sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Samuel Possebon: X é palanque ideológico de Elon Musk. Com Starlink, o jogo é outro

A decisão da Starlink de voltar atrás e cumprir as determinações do STF e da Anatel e bloquear o acesso à rede social X, em um aparente recuo da sua posição inicialmente manifestada à agência (de maneira informal, diga-se de passagem) tem explicações muito mais profundas do que apenas uma batalha vencida por Alexandre de Moraes na queda de braço com Elon Musk.

Se o X sempre foi visto por Elon Musk como um megafone para sua batalha ideológica, desde que forçou a barra para adquirir a plataforma quando ela ainda se chamava Twitter, a Starlink é outra coisa: trata-se de um negócio com grande potencial que precisa ganhar espaço no Brasil rapidamente, antes que os concorrentes cheguem.

Mas além disso, a Starlink tem por trás algo muito maior: é evidentemente um projeto de Estado dos Estados Unidos de garantir a hegemonia norte-americana no espaço.

•        Um projeto geopolítico

Não se trata de teoria da conspiração. Há fatos concretos, inclusive testemunhados por este noticiário, que reforçam essa tese. Por exemplo: em março desse ano, durante a conferência Satellite 2024, um dos principais eventos mundiais do setor e que é realizada anualmente em Washington (com cobertura da TELETIME), o diretor adjunto da National Reconnaissance Office (NRO, uma espécie de órgão de inteligência e pesquisa estratégica do governo dos EUA), Troy Meink, falou para uma plateia de centenas de pessoas, de maneira aberta, que os EUA consideram o espaço como uma das principais fronteiras tecnológicas e um território em disputa.

“Temos convicção de que nossos inimigos externos estão nos desafiando para destruir ou interferir em nossa tecnologia e pela primeira vez nossa tecnologia está em risco com ataques constantes de cibersegurança e interferência”, diz ele. Segundo a análise da NRO, a China será um competidor importante no mercado de satélites em 2030. “Temos que inovar e inovar rápido, ou perdemos a corrida”, disse Meik, citando também a Rússia como um adversário nessa disputa. E foi além: o governo dos EUA tem trabalhado com a política de fazer “hosted payload” com empresas norte-americanas, sem citar casos específicos. Ou seja, utiliza capacidade de satélites comerciais para incluir tecnologias de uso reservado.

Um outro bom exemplo de como os EUA levam a sério essa nova corrida espacial é o fato de terem criado, no final de 2019, a US Space Force, uma Arma Militar, com o mesmo status da Força Aérea, Marinha ou Exército. A US Space Force também contrata serviços da SpaceX.

No ano passado, segundo diversos relatos de imprensa de publicações renomadas, Musk tentou “se meter” na guerra da Ucrânia, cortando o sinal da Starlink utilizado por drones ucranianos, atrapalhando um ataque. Foi aparentemente repreendido pelo Departamento de Defesa dos EUA, que por meio da OTAN apoia tecnologicamente o país atacado pelos russos.

Em julho deste ano, a Reuters noticiou, e outros veículos confirmaram, um novo projeto conjunto entre a controladora da Starlink, a SpaceX (que por si só já é o principal veículo de lançamento de satélites civis, militares e naves tripuladas dos EUA), e a NRO para o desenvolvimento de uma constelação de satélites de uso exclusivamente militar. A SpaceX e a Starlink são duas empresas presididas pela mesma pessoa: Gwynne Shotwell, hoje uma das executivas mais relevantes no mercado de satélites global.

Analistas que conhecem o mercado de satélites ouvidos por este noticiário, brasileiros e estrangeiros, dizem que por mais genial e inovador que seja Elon Musk em suas empresas, e por mais que tenha disposição de investir boa parte de sua fortuna na SpaceX, dificilmente ele chegaria aos resultados obtidos, seja no lançamento de foguetes reutilizáveis, seja numa constelação global de satélites de banda larga sem precedente, sem investimentos do governo dos EUA. Hoje Musk lança mais satélites do que qualquer outra empresa e, sozinho, opera uma constelação maior do que a soma de todos os outros satélites comerciais em órbita.

O Estado brasileiro até tem planos de desenvolvimento do setor de satélites guardados nas gavetas. Mas até hoje faltou orçamento e ação política para colocar os projetos de pé. E quando acontecem, os ciclos são longos: o projeto Brasilsat, para satélites de comunicação da então-estatal Embratel, aconteceu nos anos 1980. O Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicação (SGDC) só veio 30 anos depois, e parou em um único artefato, sem previsão de substituição ou atualização tão cedo.

Em 2012, foi criado por Portaria do Ministério da Defesa o PESE (Programa Estratégico de Sistemas Espaciais), atualizado pela última vez em 2018, e que previa até mesmo uma constelação de satélites de órbita baixa para a área de Defesa, a ser lançada até 2022. Pouco do PESE saiu do papel: dois satélites de observação com tecnologia finlandesa que são parte da constelação Lessônia, lançados em 2022, o SGDC (que começou a ser planejado bem antes) e o COPE (Centro de Operações Espaciais, que controla o SGDC).

