“Se para sobreviver você precisa trabalhar
50 ou 60 horas por semana, a liberdade é muito limitada”, diz professor
Grandes expectativas,
sala cheia e um clima digno da cidade onde mora: tudo pronto para receber o
intelectual canadense Nick Srnicek, professor de Economia Digital do King's
College de Londres, que em minutos falará sobre trabalho, tempo livre e
plataformas para um auditório com estudiosos, políticos e líderes. Enquanto
isso, do lado de fora, na Praça San Martín [Buenos Aires], centenas de pessoas
enfrentam o retorno do trabalho em uma tarde chuvosa.
A ocasião é a da
realização do painel Capitalismo de Plataformas e Pós-trabalho, no centro de
pesquisa e projeto de políticas públicas Fundar, no bairro Retiro. De um lado
de Srnicek está Maia Volcovinsky, da comissão diretiva da União de Empregados
da Justiça da Nação (UEJN). Do outro, senta-se Darío Judzik, decano executivo
da Escola de Governo da Universidade Torcuato Di Tella e coautor do livro
Automatizados. A moderação fica sob a responsabilidade de Juan Manuel
Ottaviano, pesquisador sobre trabalho e renda na Fundar.
Autor de Capitalismo
de plataformas (2019) e After work (2023, escrito com Helen Hester), Srnicek
estuda como a economia política interage com a tecnologia. Ressalta que hoje o
futuro do trabalho não é a programação, mas, sim, as tarefas de cuidado, cada
vez mais demandadas no mercado de trabalho e também dentro das famílias. E
propõe um novo paradigma, o pós-trabalho: maximizar o tempo livre, um
elemento-chave em sua concepção de liberdade, muito diferente da que percorre
estes pampas em tempos mileístas.
“Além da ampliação do
tempo livre, o crucial é controlar o nosso próprio tempo. Isto inclui o
controle no local de trabalho, sobre os ritmos de trabalho e sobre as tarefas
que somos exigidos a realizar. Em última análise, trata-se de um conflito de
classes e de que as classes trabalhadoras ganhem poder”, argumenta Srnicek em
determinado momento do painel.
Uma hora e meia
depois, o autor canadense amplia essas ideias a sós com El Diario e fala sobre
a liberdade em tempos libertários, a mentalidade por trás do mundo cripto e o
fardo da “Geração Sanduíche”, que deve cuidar dos filhos e pais
simultaneamente. Em um sistema que exige tanto e devolve tão pouco,
conseguiremos recuperar a liberdade de dispor do nosso tempo?
<><> Eis a
entrevista.
• Em seu trabalho, você fala da “Geração
Sanduíche”, pessoas que precisam cuidar dos filhos e também dos pais. É
possível para essa geração ter tempo livre?
Enquanto as coisas
continuarem assim, não é possível. O cuidado de pessoas idosas é uma área muito
subfinanciada em quase todos os países do mundo e depende muito da família, que
os atende de modo não remunerado. Por mais que você ame seus pais e filhos, o
trabalho de cuidado continua sendo trabalho e é esgotador, especialmente quando
é o tempo todo.
Além disso, hoje, as
pessoas estão muito mais dispersas geograficamente. Meus pais estão do outro
lado do oceano e não posso cuidar deles. Isso significa que se o cuidado não
for fornecido através do Estado ou do mercado de forma acessível, os nossos idosos
acabarão sofrendo.
O Japão é um alerta: é
um dos países com maior envelhecimento e depende tanto do cuidado familiar, que
há muitos casos de abuso contra idosos, porque as pessoas estão cansadas de
cuidar deles. Este é o futuro que pode aguardar muitos países, caso não comecem
a pensar em como cuidar de seus idosos de uma forma mais sustentável e
concreta.
• Apesar dos avanços na luta contra a
desigualdade de gênero, na maioria dos casos, as tarefas de cuidado permanecem
sob a responsabilidade das mulheres. Por quê?
Por causa do
patriarcado. Nos últimos 40 ou 50 anos, na maioria dos países, as mulheres
reduziram o tempo que dedicam ao trabalho não remunerado no lar e os homens o
aumentaram um pouco. No entanto, permanece sendo bastante desigual e as
mulheres continuam dedicando mais anos a esse trabalho do que os homens, mesmo
nos melhores casos.
Em parte, deve-se à
desigualdade salarial entre homens e mulheres. Em média, as mulheres tendem a
ganhar menos do que os homens, nesse sentido, se alguém tem de ficar em casa e
realizar o trabalho de cuidado não remunerado, faz sentido que seja a pessoa que
ganha menos.
