O que explica o aumento da procura por
formação de médicos de família na Bahia?
Se você não vivenciou
esta experiência, já deve ter escutado seus pais ou seus avós falarem de um
médico que os atendia em casa e era chamado de “o médico da família”. Décadas
depois, com um hiato de criação de planos de saúde e divisões de especialidades,
ele está de volta. Mas troque o “da família” para “de família” e esqueça a
imagem do doutor no masculino, branco e acima dos 50.
De 2014 a 2024, o
número de residências médicas em Medicina da Família e Comunidade (MFC)
autorizadas pelo Ministério da Educação (MEC) no Brasil cresceu 52%, passando
de 192 para 292. Já o número de vagas para o primeiro ano da especialização
cresceu 134%, saindo de 1.331 para 3.117.
Medicina de Família e
Comunidade é uma especialidade, assim como cardiologia e oftalmologia, por
exemplo. A criação é recente. De acordo com o MEC, enquanto a primeira
residência da especialidade no Brasil (ainda chamada de Medicina Geral
Comunitária na época) foi criada em 2000, na Bahia a abertura aconteceu apenas
em 2012, no município de Vitória da Conquista.
Em território baiano,
a profissão também vem crescendo. Eram 45 vagas em 2014 e, em 2024, são 237. A
quantidade de programas de residência saltou de cinco para 18. Foi a expansão
da profissão, aliada à pandemia de covid-19, que provocou a reativação da Associação
de Medicina da Família da Bahia (Abamefac), em 2021.
“O Brasil demorou de
incentivar essa especialidade, mas esse incentivo começou em 2013, com o
Programa Mais Médicos, que expandiu programas de residência. Ele ficou mais
conhecido por trazer médicos de fora para atuar no Brasil, mas também reforçou
a Atenção Primária à Saúde e fomentou a profissão de médico de família e
comunidade”, diz a presidente da Abamefac, Lorena Rosario.
No Rio de Janeiro, a
Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), da Fiocruz, criou a
residência em Medicina da Família e Comunidade em 2009, em parceria com a
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De lá para cá, aumentou o número
de vagas anuais de oito para 14. “No início, a gente nem preenchia todas as
vagas, a procura era baixa. Isso nunca mais aconteceu”, relata a coordenadora
da residência, Regina Daumas.
“Hoje acho que a
profissão é mais valorizada, as pessoas estão conhecendo mais. Achavam que
qualquer médico pode ser médico de família, bastava ficar ali no postinho e não
ter especialidade em nenhuma parte do corpo”, avalia Regina.
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Onde estão os médicos
de família?
A dona de casa Bruna
Araújo, de 27 anos, mora em Jacobina, conta com o sistema público de saúde e
não poupa elogios à especialidade. Ela e toda a família são assistidos, há
quatro anos, por um médico de família. São 10 pessoas ao todo, que moram na
mesma casa.
“A gente é atendido em
casa e o médico já conhece todo mundo há quatro anos, então isso facilita
muito. Ela sabe exatamente a nossa situação. Eu estou grávida e fazendo meu
pré-natal com ele. Para mim é ótimo porque ele acompanhou a minha última
gravidez também, sem falar que é um outro nível de atenção que a gente recebe,
uma pessoa que realmente chega junto”, compartilha.
Os médicos de família
não estão só no Sistema Único de Saúde (SUS); estão em consultórios e clínicas
em bairros como Horto Florestal e Costa Azul, em Salvador, sem deixar as
visitas domiciliares de lado.
Esse é o caso da
médica Juliana Abreu, de 33 anos. Ela cursou a graduação na Escola Bahiana de
Medicina e Saúde Pública e fez a especialização na Universidade Federal da
Bahia, concluída em 2023. Hoje ela tem um consultório próprio no Horto
Florestal.
“Eu faço uma abordagem
diferente porque quero conhecer, de fato, o paciente. Muitos deles me perguntam
se eu sou psicóloga, até se eu sou jornalista. Tem gente que ainda estranha,
mas vemos que existe uma demanda porque muitos contam que me procuraram porque
estavam cansados de ir a diversos médicos e eles nem olharem na cara ou nem
examinarem”, relata Juliana.
