e da
“limpeza ideológica”.
Políticos
e oficiais do governo valem-se de conceitos econômicos para limitar a
disponibilidade de políticas que pareçam viáveis para a comunidade. O socorro
aos bancos aparece tão inevitável quanto o desamparo aos idosos e
trabalhadores.
Por
rádio, televisão e jornal as pessoas são “informadas” de que precisam se
sacrificar, aceitar cortes nos gastos sociais e menos direitos e benefícios
trabalhistas, ou encarar a destruição da economia – tudo em nome da ciência
econômica.
Trabalhadores
devem cumprir maiores jornadas e por mais tempo em suas vidas. Os impostos e as
tarifas públicas serão maiores, mas os serviços públicos serão reduzidos. Já a
transferência de recursos públicos ao rentismo, seja pela compra de ativos
podres, seja pelo pagamento de juros exorbitantes, não está em discussão, essa
é determinada pelo mercado, deus ex machina.
O
necrosamento do tecido econômico e o esgarçamento do social empurram os
acuados, pelo discurso da inevitabilidade econômica, a abraçarem a conclusão de
que “o inferno são os outros”. Se os empregos foram tomados, o Estado onerado e
a paz ameaçada por aqueles de nacionalidade, religião, gênero, opção sexual,
raça ou ideologia diferentes, a solução passa pela sua exclusão ou eliminação.
Ao
explicar a banalidade do mal, Hannah Arendt aponta que as maiores maldades do
mundo podem ser perpetradas por homens comuns, sem razões malignas ou intenções
demoníacas, mas seres humanos que abdicaram totalmente da característica que
mais define o homem como tal, a capacidade de pensar.
Para
Arendt, a manifestação do ato de pensar não é o conhecimento, mas a habilidade
de distinguir o bem do mal, de fazer juízos morais. Essa incapacidade de pensar
permitiu que muitos homens comuns cometessem atos cruéis numa escala monumental
jamais vista, como no nazismo. Sua esperança repousa no “pensar”, como poder
para as pessoas evitarem catástrofes nesses raros momentos de dificuldade.
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