terça-feira, 10 de setembro de 2024

Sete de setembro não foi independência para indígenas, diz professora

Sete de setembro de 1822 marca a Independência formal do Brasil diante de Portugal, data em que o povo brasileiro passou a se considerar independente. Mas, passados 202 anos do dia histórico, comemorado no feriado deste sábado (7), representantes indígenas e pesquisadores ouvidos pela Agência Brasil afirmam que o rompimento com o colonialismo não resultou na independência dos povos originários.

“Não significou a independência dos povos indígenas, tendo em vista que as perseguições, a escravização e a invasão dos territórios continuaram a existir”, afirma o coordenador-geral da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espirito Santo (Apoinme), Paulo Tupiniquim.

“Até a data da Independência e pós-Independência não se falava em direitos dos povos na Constituição do país”, observa. A associação que Tupiniquim coordena atua em uma área onde vivem mais de 213 mil indígenas, em territórios e comunidades de dez estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe.

Outro representante indígena que compartilha da opinião de Tupiniquim é o jornalista Erisvan Guajajara, um dos fundadores do coletivo Mídia Indígena, que produz e divulga conteúdo de interesse voltado à preservação e valorização de povos originários.

Na visão dele, a liberdade pode ter chegado para muitos brasileiros em 1822, mas os povos indígenas ainda não podem usufruir dela.

“Desde a invasão europeia e a colonização genocida, nossos povos e territórios nunca mais foram livres. A Independência de 1822 apenas mudou os gestores desse genocídio contínuo, que passou a ser perpetrado pelas elites brasileiras, não mais pelas portuguesas. Até hoje, sofremos violência e silenciamento diários”, lamenta.

“Nossos territórios, sem a devida demarcação e proteção, são explorados ilegalmente, muitas vezes ao custo de nossas vidas”, denuncia o indígena da terra Arariboia, da Aldeia Lagoa Quieta, no Maranhão, cerca de 600 quilômetros a sudoeste da capital, São Luís.

A diretora do Museu Nacional dos Povos Indígenas, Fernanda Kaingáng, é objetiva ao comentar se a importância dos povos originários foi devidamente reconhecida no processo de Independência. “Não”, afirma a líder do povo Kaingáng, distribuído por São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

“O Brasil ainda possui práticas colonialistas de negação de direitos aos povos indígenas, uma vez que o Estado brasileiro não admitiu os crimes de lesa-humanidade cometidos contra seus primeiros habitantes e não possui mecanismos de reparação dessas violações, nem formas de evitar que se repitam”, completa a primeira indígena a concluir o mestrado em Direito na Universidade de Brasília (UnB).

O Museu Nacional dos Povos Indígenas fica em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro. A instituição foi criada em 1953 pelo antropólogo Darcy Ribeiro, está vinculada à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e é responsável pela política de preservação  e divulgação do patrimônio cultural dos povos indígenas no Brasil. A Funai é uma instituição federal que atua também nos trâmites de demarcação de terras indígenas.

Apagamento

À época da Independência não havia contagem oficial da população indígena, o que só começou a ser feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a partir do censo de 1991.

No entanto, pesquisas indicam que houve substancial diminuição dessa população durante períodos da história brasileira. O IBGE aponta a estimativa de dois milhões no século 16.

Em 1991, quando o censo incluiu a classificação indígena, foram identificadas 294 mil pessoas, o que correspondia a 0,20% da população. Desde então, observou-se acréscimo no contingente, passando para 734 mil em 2000 e 822 mil em 2010. Tanto em 2000 e 2010 o número representou 0,43% da população brasileira.

No censo mais recente, de 2022, o quantitativo saltou para 1,7 milhão, ou seja, 0,83% dos brasileiros. Pouco mais da metade deles (51,2%) vivia na Amazônia Legal, região que abrange nove estados do Norte e Centro-Oeste.

Erisvan Guajajara considera que, além de não terem obtido a independência, os povos originários foram vítimas de tentativa de apagamento.

“Por séculos, nossas culturas, línguas e saberes foram deliberadamente inferiorizados para justificar nosso extermínio, que foi em grande parte exitoso”, constata.

Ele cita que, das cerca de 1,4 mil línguas faladas à época do descobrimento, atualmente restam 274. Dos 1,6 mil povos, sobraram 305. “Apesar disso, seguimos vivos e lutando”, relata.

