quinta-feira, 5 de setembro de 2024

“Se para sobreviver você precisa trabalhar 50 ou 60 horas por semana, a liberdade é muito limitada”, diz professor

Grandes expectativas, sala cheia e um clima digno da cidade onde mora: tudo pronto para receber o intelectual canadense Nick Srnicek, professor de Economia Digital do King's College de Londres, que em minutos falará sobre trabalho, tempo livre e plataformas para um auditório com estudiosos, políticos e líderes. Enquanto isso, do lado de fora, na Praça San Martín [Buenos Aires], centenas de pessoas enfrentam o retorno do trabalho em uma tarde chuvosa.

A ocasião é a da realização do painel Capitalismo de Plataformas e Pós-trabalho, no centro de pesquisa e projeto de políticas públicas Fundar, no bairro Retiro. De um lado de Srnicek está Maia Volcovinsky, da comissão diretiva da União de Empregados da Justiça da Nação (UEJN). Do outro, senta-se Darío Judzik, decano executivo da Escola de Governo da Universidade Torcuato Di Tella e coautor do livro Automatizados. A moderação fica sob a responsabilidade de Juan Manuel Ottaviano, pesquisador sobre trabalho e renda na Fundar.

Autor de Capitalismo de plataformas (2019) e After work (2023, escrito com Helen Hester), Srnicek estuda como a economia política interage com a tecnologia. Ressalta que hoje o futuro do trabalho não é a programação, mas, sim, as tarefas de cuidado, cada vez mais demandadas no mercado de trabalho e também dentro das famílias. E propõe um novo paradigma, o pós-trabalho: maximizar o tempo livre, um elemento-chave em sua concepção de liberdade, muito diferente da que percorre estes pampas em tempos mileístas.

“Além da ampliação do tempo livre, o crucial é controlar o nosso próprio tempo. Isto inclui o controle no local de trabalho, sobre os ritmos de trabalho e sobre as tarefas que somos exigidos a realizar. Em última análise, trata-se de um conflito de classes e de que as classes trabalhadoras ganhem poder”, argumenta Srnicek em determinado momento do painel.

Uma hora e meia depois, o autor canadense amplia essas ideias a sós com El Diario e fala sobre a liberdade em tempos libertários, a mentalidade por trás do mundo cripto e o fardo da “Geração Sanduíche”, que deve cuidar dos filhos e pais simultaneamente. Em um sistema que exige tanto e devolve tão pouco, conseguiremos recuperar a liberdade de dispor do nosso tempo?

<><> Eis a entrevista.

•        Em seu trabalho, você fala da “Geração Sanduíche”, pessoas que precisam cuidar dos filhos e também dos pais. É possível para essa geração ter tempo livre?

Enquanto as coisas continuarem assim, não é possível. O cuidado de pessoas idosas é uma área muito subfinanciada em quase todos os países do mundo e depende muito da família, que os atende de modo não remunerado. Por mais que você ame seus pais e filhos, o trabalho de cuidado continua sendo trabalho e é esgotador, especialmente quando é o tempo todo.

Além disso, hoje, as pessoas estão muito mais dispersas geograficamente. Meus pais estão do outro lado do oceano e não posso cuidar deles. Isso significa que se o cuidado não for fornecido através do Estado ou do mercado de forma acessível, os nossos idosos acabarão sofrendo.

O Japão é um alerta: é um dos países com maior envelhecimento e depende tanto do cuidado familiar, que há muitos casos de abuso contra idosos, porque as pessoas estão cansadas de cuidar deles. Este é o futuro que pode aguardar muitos países, caso não comecem a pensar em como cuidar de seus idosos de uma forma mais sustentável e concreta.

•        Apesar dos avanços na luta contra a desigualdade de gênero, na maioria dos casos, as tarefas de cuidado permanecem sob a responsabilidade das mulheres. Por quê?

Por causa do patriarcado. Nos últimos 40 ou 50 anos, na maioria dos países, as mulheres reduziram o tempo que dedicam ao trabalho não remunerado no lar e os homens o aumentaram um pouco. No entanto, permanece sendo bastante desigual e as mulheres continuam dedicando mais anos a esse trabalho do que os homens, mesmo nos melhores casos.

Em parte, deve-se à desigualdade salarial entre homens e mulheres. Em média, as mulheres tendem a ganhar menos do que os homens, nesse sentido, se alguém tem de ficar em casa e realizar o trabalho de cuidado não remunerado, faz sentido que seja a pessoa que ganha menos.