Há anos os economistas
tentam explicar a desigualdade salarial entre homens e mulheres. Tem a ver
principalmente com coisas como a possibilidade de que a mulher fique grávida e
a preocupação dos chefes de que ela falte para cuidar dos filhos. Essas desigualdades
no lar, no trabalho, na renda e no tempo livre estão interligadas e, em última
instância, são inerentes ao patriarcado.
• Como você menciona em seus livros,
continuamos dedicando praticamente o mesmo número de horas às tarefas
domésticas de um século atrás. Por que isso acontece, se há tanta tecnologia
que pode nos ajudar?
Por um lado, as
expectativas em torno do trabalho reprodutivo aumentaram. Como se tornou mais
fácil lavar a roupa, espera-se que em vez de lavá-la uma vez por mês ou por
semana, isto ocorra diariamente. Em vez de limpar a casa de vez em quando,
agora, espera-se que seja mantida limpa o tempo todo.
Outra chave é que, no
início do século XX, em geral, esse trabalho era feito de forma coletiva.
Costumava-se lavar as roupas em grupo, mas com a chegada da máquina de lavar
essa tarefa passou a ser individualizada e a ser feita pelas donas de casa.
Assim, diminuiu-se o número de pessoas que realizam essas tarefas e receberam
mais trabalho.
Por outro lado, grande
parte dessa tecnologia não foi necessariamente desenvolvida para ser a mais
eficiente, mas, ao contrário, para atender a uma residência unifamiliar em vez
de parte de um bairro, onde as economias de escala e a eficiência envolvidas
poderiam ser aproveitadas. Poderíamos imaginar um mundo alternativo onde em vez
de ter máquinas de lavar e secar em casa, tivéssemos lavanderias coletivas.
Contudo, essas tecnologias não foram desenvolvidas e esse caminho foi
desestimulado.
• Falando em tecnologia, muitos
aplicativos são criados para poupar o nosso tempo, mas também há alguns que são
tão viciantes que passamos horas rolando [a tela], que nos “roubam” tempo. O
que você pensa sobre o papel dos aplicativos móveis na gestão de nosso tempo?
Uma das interpretações
mais interessantes que vi é que a rolagem [da tela], em muitos casos, é o
objetivo principal de muitos desses aplicativos. Muitas vezes, você só quer
matar o tempo e embora não seja o ideal, é sintomático de um cansaço. As
pessoas chegam do trabalho e não querem fazer nada, porque não possuem energia
e dinheiro.
É também um
esgotamento das alternativas disponíveis. Em muitos casos, os locais
tradicionais para a vida social são cada vez mais difíceis de ser encontrados,
então, a rolagem [de tela] se torna uma forma de passar o tempo. [O teórico
marxista Antonio] Gramsci diria que é um sintoma mórbido de nosso momento
atual.
• Vejo um paradoxo na coexistência da
cultura da agitação [hustle culture, um modelo aspiracional que glorifica o
trabalho excessivo] e a do cryptobro, que não incentiva ganhar dinheiro através
do trabalho assalariado, mas da negociação de criptomoedas. Como avalia que as
duas tendências interagem?
Penso que uma das
chaves para a hustle culture é que, no sentido mais tradicional de ideologia,
busca explicar a situação das pessoas dentro de uma estrutura particular e com
base no porquê talvez ainda não tenham alcançado sucesso na vida. Diz-se a elas
que não se dedicaram o suficiente, que precisam se esforçar mais, acordar mais
cedo, ler mais livros sobre produtividade. Há uma narrativa que tenta explicar
esse fracasso e também oferece uma oportunidade de sair dessa situação e
potencialmente ter sucesso.
Penso que isso tem
muito a ver com o Bitcoin e as criptomoedas, onde há uma espécie de mentalidade
de loteria, do tipo: “Um dia desses, esse token que comprei vai disparar e vou
ter um milhão de dólares de uma vez”. Isto parece ser uma grande parte da cultura
cripto, e os estudos que vi sobre aqueles que aderem a criptomoedas mostram que
costumam ter problemas econômicos. É o desespero para sair dessa situação
jogando na loteria.
• Mesmo em países com crises econômicas
como o nosso, existe um futuro em que seja possível ter mais tempo livre?
Sim. Não com o governo
atual, mas sim. Uma das razões de muitos políticos não tocarem neste assunto é
por ser difícil, é caro, e os problemas não são evidentes de início, mas
aparecem nos espaços domésticos, nas vidas privadas, sem necessariamente uma
expressão pública.
A maior expressão
pública é o sistema de saúde: quantos idosos dependem dele, quanto tempo as
pessoas vivem. Como passamos a ter uma população mais idosa, esses problemas se
tornarão mais visíveis e haverá pessoas pensando em como organizar e mobilizar
os afetados para fazer pressão coletiva em busca de uma resposta.