A diretora do Museu Nacional dos Povos Indígenas cita violações de direitos constitucionais dos indígenas, como à integridade física e cultural, aos territórios demarcados e à proteção das expressões culturais tradicionais materiais e imateriais. Ela acrescenta ainda o que chama de “extrativismo intelectual”.

“Temos lutado pelo reconhecimento de que temos saberes que são ciência e possuímos tecnologias, que têm sido alvo de extrativismo intelectual praticado pela iniciativa privada, mas também por instituições de ensino superior e pelos próprios governos, ao não reconhecerem e não respeitarem nossos direitos de definir nossas necessidades e prioridades”, aponta.

Vários povos

A historiadora e professora Vânia Maria Losada Moreira, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), é referência em estudos sobre a população indígena na história brasileira e coorganizadora do livro Povos indígenas, independência e muitas histórias – Repensando o Brasil no século XIX.

Ela contextualiza que a população indígena existente no começo dos anos 1800 deve ser entendida como povos, no plural. “São povos muito variados do ponto de vista cultural, linguística e dos momentos em que tiveram contato com a sociedade colonial”.

A professora detalha que havia grupos isolados, sem contato com a sociedade colonial. “A Independência do Brasil para esses povos não tem nenhum significado”.

Outros grupos viviam em áreas de expansão da sociedade. Vânia lembra que a corte brasileira declarou, ainda em 1808, “guerras justas” contra esses povos. “Esses povos vão ter uma relação muito ruim com o processo de Independência. Esse processo de guerra não vai cessar com a Independência. Vai ser uma violência continuada”, assinala.

Entre as vítimas dessas guerras, estão os Botocudos, em Minas Gerais e Espírito Santo; Kaingáng e os Guarani Kaiowá, na então capitania de São Paulo; e Carajás, em Goiás e no Pará, dentre outros.

A historiadora destaca que havia um terceiro grupo de indígenas, os que viviam em vilas, povoados, missões religiosas, aldeias e até em casas de colonos. Segundo ela, esses indígenas, sim, tiveram participação ativa no processo de Independência. “Estavam preocupados em garantir três direitos básicos: à liberdade, à posse de suas terras e à própria vida”.

Um dos trabalhos da pesquisadora é o site Vila Indígenas Pombalinas, no qual é possível identificar núcleos de população indígena como vilas e povoados durante o processo de Independência.

Vânia Moreira considera que, ao fim, a Independência não teve efeito positivo para os indígenas que viviam mais integrados à sociedade, em vilas e povoados, por exemplo. Ela conta que, no período colonial, eles tinham alguns direitos e liberdades, como propriedades, principalmente coletivas e até participação política.

“Eles participavam da governança das vilas e lugares, eram vereadores, juízes ordinários e ocupavam ainda cargos nas milícias e ordenanças”, diz.

Com a Independência do Brasil, “esse processo tendeu a ser corroído e destruído”, opina. “O governo imperial não garantiu essa cidadania, especialmente os direitos de participação política e demarcação de seus territórios”.

A professora da UFRRJ também entende que, no desenvolvimento da sociedade brasileira após 1822, há um processo de apagamento da presença indígena.

“Há um projeto de assimilação dos povos indígenas no sentido de eles deixarem de ser indígenas para se tornarem brasileiros, apagando a especificidade desses povos em termos de sua contribuição histórica e dos seus direitos particulares”, avalia.

Constituição

A especialista em história indígena registra que o principal marco legal em defesa dessa população se deu mais de 160 anos depois da Independência do Brasil. É a Constituição Cidadã, de 1988.

“É uma Constituição que reconhece que os povos indígenas são povos originários, que reconhece os direitos às terras e a sua autodeterminação nessas terras. Então, a Constituição de 88, de certa forma, foi o marco legal mais importante para os povos indígenas”.

Outro marco é a criação do Ministério dos Povos Indígenas, instituído em 2023. À frente da pasta, a ministra Sonia Guajajara é a primeira indígena a ocupar um cargo de ministro na história brasileira.

Paulo Tupiniquim, da associação que representa indígenas da costa leste, reconhece que foi necessária a Constituição Cidadã para, ao menos no papel, os povos originários terem a condição igualada à do restante da população.

“Só com a Constituição [de 1988] que os povos indígenas passaram a ser autônomos, ter os seus direitos garantidos, deixaram de ser tutelados e ganharam o seu direito de cidadão e cidadã de fato”, assegura.

Conflitos atuais

Paulo Tupiniquim adverte, no entanto, que ainda pairam ameaças sobre as condições de vida dessa população.

