Queimadas: o agronegócio acende o fósforo
Estamos assistindo há
semanas (ou meses?) a mais espetacular estação de queimadas da história do
país, ainda em curso e mais sinistra do que o Dia do Fogo de 2019 ou o mar de
chamas de 2004. Já é um sinal preocupante para o meio ambiente do Brasil e, pela
sua amplitude, do planeta, que tenhamos tal nome de batismo para o período de
inverno. Mas a ocupação acelerada das fronteiras agrícolas pelo agronegócio,
desde o tempo da ditadura militar, habituou-nos às imagens, cada vez mais
gigantescas de florestas e outros ecossistemas sendo devorados pelas chamas ao
longo de meses.
Nos anos setenta, foi
um escândalo internacional a queimada de uma propriedade de cem mil hectares no
Pará, pertencente à empresa alemã Volkswagen. No Brasil, este fato não chegou a
ser notícia, a não ser quando denunciado no exterior ao ser detectado por
fotografias de satélite.
De lá para cá, as
queimadas viraram rotina e foram se expandindo, do arco de fogo subindo pelo
mapa a partir do sul da Amazônia, do oeste do Mato Grosso ao leste do Pará, aos
incêndios na intensa ocupação de Rondônia, Roraima e Acre e expandindo-se para
o Cerrado e o Pantanal.
Nada disso é uma
novidade na nossa história. Lembremos que o primeiro bioma a ser destruído foi
a outrora pujante Mata Atlântica, derrubada a ferro e fogo desde os primórdios
da colonização. A diferença é que a redução em mais de 90% da cobertura vegetal
deste bioma, quase toda de floresta tropical de enorme biodiversidade, durou
cinco séculos. O que estamos assistindo ocorre em menos de duas gerações.
Nestes dias, como foi
o caso em 2019 e, menos intensamente, em outros anos, os ventos que trazem a
umidade evaporada pela floresta amazônica para irrigar o Centro-Oeste e o
Sudeste do Brasil, fenômeno hoje conhecido como “rios voadores”, passaram a
empurrar uma densa fumaça negra produzida por milhões e milhões de hectares de
vegetação, da floresta tropical amazônica às matas menos densas do Cerrado e os
campos alagáveis do Pantanal, todos sequíssimos por sete meses de estiagem
total. Além da fumaça gerada pela queima de áreas de pastagem, cuja cobertura
vegetal original já foi devastada há mais tempo.
No mesmo momento em
que ardem três biomas de nova fronteira agrícola, ardem também grandes áreas
cultivadas com cana de açúcar no que foi o bioma Mata Atlântica, mais
precisamente no centro-oeste paulista. Neste caso, a ocorrência é uma novidade,
pelo menos desde 2007. A queima de canaviais em São Paulo só é fenomenal pelo
fato de que o início da maior parte dos focos de incêndio foi simultâneo, como
detectado pelas imagens de satélite.
<><>
Crimes?
A gritaria na imprensa
e nas redes sociais foi grande. O bolsonarismo acusou o MST nos incêndios em
São Paulo, enquanto a esquerda acusava uma ação criminosa do agronegócio
canavieiro neste estado e o pecuário na Amazônia, Cerrado e Pantanal visando
desmoralizar a política de controle de desmatamento do governo Lula e manchar a
imagem e a liderança do Brasil para a COP-30. Tudo seria orquestrado, a exemplo
do domingo de fogo de 2019 e o agronegócio bolsonarista seria o criminoso a
combater. Estas hipóteses têm que ser mais bem estudadas…
A meu ver, não há uma
orquestração política criminosa nacional reunindo criminosos em todas as áreas
de incêndio, quase que do Oiapoque ao Chuí. Muitos destes incêndios são, sem
dúvida, atos criminosos cujos intuitos devemos analisar caso a caso. Mas outros
são derivados de outro tipo de causa, natural ou não. E as condições naturais
têm que ser levadas em conta para verificar o quanto da área queimada resulta
de uma perda de controle de operações usando fogo e que são legais. E há
situações que requerem investigação mais aprofundada de tipo policial.
