Samuel Possebon: X é palanque ideológico de
Elon Musk. Com Starlink, o jogo é outro
A decisão da Starlink
de voltar atrás e cumprir as determinações do STF e da Anatel e bloquear o
acesso à rede social X, em um aparente recuo da sua posição inicialmente
manifestada à agência (de maneira informal, diga-se de passagem) tem
explicações muito mais profundas do que apenas uma batalha vencida por
Alexandre de Moraes na queda de braço com Elon Musk.
Se o X sempre foi
visto por Elon Musk como um megafone para sua batalha ideológica, desde que
forçou a barra para adquirir a plataforma quando ela ainda se chamava Twitter,
a Starlink é outra coisa: trata-se de um negócio com grande potencial que
precisa ganhar espaço no Brasil rapidamente, antes que os concorrentes cheguem.
Mas além disso, a
Starlink tem por trás algo muito maior: é evidentemente um projeto de Estado
dos Estados Unidos de garantir a hegemonia norte-americana no espaço.
• Um projeto geopolítico
Não se trata de teoria
da conspiração. Há fatos concretos, inclusive testemunhados por este
noticiário, que reforçam essa tese. Por exemplo: em março desse ano, durante a
conferência Satellite 2024, um dos principais eventos mundiais do setor e que é
realizada anualmente em Washington (com cobertura da TELETIME), o diretor
adjunto da National Reconnaissance Office (NRO, uma espécie de órgão de
inteligência e pesquisa estratégica do governo dos EUA), Troy Meink, falou para
uma plateia de centenas de pessoas, de maneira aberta, que os EUA consideram o
espaço como uma das principais fronteiras tecnológicas e um território em
disputa.
“Temos convicção de
que nossos inimigos externos estão nos desafiando para destruir ou interferir
em nossa tecnologia e pela primeira vez nossa tecnologia está em risco com
ataques constantes de cibersegurança e interferência”, diz ele. Segundo a
análise da NRO, a China será um competidor importante no mercado de satélites
em 2030. “Temos que inovar e inovar rápido, ou perdemos a corrida”, disse Meik,
citando também a Rússia como um adversário nessa disputa. E foi além: o governo
dos EUA tem trabalhado com a política de fazer “hosted payload” com empresas
norte-americanas, sem citar casos específicos. Ou seja, utiliza capacidade de
satélites comerciais para incluir tecnologias de uso reservado.
Um outro bom exemplo
de como os EUA levam a sério essa nova corrida espacial é o fato de terem
criado, no final de 2019, a US Space Force, uma Arma Militar, com o mesmo
status da Força Aérea, Marinha ou Exército. A US Space Force também contrata
serviços da SpaceX.
No ano passado,
segundo diversos relatos de imprensa de publicações renomadas, Musk tentou “se
meter” na guerra da Ucrânia, cortando o sinal da Starlink utilizado por drones
ucranianos, atrapalhando um ataque. Foi aparentemente repreendido pelo
Departamento de Defesa dos EUA, que por meio da OTAN apoia tecnologicamente o
país atacado pelos russos.
Em julho deste ano, a
Reuters noticiou, e outros veículos confirmaram, um novo projeto conjunto entre
a controladora da Starlink, a SpaceX (que por si só já é o principal veículo de
lançamento de satélites civis, militares e naves tripuladas dos EUA), e a NRO
para o desenvolvimento de uma constelação de satélites de uso exclusivamente
militar. A SpaceX e a Starlink são duas empresas presididas pela mesma pessoa:
Gwynne Shotwell, hoje uma das executivas mais relevantes no mercado de
satélites global.
Analistas que conhecem
o mercado de satélites ouvidos por este noticiário, brasileiros e estrangeiros,
dizem que por mais genial e inovador que seja Elon Musk em suas empresas, e por
mais que tenha disposição de investir boa parte de sua fortuna na SpaceX,
dificilmente ele chegaria aos resultados obtidos, seja no lançamento de
foguetes reutilizáveis, seja numa constelação global de satélites de banda
larga sem precedente, sem investimentos do governo dos EUA. Hoje Musk lança
mais satélites do que qualquer outra empresa e, sozinho, opera uma constelação
maior do que a soma de todos os outros satélites comerciais em órbita.