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Formação e atuação
Foi o contato mais
próximo com os pacientes que fez os olhos da médica nascida em Alagoinhas
Mayara Silva, de 30 anos, brilharem. Mesmo já na faculdade, ela só ouviu falar
sobre a especialidade em um congresso, no Rio de Janeiro, ao conhecer um médico
que trabalhava na Rocinha.
“Ele sabia onde as
pessoas moravam, a estrutura de vida, determinantes sociais. Ele passava nas
ruas e as pessoas o conheciam. Eu fiquei pensando ‘uau! É isso que eu quero
fazer!’”, lembra. Hoje, ela atua na Clínica Cisviver, no bairro do Costa Azul,
em Salvador, e é apoiadora pedagógica do programa de residência da Bahiana de
Medicina.
Ela concluiu a
residência em 2022 e conta uma das coisas que mais a encanta é poder atender
pacientes em todos os ciclos de vida, fazendo um acompanhamento a longo prazo.
Médicos de família atendem crianças, adolescentes, adultos, gestantes e idosos.
Regina Daumas explica
que a carga horária prática da residência pode variar entre 80 a 90%, enquanto
a teórica fica entre 10 e 20%. “A formação é baseada em atendimento em
consultório ou visitas domiciliares, passando por urgência e emergência e
atendimento ambulatorial”.
Mãe e filha, Rejane e
Luíse Cerqueira, respectivamente com 53 e 21 anos, são pacientes de Mayara.
Rejane conta que teve contato com o termo “medicina de família” somente em
2020, durante a formação para professora de yoga do riso, cujo criador é um
médico de família indiano. “Eu estranhei o termo e fui pesquisar, mas fiquei
achando que era algo que não tinha no Brasil, que era de fora”, diz.
O pensamento continuou
até ela e a filha conhecerem Mayara, quando procuraram uma nutricionista na
Cisviver e passaram pela médica antes como pré-requisito. Rejane lembra que foi
conquistada pela abordagem diferenciada. “Vai além das questões físicas e do
pensamento saúde versus doença. Ela pergunta do meu trabalho, rotina, relações
familiares. Na primeira consulta, comentei com a minha filha: ‘eita, ela quer
saber tudo da nossa vida!’, mas isso é bom, hoje sinto que criei uma relação
com ela e uma confiança nesse acompanhamento”, compartilha.
Para explicar o
atendimento, Rejane recorda o episódio em que relatou a Mayara que estava com a
respiração ofegante. “Eu contei que tinha ido ao otorrino e ele tinha dito que
não detectou nada, que não era falta de ar. Então Mayara disse que era estresse
e ansiedade, com base nos conhecimentos que ela tem do meu dia a dia e do meu
trabalho, e me encaminhou ao psicólogo”, coloca.
Mayara Silva
acrescenta que o atendimento passa por aspectos físicos, psicológicos, sociais
e espirituais ou religiosos. “A gente também tem a grata surpresa de receber
pacientes que chegam encaminhados por outros especialistas. Tem, por exemplo,
uma pessoa que é acompanhada por um neurologista e que teve um AVC. O
neurologista disse que ela precisava de um acompanhamento durante o processo de
reabilitação e encaminhou para a medicina de família”, conta Mayara.
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Profissão do futuro?
Para a médica, a
especialidade deve crescer ainda mais nos próximos anos. “Eu vejo como a
profissão do futuro. Cada vez mais as pessoas vão entender a importância da
existência de médicos de família, de ter alguém que te acompanhe, que te
enxergue na totalidade, que não te veja por partes”, defende.
A demanda, inclusive,
parte dos planos de saúde. “Os planos têm aberto portas, entendendo que os
médicos de família reduzem custos. Nós só vamos pedir exames quando necessário,
só vamos encaminhar para especialistas quando necessário e vamos internar menos
porque o trabalho de prevenção e acompanhamento é muito forte. É o que chamamos
de escolhas sábias em saúde”, destaca.
O diretor
técnico-médico da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), Cássio
Ide Alves, confirma o interesse dos planos pela medicina de família. “Os planos
estão cada vez mais tendo como foco o investimento na atenção primária, na
medicina preventiva. É mais racional, melhor para a jornada dos pacientes e
mais sustentável. A gente quer manter a saúde do beneficiário e não ter que
chegar ao ponto de tratar uma doença grave”, coloca.