<><>
Incêndios nos canaviais de São Paulo
A suspeição de crime é
estimulada pelas imagens de satélite, mostrando o surgimento de centenas de
focos de fogo na região de Ribeirão Preto em um curtíssimo intervalo de tempo
(horas). Além disso, circulou um vídeo de um caminhão de uma usina de açúcar e
álcool, acompanhando trabalhadores uniformizados que incendiavam a palha seca
sob os canaviais com o uso de maçaricos. A intenção criminosa parece
comprovada, mas quem são os culpados? Os usineiros teriam algo a ganhar com a
queima dos canaviais?
Os jornais têm
apresentado estimativas das perdas dos usineiros que vão de 500 milhões a um
bilhão de reais com os incêndios. Li mais de uma análise apontando para o fato
de que a prática de queima dos canaviais era usual no passado e que os
usineiros teriam voltado a utilizá-la. O argumento só se explica pela alta
probabilidade de os autores serem leigos em matéria de economia e agronomia
açucareira.
Até o final do século
passado, havia uma polêmica entre os usineiros e entre os plantadores de cana,
fornecedores de matéria prima para as usinas. Entre os usineiros havia uma
crescente adesão às propostas técnicas da Embrapa que favoreciam a colheita mecanizada
e o abandono da queima.
As vantagens eram
múltiplas para o corte da cana crua (não queimada): mais restos de cultura
(folhas e pontas) para incorporação nos solos, diminuindo a necessidade de
adubação química, evitar as perdas em conteúdo de açúcar (chamado de brix) da
ordem de 8% se as canas queimadas fossem processadas em menos de seis dias e
muito mais se os prazos se alongassem, menores problemas com a rebrota das
canas para a próxima safra, eliminação dos inimigos naturais da cigarrinha,
praga maior dos canaviais.
As desvantagens
estavam nos custos das operações de colheita. Se feitas com uso de mão de obra
(boias frias), a quantidade de cana colhida por trabalhador por dia era três
vezes menor do que com a cana queimada. Isto ocorre porque o trabalhador, em um
canavial não queimado, tem que fazer três operações: cortar a cana, eliminar as
folhas e pontas e amontoar. Isto cobrava contratar mais gente, já que é preciso
aproveitar as canas no seu momento de maturação ideal para obter o máximo de
açúcar (ou álcool). No balanço de perdas e ganhos, a economia de mão de obra,
que estava escasseando no mundo rural paulista nos anos 70, acabava apontando
para mais lucros com a queima.
A solução da
mecanização foi adotada para eliminar este gargalo de mão de obra, mas as
colheitadeiras disponíveis inicialmente tinham problemas de operação. A palhada
da cana não queimada provocava o chamado embuchamento das máquinas, com
frequente interrupção da colheita para limpar a vegetação acumulada nos dentes
das colheitadeiras. Ou seja, a queima continuou por muito tempo na prática da
colheita mecanizada, por facilitar o processo e torná-lo mais rápido.
Entretanto, novas e mais avançadas máquinas vieram a superar este problema, mas
o seu custo elevado fez com que muitas usinas e fornecedores de cana
mantivessem a prática de queima e uso de mão de obra.
O câmbio tecnológico
na cultura de cana em São Paulo foi acelerado com a desaparição dos
fornecedores (que tinham mais restrições financeiras) e com a adoção da
mecanização moderna pelas usinas, induzidas por uma legislação introduzida em
2006, proibindo a queima por razões de saúde pública devido à fumaça que se
espalhava pelas zonas urbanas da região.
Os ganhos com o
abandono da queima foram maiores do que os previstos inicialmente, entre outros
o uso do bagaço das canas trituradas como combustível ou como matéria prima
para polpa de papel, impossível com a cana queimada.
Vinte anos depois do
abandono da queima em São Paulo parece totalmente improvável que os usineiros
tenham decidido, em bloco, violar a lei enquanto perdem dinheiro com menor
produtividade da cana queimada e outras perdas que seria longo detalhar.
Eliminada a hipótese
absurda de capitalistas do agronegócio mais avançado do país estarem,
literalmente, queimando dinheiro, fica a pergunta valendo um bilhão de reais:
quem queimou os canaviais em Ribeirão Preto? E por que o fez?