O Estado brasileiro
até tem planos de desenvolvimento do setor de satélites guardados nas gavetas.
Mas até hoje faltou orçamento e ação política para colocar os projetos de pé. E
quando acontecem, os ciclos são longos: o projeto Brasilsat, para satélites de
comunicação da então-estatal Embratel, aconteceu nos anos 1980. O Satélite
Geoestacionário de Defesa e Comunicação (SGDC) só veio 30 anos depois, e parou
em um único artefato, sem previsão de substituição ou atualização tão cedo.
Em 2012, foi criado
por Portaria do Ministério da Defesa o PESE (Programa Estratégico de Sistemas
Espaciais), atualizado pela última vez em 2018, e que previa até mesmo uma
constelação de satélites de órbita baixa para a área de Defesa, a ser lançada
até 2022. Pouco do PESE saiu do papel: dois satélites de observação com
tecnologia finlandesa que são parte da constelação Lessônia, lançados em 2022,
o SGDC (que começou a ser planejado bem antes) e o COPE (Centro de Operações
Espaciais, que controla o SGDC).
O que se viu, desde
então, foi uma opção do Estado brasileiro, tanto por parte de órgãos civis de
governo, setores militares, ministérios, governos estaduais e até mesmo órgãos
do Judiciário, em adquirir, em processos de compras públicas, capacidade da Starlink.
Isso não só é um bom negócio para a empresa de Elon Musk como ajuda no projeto
de manter o Brasil debaixo do guarda-chuva tecnológico dos EUA, evitando
aproximações com outros países que um dia terão suas constelações próprias: a
China trabalha forte nesse sentido; a Europa vai na mesma linha, ainda que mais
atrasada; Índia e Canadá têm seus programas espaciais… Sem falar em
concorrentes norte-americanos vão entrar nesse mercado, como a Amazon. Todos,
potencialmente, podem abocanhar mercado da Starlink.
• Um bom negócio
Mas é preciso
ressaltar que a Starlink não é a única empresa de conectividade de satélites
que existe. Há várias outras opções, seja em satélites de órbita baixa (como a
OneWeb), seja em satélites de órbita média (O3b), seja em satélites
geoestacionários onde há dezenas de opções para uso corporativo/governamental,
seja em opções de acesso residencial, como HughesNet e Viasat, por exemplo. Até
dois anos atrás, tudo era feito sem Starlink utilizando-se outras opções que
seguem funcionando. A Starlink sem dúvida mudou a equação quando cobertura,
capacidade e custo são ponderados ao lado de facilidade de instalação e
operação… O fato é que a Starlink não é, por si só, indispensável. Mas ela é, a
cada dia, mais relevante.
Por estas razões,
acabou se tornando a opção número 1 em compras públicas e privadas, seja em
razão da combinação preço/qualidade, pelo marketing digital eficiente e porque
as alternativas mais competitivas ainda demoram alguns anos para chegar. E é
justamente esse tempo que a Starlink aparentemente não quer perder.
Hoje a Starlink cresce
cerca de 10 mil a 15 mil assinantes por mês no Brasil. Perde apenas para a
Claro e para a Vivo em crescimento no mercado de banda larga fixa e já chega a
quase 230 mil clientes (dados de julho).
No mundo, estima-se
que a Starlink tenha cerca de 3,4 milhões de assinantes. O Brasil, portanto,
teria perto de 7% de participação nos negócios globais da empresa. Não é pouca
coisa para uma empresa arriscar jogar o mercado fora por uma queda de braço político-ideológica
de seu controlador.