Há anos os economistas tentam explicar a desigualdade salarial entre homens e mulheres. Tem a ver principalmente com coisas como a possibilidade de que a mulher fique grávida e a preocupação dos chefes de que ela falte para cuidar dos filhos. Essas desigualdades no lar, no trabalho, na renda e no tempo livre estão interligadas e, em última instância, são inerentes ao patriarcado.

•        Como você menciona em seus livros, continuamos dedicando praticamente o mesmo número de horas às tarefas domésticas de um século atrás. Por que isso acontece, se há tanta tecnologia que pode nos ajudar?

Por um lado, as expectativas em torno do trabalho reprodutivo aumentaram. Como se tornou mais fácil lavar a roupa, espera-se que em vez de lavá-la uma vez por mês ou por semana, isto ocorra diariamente. Em vez de limpar a casa de vez em quando, agora, espera-se que seja mantida limpa o tempo todo.

Outra chave é que, no início do século XX, em geral, esse trabalho era feito de forma coletiva. Costumava-se lavar as roupas em grupo, mas com a chegada da máquina de lavar essa tarefa passou a ser individualizada e a ser feita pelas donas de casa. Assim, diminuiu-se o número de pessoas que realizam essas tarefas e receberam mais trabalho.

Por outro lado, grande parte dessa tecnologia não foi necessariamente desenvolvida para ser a mais eficiente, mas, ao contrário, para atender a uma residência unifamiliar em vez de parte de um bairro, onde as economias de escala e a eficiência envolvidas poderiam ser aproveitadas. Poderíamos imaginar um mundo alternativo onde em vez de ter máquinas de lavar e secar em casa, tivéssemos lavanderias coletivas. Contudo, essas tecnologias não foram desenvolvidas e esse caminho foi desestimulado.

•        Falando em tecnologia, muitos aplicativos são criados para poupar o nosso tempo, mas também há alguns que são tão viciantes que passamos horas rolando [a tela], que nos “roubam” tempo. O que você pensa sobre o papel dos aplicativos móveis na gestão de nosso tempo?

Uma das interpretações mais interessantes que vi é que a rolagem [da tela], em muitos casos, é o objetivo principal de muitos desses aplicativos. Muitas vezes, você só quer matar o tempo e embora não seja o ideal, é sintomático de um cansaço. As pessoas chegam do trabalho e não querem fazer nada, porque não possuem energia e dinheiro.

É também um esgotamento das alternativas disponíveis. Em muitos casos, os locais tradicionais para a vida social são cada vez mais difíceis de ser encontrados, então, a rolagem [de tela] se torna uma forma de passar o tempo. [O teórico marxista Antonio] Gramsci diria que é um sintoma mórbido de nosso momento atual.

•        Vejo um paradoxo na coexistência da cultura da agitação [hustle culture, um modelo aspiracional que glorifica o trabalho excessivo] e a do cryptobro, que não incentiva ganhar dinheiro através do trabalho assalariado, mas da negociação de criptomoedas. Como avalia que as duas tendências interagem?

Penso que uma das chaves para a hustle culture é que, no sentido mais tradicional de ideologia, busca explicar a situação das pessoas dentro de uma estrutura particular e com base no porquê talvez ainda não tenham alcançado sucesso na vida. Diz-se a elas que não se dedicaram o suficiente, que precisam se esforçar mais, acordar mais cedo, ler mais livros sobre produtividade. Há uma narrativa que tenta explicar esse fracasso e também oferece uma oportunidade de sair dessa situação e potencialmente ter sucesso.

Penso que isso tem muito a ver com o Bitcoin e as criptomoedas, onde há uma espécie de mentalidade de loteria, do tipo: “Um dia desses, esse token que comprei vai disparar e vou ter um milhão de dólares de uma vez”. Isto parece ser uma grande parte da cultura cripto, e os estudos que vi sobre aqueles que aderem a criptomoedas mostram que costumam ter problemas econômicos. É o desespero para sair dessa situação jogando na loteria.

•        Mesmo em países com crises econômicas como o nosso, existe um futuro em que seja possível ter mais tempo livre?

Sim. Não com o governo atual, mas sim. Uma das razões de muitos políticos não tocarem neste assunto é por ser difícil, é caro, e os problemas não são evidentes de início, mas aparecem nos espaços domésticos, nas vidas privadas, sem necessariamente uma expressão pública.

A maior expressão pública é o sistema de saúde: quantos idosos dependem dele, quanto tempo as pessoas vivem. Como passamos a ter uma população mais idosa, esses problemas se tornarão mais visíveis e haverá pessoas pensando em como organizar e mobilizar os afetados para fazer pressão coletiva em busca de uma resposta.