A hipótese
bolsonarista de uma ação terrorista do MST também é absurda. Queimar os
canaviais não facilita o assentamento de Sem Terras. E como explicar o vídeo
com o caminhão de uma usina, acompanhando empregados empenhados na queima com
maçaricos? Com a palavra, a Polícia de São Paulo ou a Federal. Não tenho
resposta, e considero a hipótese de que os usineiros teriam feito isto para
provocar uma alta nos preços do açúcar no mercado internacional uma bobagem.
Houve, de fato, uma alta de 3% no mercado de commodities em Nova Iorque, mas os
ganhos não vão para as áreas queimadas, mas para quem não queimou.
Que fique claro que
não estou aqui defendendo o agronegócio canavieiro. Este setor tem um histórico
de desprezo pelo meio ambiente e pelos direitos dos trabalhadores, além de se
escorar com frequência em subsídios e isenções de impostos. Mas não acredito
que, neste caso, eles tenham responsabilidade nas queimadas, que significam
perdas importantes nos seus lucros.
<><>
Amazônia em chamas
O governo Lula, pela
voz da ministra Marina Silva, proclamou uma redução de 46% no desmatamento da
Amazônia no período entre agosto de 2023 e julho de 2024. Apesar deste
resultado positivo, os índices de desmatamento no período Bolsonaro eram tão
altos que, mesmo reduzida, a área atingida ainda era gigantesca.
O sucesso na redução
do desmatamento foi atribuído pelo governo à retomada da fiscalização na
região. É preciso, entretanto, analisar esta explicação com um grão de sal.
Afinal de contas, o desmonte das instituições de defesa do meio ambiente, Ibama
e ICMBio, no governo de Bolsonaro, foi enorme. Ambas as instituições estão com
poucos funcionários e equipamentos e, além disso, passaram por um longo período
de greve por salários e planos de carreira que paralisou as ações de
fiscalização. Por outro lado, e veremos este ponto mais em detalhe mais
adiante, o desmatamento em todos os outros biomas cresceu.
Porque o desmatamento
caiu na Amazônia é algo que cobra uma análise mais aprofundada e eu não tenho
elementos que respondam a esta pergunta. Tenho hipóteses, mas não fatos e
dados. Teria havido uma concentração de esforços das agências de proteção
ambiental neste bioma, com o consequente enfraquecimento nos outros? É
improvável pois não se transfere pessoal de um lugar para outro tão facilmente.
Terá havido um esgotamento da fome de terras da grilagem na Amazônia? Negativo.
O histórico de desmatamento não indica que o processo esteja minimamente
arrefecendo.
O único elemento novo
a se considerar é a ameaça formulada pela União Europeia de impedir a
importação de produtos agrícolas ou madeireiros oriundos de áreas desmatadas a
partir de 2015, em todo o mundo. Esta decisão já foi tomada no Parlamento
Europeu e já foi ratificada na grande maioria dos países membros do bloco e
deve entrar em vigor em 2025. Esta decisão foi incluída nos debates do acordo
UE/Mercosul no início do ano passado, gerando reações do agronegócio e do
próprio governo Lula. Isto poderia explicar o recuo do agronegócio, mas seria
surpreendente este gesto de antecipação de medidas antes mesmo que a decisão da
UE esteja em vigor.
Para não confundir os
leitores pouco afetos a estas práticas do agronegócio, esclareço que existem
algumas etapas no que se chama, de forma geral, de desmatamento. O processo
começa com a retirada da madeira de lei, seguido pelo chamado corte raso, feito
com tratores de esteira arrastando grandes correntes deitando a vegetação,
árvores de qualquer tamanho e arbustos no solo. A etapa seguinte, após um
período de espera para a matéria vegetal secar, é a queima.
As queimadas na
Amazônia ou em outros biomas não se reduzem às áreas em desmatamento.
Queimam-se pastos para provocar a rebrota do capim e queimam-se áreas de matas
nas bordas das florestas virgens. É menos comum a queima das próprias florestas
virgens, tanto por eliminar os ganhos com madeira de lei como pelo fato de que
florestas tropicais úmidas e densas são mais difíceis de queimar.