A Starlink não está
imune à regulamentação local: tem autorização da Anatel para explorar a sua
constelação no Brasil com até 4,4 mil satélites até 2027. Mas já pediu
autorização para mais 7 mil, porque quanto mais clientes coloca em sua base,
mais o serviço se degrada, e para isso precisa ampliar a capacidade com mais
satélites. A Anatel ainda não autorizou essa ampliação de frota. Caso optasse
por ignorar a regulamentação brasileira, além de ameaçar ter o serviço
suspenso, poderia ser denunciada a organismos internacionais, como a União
Internacional de Telecomunicações, o que poderia comprometer sua relação
regulatória também com outros países na liberação de espectro ou direito de
operação como satélite estrangeiro.
Fazer a briga
ideológica do X transbordar para a Starlink poderia, no limite, comprometer os
negócios da empresa, que não só tem um potencial de crescimento importante no
Brasil, como carrega ainda a um forte componente geopolítico que os EUA não
podem arriscar perder. Talvez a soma destes fatores explique o recuo da
Starlink.
• Caso do X no Brasil é um exemplo para a
América Latina contra ingerência das big techs
As sanções do Brasil
contra a empresa X deveriam ser "um exemplo" para outros países
latino-americanos em um contexto em que as grandes plataformas digitais
acumularam "enorme poder", disse à Sputnik o analista internacional
Jorge Elbaum.
O especialista
argentino, também sociólogo e doutor em Ciências Econômicas, considerou que o
bloqueio da rede social X ordenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
brasileiro é uma "prática soberana" que, como outras do mesmo estilo,
"implica um confronto com a lógica neocolonial e imperialista"
mantida por este tipo de empresas.
Nesse sentido, Elbaum
destacou que existe uma questão "estrutural" por trás tanto do X como
de outras grandes empresas tecnológicas como Google, Amazon, Apple, Microsoft
ou Meta (banida na Rússia por atividades extremistas), que nos últimos anos
"acumularam um poder enorme", tanto economicamente como no seu poder
de influência sobre os utilizadores da Internet.
"Estas
plataformas têm, em conjunto, um orçamento superior ao de vários países e
equivalente a países como a França. Têm muito poder econômico e um grande poder
de influência, além de fortes contatos com organizações de segurança,
inteligência e espionagem, pelo que estão sempre articulados com o lado sombrio
da governação global", disse o analista.
Nesse sentido, Elbaum
destacou que, embora possam existir diferenças, este tipo de empresas expressam
"interesses que não são contraditórios com a política externa dos
EUA" e que, para além das simpatias para com Donald Trump ou Joe Biden,
movem-se dentro de "um tripé, isso inclui o complexo militar-industrial,
Wall Street e empresas transnacionais".
Neste cenário, Elon
Musk surge como o CEO que "está jogando mais abertamente um jogo global a
favor de uma direita brutal, nacionalista e reacionária" e que para Elbaum
está diretamente relacionada com a rejeição da influência da China na economia
global.
"Vamos pensar que
[Elon] Musk foi o primeiro produtor de automóveis [elétricos] do mundo, mas foi
desbancado pelos chineses. Ele está desesperado", ilustrou Elbaum,
lembrando que o CEO do X e da Starlink defendeu o golpe de Estado contra Evo Morales
em 2019, ironizando através do X ao dizer que promoveria "todos os golpes
que quisesse" para ter acesso aos recursos de lítio do país, fundamentais
na indústria de veículos elétricos (VE).
<><> Uma
'guerra' contra o BRICS e o Sul Global
Para Elbaum, episódios
como o que enfrenta o Brasil com o X ou a prisão do fundador do Telegram, Pavel
Durov, fazem parte de uma "guerra cognitiva" promovida pelo Ocidente
com o objetivo de "limitar as capacidades das sociedades de pensarem com
as suas próprias cabeças, basicamente com base nos algoritmos e
condicionamentos das telas".