O que se viu, desde então, foi uma opção do Estado brasileiro, tanto por parte de órgãos civis de governo, setores militares, ministérios, governos estaduais e até mesmo órgãos do Judiciário, em adquirir, em processos de compras públicas, capacidade da Starlink. Isso não só é um bom negócio para a empresa de Elon Musk como ajuda no projeto de manter o Brasil debaixo do guarda-chuva tecnológico dos EUA, evitando aproximações com outros países que um dia terão suas constelações próprias: a China trabalha forte nesse sentido; a Europa vai na mesma linha, ainda que mais atrasada; Índia e Canadá têm seus programas espaciais… Sem falar em concorrentes norte-americanos vão entrar nesse mercado, como a Amazon. Todos, potencialmente, podem abocanhar mercado da Starlink.

•        Um bom negócio

Mas é preciso ressaltar que a Starlink não é a única empresa de conectividade de satélites que existe. Há várias outras opções, seja em satélites de órbita baixa (como a OneWeb), seja em satélites de órbita média (O3b), seja em satélites geoestacionários onde há dezenas de opções para uso corporativo/governamental, seja em opções de acesso residencial, como HughesNet e Viasat, por exemplo. Até dois anos atrás, tudo era feito sem Starlink utilizando-se outras opções que seguem funcionando. A Starlink sem dúvida mudou a equação quando cobertura, capacidade e custo são ponderados ao lado de facilidade de instalação e operação… O fato é que a Starlink não é, por si só, indispensável. Mas ela é, a cada dia, mais relevante.

Por estas razões, acabou se tornando a opção número 1 em compras públicas e privadas, seja em razão da combinação preço/qualidade, pelo marketing digital eficiente e porque as alternativas mais competitivas ainda demoram alguns anos para chegar. E é justamente esse tempo que a Starlink aparentemente não quer perder.

Hoje a Starlink cresce cerca de 10 mil a 15 mil assinantes por mês no Brasil. Perde apenas para a Claro e para a Vivo em crescimento no mercado de banda larga fixa e já chega a quase 230 mil clientes (dados de julho).

No mundo, estima-se que a Starlink tenha cerca de 3,4 milhões de assinantes. O Brasil, portanto, teria perto de 7% de participação nos negócios globais da empresa. Não é pouca coisa para uma empresa arriscar jogar o mercado fora por uma queda de braço político-ideológica de seu controlador.

A Starlink não está imune à regulamentação local: tem autorização da Anatel para explorar a sua constelação no Brasil com até 4,4 mil satélites até 2027. Mas já pediu autorização para mais 7 mil, porque quanto mais clientes coloca em sua base, mais o serviço se degrada, e para isso precisa ampliar a capacidade com mais satélites. A Anatel ainda não autorizou essa ampliação de frota. Caso optasse por ignorar a regulamentação brasileira, além de ameaçar ter o serviço suspenso, poderia ser denunciada a organismos internacionais, como a União Internacional de Telecomunicações, o que poderia comprometer sua relação regulatória também com outros países na liberação de espectro ou direito de operação como satélite estrangeiro.

Fazer a briga ideológica do X transbordar para a Starlink poderia, no limite, comprometer os negócios da empresa, que não só tem um potencial de crescimento importante no Brasil, como carrega ainda a um forte componente geopolítico que os EUA não podem arriscar perder. Talvez a soma destes fatores explique o recuo da Starlink.

 

•        Caso do X no Brasil é um exemplo para a América Latina contra ingerência das big techs

As sanções do Brasil contra a empresa X deveriam ser "um exemplo" para outros países latino-americanos em um contexto em que as grandes plataformas digitais acumularam "enorme poder", disse à Sputnik o analista internacional Jorge Elbaum.

O especialista argentino, também sociólogo e doutor em Ciências Econômicas, considerou que o bloqueio da rede social X ordenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro é uma "prática soberana" que, como outras do mesmo estilo, "implica um confronto com a lógica neocolonial e imperialista" mantida por este tipo de empresas.

Nesse sentido, Elbaum destacou que existe uma questão "estrutural" por trás tanto do X como de outras grandes empresas tecnológicas como Google, Amazon, Apple, Microsoft ou Meta (banida na Rússia por atividades extremistas), que nos últimos anos "acumularam um poder enorme", tanto economicamente como no seu poder de influência sobre os utilizadores da Internet.

"Estas plataformas têm, em conjunto, um orçamento superior ao de vários países e equivalente a países como a França. Têm muito poder econômico e um grande poder de influência, além de fortes contatos com organizações de segurança, inteligência e espionagem, pelo que estão sempre articulados com o lado sombrio da governação global", disse o analista.

Nesse sentido, Elbaum destacou que, embora possam existir diferenças, este tipo de empresas expressam "interesses que não são contraditórios com a política externa dos EUA" e que, para além das simpatias para com Donald Trump ou Joe Biden, movem-se dentro de "um tripé, isso inclui o complexo militar-industrial, Wall Street e empresas transnacionais".