• Em sua conferência na Faculdade de
Ciências Econômicas, menciona que nesta visita à Argentina é a primeira vez que
ouve falar de turismo social, iniciado aqui no primeiro peronismo. Qual aspecto
deste conceito mais te surpreendeu?
Fiquei impactado por
ter sido orientado às classes trabalhadoras e centrado em algo que, em uma
perspectiva neoliberal, parece um excesso: as férias, que não estão diretamente
relacionadas às necessidades econômicas de um país. Tipos de políticas assim apontavam
para o gozo do tempo livre e são um grande exemplo de como o Estado pode apoiar
a possibilidade de que todos, de forma universal, desfrutem o seu tempo livre,
sem que isto reduza a compra de bens de consumo.
• Outras políticas públicas argentinas em
relação ao tempo livre chamaram a sua atenção?
Hoje, vi uma revista
de 1949 [material promocional da Colônia Terceira Idade, da Fundação Eva Perón]
que mostra uma visão admirável e uma realidade prática do que o cuidado dos
idosos pode ser para as classes trabalhadoras. Essa abordagem me chamou a atenção,
porque o bem público, para a minha coautora Helen [Hester] e eu, vai além das
necessidades básicas.
E era exatamente isso
que essa revista refletia: instalações e ambientes de abundância que superavam
o necessário para o cuidado dos idosos. É impressionante que isto tenha sido
realizado nos anos 1940. Parece que há aqui uma rica herança, não muito conhecida
no mundo de língua inglesa, de reflexão sobre o trabalho de cuidado, o trabalho
reprodutivo e como dar às pessoas mais tempo livre e de melhor qualidade.
• Como os espaços públicos podem fomentar,
hoje, um uso mais adequado do tempo livre?
Devemos oferecer
opções e formas de aproveitar o tempo livre que não se limitem a navegar no
celular, comprar algo pela internet e gastar dinheiro, mas que se baseiem em
diferentes formas de viver socialmente, agir coletivamente e, por exemplo,
desfrutar um tempo bom com a família e os amigos, entre outras coisas.
Não sei como é aqui,
mas no Reino Unido, onde moro, houve um fechamento em massa desses espaços
públicos. É um problema mesmo, pois, então..., para onde você vai? É preciso
abrir os espaços públicos e que haja atividades esportivas e de outros tipos
coordenadas institucionalmente para que, por exemplo, os adolescentes não
fiquem só rolando por aí, sem nada para fazer. São todas formas de fomentar um
uso mais prazeroso do tempo livre, que não dependa apenas de gastar dinheiro.
• Em seus livros, você analisa o conceito
de liberdade em relação à necessidade de reduzir o trabalho não remunerado. No
entanto, em nosso país e em outros com políticos libertários, a liberdade hoje
significa outra coisa. Como recuperar este conceito a partir dos setores
progressistas, para que a liberdade volte a ser sinônimo de tempo livre ou, ao
menos, deixar de estar vinculado às necessidades do capitalismo?
A esquerda poderia
facilmente vencer a batalha sobre o termo, porque a ideia oferecida pela
direita é uma concepção mínima de liberdade, mais aplicável às grandes empresas
do que às pessoas. O indivíduo não está preocupado com a regulação estatal, sua
concepção de liberdade não é essa, mas a do controle sobre o seu próprio tempo.
Quando você está no
trabalho, não possui esse controle, porque ele é ditado por um chefe, um
aplicativo e, em última instância, pelo mercado, para que a empresa continue
sendo rentável. Existe uma razão para que todos odeiem as segundas-feiras:
quando você precisa voltar ao trabalho, perde a sua liberdade. As pessoas veem
como funcionam essas diferentes camadas de falta de liberdade. Penso que a
esquerda pode vencer a discussão dizendo: “Vamos oferecer uma visão melhor da
liberdade, e é esta”.
• A suposta liberdade proposta por Milei
acaba afetando os trabalhadores mais precarizados, como aqueles que oferecem
seus serviços em aplicativos, plataformas que prometem liberdade, mas também
exercem forte controle. Paradoxalmente, muitos deles votaram neste presidente.
Por que esta aparente contradição?
Penso que muitos dos
que trabalham por aplicativos almejam a flexibilidade, que é uma forma de
liberdade real, a de não ter que se deslocar até o trabalho. O problema é que
os aplicativos são tão exploradores que a pouca liberdade que oferecem é
limitada pelo fato de se ter que trabalhar muitas horas para chegar ao fim do
mês.
Então, não me
surpreende que exista esse desejo de liberdade que depois se expressa no voto
em Milei. Se para sobreviver você precisa trabalhar 50 ou 60 horas por semana,
a liberdade é muito limitada. Sua vida inteira depende de entregar a maior
parte dela ao capitalismo.
Fonte: Entrevista com
Nick Srnicek, para Karina Niebla, no El Diario, com tradução do Cepat, em IHU
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