“As perseguições, as invasões e os assassinatos ainda continuam até hoje”, assinala. Ele aponta como exemplo as discussões que tentam impor o chamado marco temporal, tese pela qual os indígenas somente têm direito às terras que estavam em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou que estavam em disputa judicial à época.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu contra a tese uma vez, mas a matéria está novamente na Corte, após o Congresso Nacional ter aprovado Projeto de Lei que validou o marco, inclusive derrubando um veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A jurista e diretora do Museu Nacional dos Povos Indígenas, Fernanda Kaingáng, aponta o marco temporal e a crise de saúde da população Yanomami – provocada pela ação ilegal de garimpeiros em terras demarcadas em Roraima e no extremo norte do Amazonas – como lutas atuais das populações indígenas em busca de independência.

“A necessidade de assegurar direitos fundamentais aos povos indígenas como dignidade, segurança, geração de renda, saúde, acesso à educação em todos os níveis e demarcação dos territórios pode ser constatada pela crise humanitária Yanomami”, preconiza.

Ela estende a crítica ao Congresso Nacional e ao STF, por causa de debates em torno do marco temporal. “Se verificam tentativas de conciliação que se propõem a violar cláusulas pétreas de um Estado Democrático de Direito”, opina.

No fim de agosto, a Articulação dos Povos Indígenas (Apib), principal organização que atua na defesa dos indígenas, decidiu se retirar da audiência de conciliação sobre a tese no Supremo, por insatisfação com os trâmites adotados.

A professora Vânia Moreira, da UFRRJ, também critica o desrespeito à soberania indígena em territórios demarcados. “A presença de garimpeiros, madeireiros e invasores das terras é um problema crônico e que se torna pior à medida que o agronegócio tenta avançar sobre terras que não lhe pertencem”, aponta.

Tupiniquim, da Apoinme, aponta que políticas efetivas de demarcação de território e reconhecimento de lideranças fazem parte do caminho a ser seguido para que haja independência dos indígenas.

“Que libertação é essa onde os nossos direitos não são respeitados, onde nos perseguem, nos matam, nos exploram e invadem nossos territórios”, questiona.

“A libertação, para nós, só será decretada a partir de quando os nossos territórios forem demarcados, nossas lideranças forem reconhecidas como lideranças de fato, e o Estado reconhecer que estamos aqui muito antes de essa terra ser chamada Brasil e sim conhecida por nós como “ybyrapytanga”, diz.

De acordo com o Dicionário Tupi-Guarani, ybyrapytanga é a palavra que deu origem ao termo pau-brasil.

“Então, sim, poderemos dizer que fazemos parte da Independência, mas uma independência justa, qualitativa e quantitativa para todos os povos indígenas do Brasil”, define.

Erisvan Guajajara, criador do Mídia Indígena, acredita no poder da comunicação para demonstrar à sociedade a importância e o valor dos indígenas.

“Nossas identidades e culturas têm sido conservadas com muita resistência, apesar do preconceito e das mentiras que circulam. Quando as pessoas conhecem nossa forma de viver em harmonia com a natureza, nossas tradições e cultura, elas entendem o quanto somos essenciais para a manutenção da vida na Terra”, finaliza.

 

¨      Ministro da Justiça afirma que direitos indígenas são cláusula pétrea e assina portaria declaratória de três terras

Na tarde desta quinta-feira (05), o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, reuniu lideranças das Terras Indígenas (TIs) Cobra Grande, Maró e Apiaká do Pontal e Isolados para entregar, após um jejum de seis anos sem declarar nenhuma terra indígena, as portarias declaratórias de seus territórios.

A última assinatura do documento, atribuição do Ministério da Justiça, se deu em 2018 com a declaração da TI Kaxuyana Tunayana, ainda no governo Temer. Essas foram as primeiras portarias declaratórias assinadas desde o início do terceiro mandato do governo Lula, iniciado um ano e oito meses atrás com a promessa de um olhar atento para os povos indígenas.

Essas foram as primeiras portarias declaratórias assinadas desde o início do terceiro mandato do governo Lula

A medida também se dá em um momento inédito da gestão do ministro Lewandowski, que se reúne pela primeira vez com lideranças indígenas, desde que assumiu, em fevereiro, a pasta ministerial. O encontro com o ministro é uma demanda dos povos que tem se estendido ao longo dos mais de sete meses de sua gestão.