Mas ele pondera o
cenário. “Ainda temos pouca oferta desses profissionais, é uma especialidade
recente e são os planos mais novos que estão absorvendo-os. Ainda temos uma
questão cultural de uma sociedade que valoriza muito a especialização, os
beneficiários ainda demandam uma multiplicidade de especialistas”, acrescenta o
diretor.
Para a presidente da
Abamefac, Lorena Rosario, a explicação está no comportamento do setor médico
privado. “A formação de especialistas, em muitos países, é vinculada às
necessidades de saúde da população. As vagas são abertas conforme essa
identificação. No Brasil, não é bem assim, é mais uma demanda de mercado e o
setor privado domina. Isso está relacionado com a medicalização da vida e a
fragmentação do olhar para o corpo. Hoje, os estudantes já entram na faculdade
desejando uma especialidade”, diz.
De acordo com a
Demografia Médica no Brasil de 2023, enquanto 62,3% dos médicos são
especialistas, apenas 37,7% são generalistas. Em Salvador, a proporção segue a
mesma linha, mas, na Bahia como um todo, o equilíbrio é maior. São 57,1% de
especialistas e 42,9% de generalistas.
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Como fica o SUS?
Lorena defende que a
especialidade é “atrativa para qualquer nível socioeconômico”. “Todo mundo quer
um médico de família para chamar de seu, alguém que te acompanha, que conhece
sua história de vida, que rememora aquele médico de família tradicional que
atendia seu avô”, diz.
O presidente da
Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), Fabiano
Guimarães, reconhece o movimento de expansão da especialidade no atendimento
particular e alerta que, a depender das condições ofertadas aos médicos no
atendimento público, pode haver uma migração significativa de profissionais.
A especialidade tem
forte vínculo com o SUS por conta do programa Estratégia Saúde da Família
(ESF), da Atenção Básica. É neste atendimento que 80% dos problemas de saúde
são resolvidos e onde estão muitos médicos de família e comunidade.
“No Brasil, há essa
confusão entre a especialidade e a estratégia do Governo, que tem médicos nos
centros de saúde em equipes de saúde da família. Mas, na verdade, muitos deles
não têm residência em Medicina de Família e Comunidade”, ressalta Fabiano Guimarães.
O número de
especialista é aquém do ideal, segundo as associações. Um levantamento nacional
feito em conjunto aponta que o Brasil tem 11 mil médicos da especialidade e
precisa formar 50 mil profissionais da área para atender às demandas do SUS. Na
Bahia, são 343 médicos de família e comunidade.
Não há exigência de
que os médicos das equipes de Saúde da Família tenham a especialidade. “Para o
médico de família, antes não havia vantagem em ocupar uma vaga que poderia ser
ocupada por qualquer médico sem especialidade. Agora, isso tem mudado um pouco
a partir de iniciativas do poder público”, opina Regina Daumas.
Como ressalta o
diretor técnico-médico da Abramge, Cássio Ide Alves, ainda há um caminho a ser
percorrido rumo à valorização financeira destes profissionais. “Enquanto a
média de remuneração de especialistas focais é de R$17.800 a R$18.500, a de
médicos generalistas, como clínicos e médicos de família, fica em R$11.500 a
R$12.500”, compartilha.
Os ministérios da
Educação e da Saúde lançaram, em 2009, o Programa Nacional de Apoio à Formação
de Médicos Especialistas em Áreas Estratégicas (Pró-Residência), que prevê a
ampliação da oferta de bolsas de residência médica em regiões e especialidades
prioritárias para o Sistema Único de Saúde (SUS). Esse é o caso da Medicina de
Família e Comunidade.
Além da bolsa que todo
residente recebe, no valor mínimo de R$ 4.106,09 mensais, há eventuais bolsas
dos programas de incentivos à Medicina de Família e Comunidade concedidas pelas
secretarias de saúde, que são somadas ao valor-base. Em Salvador, o valor de
acréscimo é de R$ 6 mil.
Fonte: Correio da
Bahia
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