Neste cenário, Elon Musk surge como o CEO que "está jogando mais abertamente um jogo global a favor de uma direita brutal, nacionalista e reacionária" e que para Elbaum está diretamente relacionada com a rejeição da influência da China na economia global.

"Vamos pensar que [Elon] Musk foi o primeiro produtor de automóveis [elétricos] do mundo, mas foi desbancado pelos chineses. Ele está desesperado", ilustrou Elbaum, lembrando que o CEO do X e da Starlink defendeu o golpe de Estado contra Evo Morales em 2019, ironizando através do X ao dizer que promoveria "todos os golpes que quisesse" para ter acesso aos recursos de lítio do país, fundamentais na indústria de veículos elétricos (VE).

<><> Uma 'guerra' contra o BRICS e o Sul Global

Para Elbaum, episódios como o que enfrenta o Brasil com o X ou a prisão do fundador do Telegram, Pavel Durov, fazem parte de uma "guerra cognitiva" promovida pelo Ocidente com o objetivo de "limitar as capacidades das sociedades de pensarem com as suas próprias cabeças, basicamente com base nos algoritmos e condicionamentos das telas".

"Nesta guerra cognitiva, a América Latina e a África são reivindicadas como suas pela Organização do Tratado do Atlântico Norte [OTAN] e pelo Atlântico Norte, mas começam a se rebelar, especialmente nos casos do México, Brasil, Honduras e, claro, Venezuela, Nicarágua e Bolívia, por exemplo. Este modelo de ingerência, sanções unilaterais e bloqueios estão encontrando dificuldades", afirmou o sociólogo.

Assim, a decisão do STF brasileiro de sancionar o X pela disseminação dos discursos antidemocráticos é uma expressão de "uma guerra contra o BRICS levada a cabo pelos EUA, pela União Europeia [UE] e pelo Japão" tentando evitar o fortalecimento dos países do Sul Global.

Elbaum defendeu, nesse sentido, as medidas adotadas pelo Brasil, que também "vêm da Justiça, portanto têm um ar de maior neutralidade e não podem ser atribuídas ao [presidente] Lula".

Para o analista, outra alternativa para os países latino-americanos seria seguir algumas práticas adotadas pelas potências do BRICS e que lhes permitam ter redes sociais "próprias" baseadas nos seus próprios territórios.

"O que precisa ser feito é o que a Rússia fez com o VK ou o que a China fez com o WeChat. Se fosse possível, a América Latina deveria ter um formato de interação comum, cujos algoritmos e inteligência artificial [IA] fossem gerenciados por países soberanos", disse.

 

•        Elon Musk tem que cumprir ordem judicial, afirma Juscelino Filho

O governo federal vai continuar exigindo que a Starlink cumpra a ordem judicial de bloqueio da rede social X no Brasil, afirmou o ministro das Comunicações, Juscelino Filho, nesta quarta-feira (4), no programa "Bom dia, Ministro" do Canal Gov.

“No Brasil, ordem judicial se cumpre. Quando uma determinada empresa descumpre uma decisão judicial, como estava descumprindo, e mais do que isso, ainda chega ao tom de provocar, de afrontar, ela merece toda a repulsa da população brasileira, do governo e do país".

A Agência Nacional de Telecomunicações notificou na sexta-feira (30) todas as operadoras de internet do país para cumprirem a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, e que foi respaldada pela 1ª Turma da corte.

"Nós temos soberania nacional, nós temos a democracia, uma constituição que é obedecida por todos e não é um sujeito com maior poderio econômico, ricaço de fora do país, que vai afrontar o Brasil. Não vamos admitir isso jamais”, disse o ministro.

O descumprimento de ordem judicial, segundo o ministro, não será só de multa, mas também a abertura de um processo de cassação da outorga da prestação do serviço no Brasil. “Se eles não cumprirem isso, naturalmente a Anatel e o Ministério das Comunicações vão abrir um processo de cassação dessa outorga. Mas a gente espera que a decisão judicial no Brasil seja cumprida”, finalizou.

<><> Escolas conectadas

No programa, o ministro Juscelino destacou a meta de levar internet de qualidade e reduzir as desigualdades nas escolas brasileiras. O objetivo é levar internet de banda larga e wi-fi para até 20 mil escolas públicas no ensino básico até 2026. A iniciativa viabilizará o investimento de até R$ 1,2 bilhão.

Para atingir o objetivo, o MCom implementou o programa Estratégia Nacional das Escolas Conectadas (ENEC). Os recursos resultam de edital de renúncia fiscal do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust),articulado entre o Ministério das Comunicações (MCom) e Ministério das Educação (MEC).

“Temos colocado a Estratégia Nacional das Escolas Conectadas, como a prioridade número um da nossa gestão, porque nós enxergamos nessa estratégia um programa uma ferramenta transformadora, no futuro dessas gerações que estudam em escola pública, de ter acesso a conectividade, conteúdo pedagógico, inclusão digital, laboratório, equipamentos nas escolas públicas”, enfatizou o ministro da Comunicações, Juscelino Filho.

 

Fonte: Jornal GGN/Sputnik Brasil/Brasil 247

 

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