Se o desmatamento
diminuiu significativamente, as queimadas na Amazônia cresceram muito. Para
começar, a temporada de fogo começou mais cedo. Entre janeiro e julho de 2024 a
área queimada aumentou 83% em relação ao mesmo período de 2023 e 38% a mais do
que a média dos 10 anos anteriores.
A novidade, no período
de janeiro a março de 2024, foi o descolamento entre as áreas de desmatamento
recente (9% dos focos) e as áreas de floresta primária (34% dos focos). No
primeiro trimestre de 2023, 5% das queimadas foram em áreas de floresta primária
e 21% nas áreas de desmatamento recente. Não tenho os dados para o segundo
trimestre, mas a tendência aponta para a continuidade da mudança no
direcionamento dos focos de incêndio.
Isto pode ser
explicado pelo fato de que as condições ambientais estarem favorecendo a queima
nas florestas primárias, com um longo período de seca, altas temperaturas,
baixa umidade do ar e ventos fortes. O resultado, intencional ou não, é que a
redução do desmatamento, proclamada pelo Governo, foi comprometida pelo aumento
da área de queima em florestas primárias. Pode não ter sido fogo ateado por
grileiros e simplesmente o alastramento do fogo dos pastos para as áreas de
borda das florestas primárias, encontrando condições para penetrar nestas
últimas. Ou esta pode ser uma parte da explicação.
Em outra hipótese, a
grilagem de terras que abre espaço para a expansão do agronegócio pecuário na
Amazônia pode ter invertido as etapas do processo habitual, aproveitando as
condições ambientais excepcionais para queimar primeiro e depois passar os tratores
de esteira e correntes para retirar as árvores calcinadas restantes e semear
pastagem. Isto vem ocorrendo de forma crescente nos últimos anos, a partir do
aperfeiçoamento dos sistemas de controle por satélite do INPE, hoje capazes de
captar e localizar em tempo real qualquer área de corte raso da floresta acima
de 30 hectares. Este controle explicaria a troca do corte raso pela queimada
direta, sobretudo em áreas onde foi retirada a madeira de lei, raleando a
floresta e facilitando a queima.
<><>
Queimadas no Cerrado
Neste bioma, o
processo de desmatamento é mais simples e brutal, com o uso de fogo diretamente
sobre a vegetação primária. Isto se explica pelo fato de que a cobertura
vegetal desta região não oferece madeira de lei em quantidade tentadora para a
exploração e pela maior facilidade da queima em matas menos densas, do tipo
savanas arbóreas e arbustivas. O objetivo do agronegócio é focado na formação
ou renovação de pastos, sendo que esta região concentra o segundo maior rebanho
do país. Em termos percentuais, este é o bioma com a maior taxa de conversão da
vegetação primária em pastagens, embora a Amazônia ganhe o primeiro lugar em
valores absolutos de área alterada.
Em 2022/2023,
queimaram 665 mil hectares da vegetação nativa do Cerrado. Neste bioma, 50% da
cobertura vegetal original já foi desmatada, ou 100 milhões de hectares. A
contribuição da queima para a devastação do Cerrado, no ano indicado acima,
parece pequena (0,66%), mas ela se concentrou em uma das últimas fronteiras de
vegetação ainda intocada, área comum a quatro estados – Maranhão, Tocantins,
Piauí e Bahia – o MATOPIBA, com 77% de todo o desmatamento no Cerrado. No
período 2023/2024, o desmatamento (queimada) aumentou 16%, chegando a 771 mil
hectares. Em anos do governo Bolsonaro, estes números foram mais espetaculares,
mas lembremos que o período das queimadas está apenas começando.
As digitais do
agronegócio criador de gado bovino estão nítidas em todo o processo de
desmatamento na região mais ao norte do bioma, mas do centro ao sul é o
agronegócio sojeiro que predomina.
<><> O
Pantanal no rumo acelerado de desaparição
Os números para este
bioma são assustadores. A área queimada aumentou 2362% em 2024, na comparação
com o primeiro semestre de 2023 e 529% a mais em relação à média dos últimos
cinco anos. E como a temporada do fogo apenas começou, eles podem piorar muito
até o fim do ano. Espera-se que a área queimada chegue a 3 milhões de hectares.