•        Em sua conferência na Faculdade de Ciências Econômicas, menciona que nesta visita à Argentina é a primeira vez que ouve falar de turismo social, iniciado aqui no primeiro peronismo. Qual aspecto deste conceito mais te surpreendeu?

Fiquei impactado por ter sido orientado às classes trabalhadoras e centrado em algo que, em uma perspectiva neoliberal, parece um excesso: as férias, que não estão diretamente relacionadas às necessidades econômicas de um país. Tipos de políticas assim apontavam para o gozo do tempo livre e são um grande exemplo de como o Estado pode apoiar a possibilidade de que todos, de forma universal, desfrutem o seu tempo livre, sem que isto reduza a compra de bens de consumo.

•        Outras políticas públicas argentinas em relação ao tempo livre chamaram a sua atenção?

Hoje, vi uma revista de 1949 [material promocional da Colônia Terceira Idade, da Fundação Eva Perón] que mostra uma visão admirável e uma realidade prática do que o cuidado dos idosos pode ser para as classes trabalhadoras. Essa abordagem me chamou a atenção, porque o bem público, para a minha coautora Helen [Hester] e eu, vai além das necessidades básicas.

E era exatamente isso que essa revista refletia: instalações e ambientes de abundância que superavam o necessário para o cuidado dos idosos. É impressionante que isto tenha sido realizado nos anos 1940. Parece que há aqui uma rica herança, não muito conhecida no mundo de língua inglesa, de reflexão sobre o trabalho de cuidado, o trabalho reprodutivo e como dar às pessoas mais tempo livre e de melhor qualidade.

•        Como os espaços públicos podem fomentar, hoje, um uso mais adequado do tempo livre?

Devemos oferecer opções e formas de aproveitar o tempo livre que não se limitem a navegar no celular, comprar algo pela internet e gastar dinheiro, mas que se baseiem em diferentes formas de viver socialmente, agir coletivamente e, por exemplo, desfrutar um tempo bom com a família e os amigos, entre outras coisas.

Não sei como é aqui, mas no Reino Unido, onde moro, houve um fechamento em massa desses espaços públicos. É um problema mesmo, pois, então..., para onde você vai? É preciso abrir os espaços públicos e que haja atividades esportivas e de outros tipos coordenadas institucionalmente para que, por exemplo, os adolescentes não fiquem só rolando por aí, sem nada para fazer. São todas formas de fomentar um uso mais prazeroso do tempo livre, que não dependa apenas de gastar dinheiro.

•        Em seus livros, você analisa o conceito de liberdade em relação à necessidade de reduzir o trabalho não remunerado. No entanto, em nosso país e em outros com políticos libertários, a liberdade hoje significa outra coisa. Como recuperar este conceito a partir dos setores progressistas, para que a liberdade volte a ser sinônimo de tempo livre ou, ao menos, deixar de estar vinculado às necessidades do capitalismo?

A esquerda poderia facilmente vencer a batalha sobre o termo, porque a ideia oferecida pela direita é uma concepção mínima de liberdade, mais aplicável às grandes empresas do que às pessoas. O indivíduo não está preocupado com a regulação estatal, sua concepção de liberdade não é essa, mas a do controle sobre o seu próprio tempo.

Quando você está no trabalho, não possui esse controle, porque ele é ditado por um chefe, um aplicativo e, em última instância, pelo mercado, para que a empresa continue sendo rentável. Existe uma razão para que todos odeiem as segundas-feiras: quando você precisa voltar ao trabalho, perde a sua liberdade. As pessoas veem como funcionam essas diferentes camadas de falta de liberdade. Penso que a esquerda pode vencer a discussão dizendo: “Vamos oferecer uma visão melhor da liberdade, e é esta”.

•        A suposta liberdade proposta por Milei acaba afetando os trabalhadores mais precarizados, como aqueles que oferecem seus serviços em aplicativos, plataformas que prometem liberdade, mas também exercem forte controle. Paradoxalmente, muitos deles votaram neste presidente. Por que esta aparente contradição?

Penso que muitos dos que trabalham por aplicativos almejam a flexibilidade, que é uma forma de liberdade real, a de não ter que se deslocar até o trabalho. O problema é que os aplicativos são tão exploradores que a pouca liberdade que oferecem é limitada pelo fato de se ter que trabalhar muitas horas para chegar ao fim do mês.

Então, não me surpreende que exista esse desejo de liberdade que depois se expressa no voto em Milei. Se para sobreviver você precisa trabalhar 50 ou 60 horas por semana, a liberdade é muito limitada. Sua vida inteira depende de entregar a maior parte dela ao capitalismo.

 

Fonte: Entrevista com Nick Srnicek, para Karina Niebla, no El Diario, com tradução  do Cepat, em IHU

 

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