Os povos Arapiun, Jaraqui e Tapajó, da TI Cobra Grande, localizada no município de Santarém, no Pará, aguardavam a medida desde 2015. Já os povos Borari e Arapiun, da TI Maró, situados no mesmo município paraense, e Apiaká, da TI Apiaká do Pontal e Isolados, que fica no Mato Grosso e também abriga povos em isolamento, estão há 13 anos na espera pela assinatura do documento que reconhece a tradicionalidade de seus territórios.

O encontro com o ministro é uma demanda dos povos que tem se estendido ao longo dos seis meses de sua gestão

“A gente conseguiu, depois de anos, que o Ministério da Justiça declarasse a terra indígena Maró, assim como a terra indígena Cobra Grande, no Baixo Tapajós, como terras indígenas oficialmente ocupadas. Isso, para nós, demonstra um reconhecimento constitucional do Estado brasileiro, através do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em declarar essas terras indígenas”, afirmou Adenilson Alves de Souza,liderança do povo Borari da TI Maró.

“A gente conseguiu, depois de anos, que o Ministério da Justiça declarasse a terra indígena Maró, assim como a terra indígena Cobra Grande, no Baixo Tapajós”

Após a emissão das portarias, deve ser realizada a demarcação física destas áreas, assim como a remoção e o reassentamento ou indenização de eventuais ocupantes não indígenas, se for o caso. As terras, então, ficam então aptas para serem homologadas pelo presidente da República.

As TIs Maró, Cobra Grande e Apiaká do Pontal e Isolados passam agora a fazer parte de um conjunto de 64 terras nesta fase administrativa, aguardando homologação. Restam, ainda, outras 44 terras que já foram identificadas e delimitadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e aguardam a emissão de portaria declaratória pelo ministro da Justiça.

As TIs Maró, Cobra Grande e Apiaká do Pontal e Isolados passam agora a fazer parte de um conjunto de 64 terras nesta fase administrativa, aguardando homologação

Além destas, pelo menos 157 TIs estão atualmente em processo de identificação e delimitação pela Funai e outras demandas territoriais indígenas 562 ainda não tiveram nenhuma providência do Estado para o início de seu processo de regularização.

·        Direitos indígenas, cláusulas pétreas

No momento da assinatura, o ministro reconheceu a importância de se fazer avançar as demarcações das terras indígenas, “apesar da discussão que existe hoje entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional”, referindo-se às ações que discutem a constitucionalidade da Lei 14.701/2023. A norma, aprovada pelo Congresso, é considerada inconstitucional e foi questionada junto ao STF. Recentemente, os povos indígenas decidiram se retirar de uma mesa conciliatória criada pelo ministro Gilmar Mendes para discutir o tema.

A medida parlamentar tem causado uma série de empecilhos no andamento dos procedimentos demarcatórios, tendo em seu bojo a tese do marco temporal como critério para demarcação das terras indígenas. Em setembro do ano passado, essa tese foi afastada pela Suprema Corte e considerada inconstitucional, mas a decisão foi ignorada pelo Congresso Nacional, que votou e promulgou a lei meses depois do julgamento no STF.

O ministro reconheceu a importância de se fazer avançar as demarcações das terras indígenas, “apesar da discussão que existe hoje entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional”

Por isso, “nós escolhemos três áreas que não têm problemas, não estão envolvidas nessa discussão, mas que merecidamente devem ser protegidas por um ato formal do governo brasileiro”, explicou o ministro.

Para Lewandowski, a declaração das terras indígenas “cumpre com aquilo que a Constituição determina em relação aos povos indígenas, que é um direito fundamental e, que é, portanto, uma cláusula pétrea. Essa palavra pétrea vem de pedra, que não pode ser mudada, é dura. Então, os direitos que constituem cláusulas pétreas são direitos que não podem ser mudados, não podem ser alterados, nem por emendas constitucionais e, muito menos, por leis ordinárias ou qualquer outro ato”, defendeu o ministro.

A declaração das terras indígenas “cumpre com aquilo que a Constituição determina em relação aos povos indígenas, que é um direito fundamental e, que é, portanto, uma cláusula pétrea”

Além do encontro com o ministro, as lideranças em Brasília também percorreram os gabinetes dos ministros do STF para entrega de um documento que reforça o pedido para que a Suprema Corte declare a inconstitucionalidade da Lei 14.701. Sua declaração para as lideranças é fundamental para que se impeça as sucessivas tentativas de negociação de seus direitos, garantidos constitucionalmente.

 

Fonte: Agencia Brasil/Cimi

 

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