Estes dados estarrecedores indicam que o ano recorde de área queimada, 2020, já
foi superado em 54%.
Os satélites apontam
para um fato importante: 95% do fogo começa em propriedades privadas,
prevalecendo as de criação de gado. O fogo já atingiu 57% do bioma pelo menos
uma vez, sobretudo nos últimos 35 anos.
Segundo a Ministra
Marina Silva, o que estamos assistindo é o processo de desaparição da maior
planície alagada do mundo, que pode ocorrer antes do fim do século, numa visão
otimista. A prolongada estiagem na região já é a mais extensa e intensa em 74
anos (40 anos na Amazônia). Com baixa expectativa de chuvas no próximo verão,
as cotas de cheia dos rios e da planície alagável não vão ser alcançadas. Com
isso, a rebrota da vegetação queimada não deve ocorrer e as condições para
novas queimadas devastadoras vão se manter para os próximos anos. Ela
queixou-se dos cortes orçamentários impostos pelo Congresso, deixando o Ibama e
ICMBio sem condições de fiscalizar os focos de incêndio e sem o pessoal
necessário para combatê-los.
<><>
Efeito fumaça?
As temporadas de
queimadas, aceitas como parte da realidade do agronegócio na Amazônia, Cerrado
e Pantanal, há muito tempo tem sido um problema de saúde pública para as
populações do Norte e Centro-Oeste, devido às grandes concentrações de fumaça.
No resto do país, em anos “normais”, mal são notícia de jornais e televisões.
Em anos de queimadas um pouco mais intensas, a fumaçada provoca a suspensão das
operações de pouso e decolagem nos aeroportos destas regiões e as notícias no
“sul maravilha” são mais frequentes. Mas, nos anos das grandes queimadas, que
vem se tornando cada vez mais frequentes, é a fumaça nos narizes e pulmões de
paulistas e fluminenses que faz a notícia ser manchete.
Embora a questão da
saúde pública seja muito relevante, ela está longe de ser a mais grave para o
país e para o planeta. A eliminação cada vez mais rápida das florestas
tropicais e outras formações vegetais em escala gigante, abrange anualmente
milhões de hectares, afeta o clima diretamente, tanto o local como o
planetário.
A contribuição do
Brasil para o aquecimento global provém, em 70%, do desmatamento e das
queimadas e só é menor do que a dos Estados Unidos, China, União Europeia,
Rússia e Índia, os maiores emissores de gases de efeito estufa a partir da
queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão).
O efeito do processo
de desmatamento e queimada no Brasil é ainda mais rápido e intenso do que no
resto do mundo. Nosso clima está mudando e estamos assistindo, nos últimos
anos, uma sucessão de ondas de calor e secas mais intensas e extensas (em área
atingida e em duração). O regime de chuvas, no Sul e no Sudeste, altamente
dependente dos “rios voadores” (chuvas originadas na evaporação na região
Amazônica e carregadas pelos ventos), tornou-se errático, com precipitações
concentradas em algumas áreas (vide o caso mais recente do Rio Grande do Sul) e
estiagens prolongadas no Sudeste. A agricultura do agronegócio já está
fortemente afetada por este “novo normal” e as previsões são catastróficas para
o futuro.
Outras perdas
colossais são menos percebidas pelo público. A riquíssima biodiversidade
vegetal e animal dos citados biomas vem sendo devastada por este processo,
empobrecendo o futuro do país e do planeta.
Já foi citado acima o
risco (próximo de uma triste certeza) da desaparição do Pantanal, mas pouca
gente se dá conta do risco, anunciado pelos cientistas do INPE, da proximidade
do chamado “ponto de não retorno” na capacidade de regeneração da floresta amazônica.
Segundo esta avaliação, estamos a poucos anos do momento em que a maior
floresta tropical do planeta vai colapsar, mesmo se o desmatamento e queimadas
forem interrompidos bruscamente. Passado o ponto de inflexão, o bioma vai
começar um processo irreversível de degeneração, involuindo para uma vegetação
de savana arbórea e arbustiva, chegando até a um processo de desertificação.