"Nesta guerra
cognitiva, a América Latina e a África são reivindicadas como suas pela
Organização do Tratado do Atlântico Norte [OTAN] e pelo Atlântico Norte, mas
começam a se rebelar, especialmente nos casos do México, Brasil, Honduras e,
claro, Venezuela, Nicarágua e Bolívia, por exemplo. Este modelo de ingerência,
sanções unilaterais e bloqueios estão encontrando dificuldades", afirmou o
sociólogo.
Assim, a decisão do
STF brasileiro de sancionar o X pela disseminação dos discursos
antidemocráticos é uma expressão de "uma guerra contra o BRICS levada a
cabo pelos EUA, pela União Europeia [UE] e pelo Japão" tentando evitar o
fortalecimento dos países do Sul Global.
Elbaum defendeu, nesse
sentido, as medidas adotadas pelo Brasil, que também "vêm da Justiça,
portanto têm um ar de maior neutralidade e não podem ser atribuídas ao
[presidente] Lula".
Para o analista, outra
alternativa para os países latino-americanos seria seguir algumas práticas
adotadas pelas potências do BRICS e que lhes permitam ter redes sociais
"próprias" baseadas nos seus próprios territórios.
"O que precisa
ser feito é o que a Rússia fez com o VK ou o que a China fez com o WeChat. Se
fosse possível, a América Latina deveria ter um formato de interação comum,
cujos algoritmos e inteligência artificial [IA] fossem gerenciados por países
soberanos", disse.
• Elon Musk tem que cumprir ordem
judicial, afirma Juscelino Filho
O governo federal vai
continuar exigindo que a Starlink cumpra a ordem judicial de bloqueio da rede
social X no Brasil, afirmou o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, nesta
quarta-feira (4), no programa "Bom dia, Ministro" do Canal Gov.
“No Brasil, ordem
judicial se cumpre. Quando uma determinada empresa descumpre uma decisão
judicial, como estava descumprindo, e mais do que isso, ainda chega ao tom de
provocar, de afrontar, ela merece toda a repulsa da população brasileira, do
governo e do país".
A Agência Nacional de
Telecomunicações notificou na sexta-feira (30) todas as operadoras de internet
do país para cumprirem a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF),
Alexandre de Moraes, e que foi respaldada pela 1ª Turma da corte.
"Nós temos
soberania nacional, nós temos a democracia, uma constituição que é obedecida
por todos e não é um sujeito com maior poderio econômico, ricaço de fora do
país, que vai afrontar o Brasil. Não vamos admitir isso jamais”, disse o
ministro.
O descumprimento de
ordem judicial, segundo o ministro, não será só de multa, mas também a abertura
de um processo de cassação da outorga da prestação do serviço no Brasil. “Se
eles não cumprirem isso, naturalmente a Anatel e o Ministério das Comunicações
vão abrir um processo de cassação dessa outorga. Mas a gente espera que a
decisão judicial no Brasil seja cumprida”, finalizou.
<><>
Escolas conectadas
No programa, o
ministro Juscelino destacou a meta de levar internet de qualidade e reduzir as
desigualdades nas escolas brasileiras. O objetivo é levar internet de banda
larga e wi-fi para até 20 mil escolas públicas no ensino básico até 2026. A
iniciativa viabilizará o investimento de até R$ 1,2 bilhão.
Para atingir o
objetivo, o MCom implementou o programa Estratégia Nacional das Escolas
Conectadas (ENEC). Os recursos resultam de edital de renúncia fiscal do Fundo
de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust),articulado entre o
Ministério das Comunicações (MCom) e Ministério das Educação (MEC).
“Temos colocado a
Estratégia Nacional das Escolas Conectadas, como a prioridade número um da
nossa gestão, porque nós enxergamos nessa estratégia um programa uma ferramenta
transformadora, no futuro dessas gerações que estudam em escola pública, de ter
acesso a conectividade, conteúdo pedagógico, inclusão digital, laboratório,
equipamentos nas escolas públicas”, enfatizou o ministro da Comunicações,
Juscelino Filho.
Fonte: Jornal
GGN/Sputnik Brasil/Brasil 247
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