Para o resto do país o problema será uma crescente falta de chuvas, com o
estancamento da formação dos rios voadores. Não é preciso dizer o que isto
representa para a agricultura nas regiões mais produtivas do Brasil. A
apregoada pujança do nosso agronegócio vai ser abalada, enterrando tanto
exportações como o abastecimento alimentar da nossa população.
<><> E
quem é o responsável por esta catástrofe anunciada?
A resposta é sabida
por todos os minimamente informados, mas não pelo público em geral, bombardeado
pela propaganda do “agro é pop, agro é tech e agro é tudo”, louvando a pujança
do agronegócio. O incrível neste quadro é a falta de reação dos setores do agronegócio
do Sul e do Sudeste, que preferem apoiar toda e qualquer medida que facilite o
processo de destruição em curso nos três biomas, que beneficia apenas a
pecuária extensiva no Norte e no Centro-Oeste. Nos últimos 35 anos, 71 milhões
de hectares de florestas foram transformadas em pasto só na Amazônia, hoje
concentrando quase a metade do nosso imenso rebanho de mais de 216 milhões de
cabeças de gado. Esta conversão vem crescendo em um contínuo, cada ano
superando as médias dos anos anteriores.
As tentativas de
controlar o desmatamento têm sido inúteis. Os Termos de Ajuste de Conduta e
outros acordos com os frigoríficos (JBS, Minerva e Marfrig, e outros menores)
estão em vigor há mais de 15 anos com efeito zero. Estes acordos impõem a
compra de gado oriundo de áreas que não passaram por desmatamento desde 2010 e
os frigoríficos garantem que estão cumprindo as regras, mostrando certificados
de fornecedores de gado em pé que os abastecem. Entretanto, há um mecanismo
para driblar o controle e os frigoríficos sabem muito bem explorá-los. O gado
criado em pastos oriundos de desmatamento é vendido para outras fazendas para
recria e engorda e estas estão, vamos dizer, “limpas”, fora da área de
desmatamento. É puro cinismo.
A medida a ser adotada
para um controle total é conhecida: colocar um chip de controle eletrônico em
cada cabeça de gado, permitindo saber onde cada rês nasceu e por onde passou.
Tecnicamente e economicamente isto é simples e relativamente barato, mas não é
aplicado, simplesmente porque a maior parte do gado vem realmente de áreas
desmatadas.
Quando a União
Europeia decidiu que só vai comprar carne provinda de áreas não desmatadas foi
exatamente esta medida de controle (rastreamento) que ela exigiu. A reação do
agronegócio brasileiro como um todo, e de seus representantes na poderosa
bancada ruralista no Congresso foi de ira, com protestos contra o que chamaram
de “protecionismo” e “reserva de mercado”. E o governo Lula embarcou neste
discurso, com o silêncio obsequioso da Ministra Marina Silva.
Se é espantoso que
outros setores do agro não tenham apoiado esta medida (que já vem sendo
discutida há tempos no Brasil), é ainda mais incompreensível que o governo Lula
cerre fileiras para apoiar o agronegócio pecuário da Amazônia, do Cerrado e do
Pantanal, entre outras razões (econômicas e ambientais) por ser foco do mais
exacerbado bolsonarismo.
Ou talvez o governo
esteja defendendo os grandes frigoríficos, com os quais já teve acordos
importantes nos governos anteriores de Lula e Dilma. Alguém se lembra das
imensas vantagens obtidas pela JBS para expandir seus negócios no exterior, na
chamada política de “campeões nacionais” financiados pelo BNDES?
Atualmente, apoiar os
frigoríficos é o mesmo que apoiar os pecuaristas que compraram terras baratas
em áreas desmatadas por grileiros e que estão levando não só à destruição de
três biomas, mas comprometendo o futuro de toda a nossa agricultura (sim, a familiar
está sendo e será prejudicada também) e do país.
Fonte: Por Jean Marc
von der Weid, em Outras Palavras
Nenhum comentário:
Postar um comentário