O primeiro passo na jornada do Vietnã rumo
à liberdade
Em 2 de setembro de
1945, a Declaração de Independência da República Democrática do Vietnã foi
proclamada em Hanói. Esse acontecimento sinalizou que o mundo emergente da
Segunda Guerra Mundial seria muito diferente daquele que existia anteriormente.
Em vez de ceder ao
desejo de liberdade nacional, o governo francês tentou restaurar seu regime
colonial. Essa recusa em conceder autodeterminação ao povo da Indochina
preparou o cenário para trinta anos de um conflito imensamente destrutivo,
durante o qual os Estados Unidos assumiram o papel da França em nome do
anticomunismo.
As cicatrizes dessa
longa luta, tanto físicas quanto psicológicas, ainda são bastante evidentes
hoje. Tudo isso poderia ter sido evitado se as autoridades em Paris tivessem
respondido à Declaração de Independência do Vietnã com um espírito de
democracia e não de dominação colonial.
·
A Indochina colonial
AFrança colonizou a
Indochina — Vietnã, Laos e Camboja — a partir da década de 1880. O
primeiro-ministro francês na época era Jules Ferry, um racista que argumentava
que as “raças superiores” tinham o dever de civilizar as “raças inferiores”.
Hoje, Ferry é mais lembrado por ter estabelecido a educação secular,
independente da igreja, na França. Um sistema educacional controlado pelo
Estado, que inculcava os valores do patriotismo e do militarismo, fazia parte
do pacote colonialista.
As possessões
coloniais da França cresceram rapidamente. Em 1919, a França possuía o segundo
maior império do mundo, abrangendo quase um décimo da área terrestre mundial e
5% da sua população. Era o segundo maior em tamanho (e brutalidade), perdendo
apenas para o império britânico.
Em 1931, as autoridades
francesas organizaram uma exposição colonial em Paris, que foi visitada por 8
milhões de pessoas. O ministro das colônias, Paul Reynaud, descreveu a
colonização como “o maior fato da História” e vangloriou-se de que “nosso
domínio sobre o mundo está se estreitando a cada dia”. Quando Reynaud morreu em
1966, o império francês havia se desintegrado completamente.
A justificativa
francesa para o colonialismo repousava sobre a chamada missão civilizadora — a
alegação de que estava levando a civilização a países supostamente “atrasados”.
Líderes franceses muitas vezes davam a esse argumento uma conotação progressista,
sugerindo que os valores da Revolução Francesa de 1789 estavam sendo exportados
para o mundo. No entanto, para os habitantes de uma colônia como a Indochina,
havia muito pouca liberdade ou igualdade — e menos ainda fraternidade.
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Uma missão de barbárie
Em 1931, uma
jornalista francesa, Andrée Viollis, acompanhou uma visita ministerial oficial
à Indochina. Isso lhe deu acesso aos círculos oficiais, mas ela também
aproveitou a oportunidade para encontrar prisioneiros políticos. O resultado
foi um livro, SOS Indochina (1935), que ofereceu um relato devastador da
realidade da vida na colônia francesa.
Em vez da tão
alardeada “missão civilizadora”, Viollis encontrou exploração e pobreza
extrema. Em um distrito, havia apenas um médico para 160 mil habitantes
indígenas. O regime colonial enfrentava a resistência com repressão selvagem e
o uso frequente da tortura.
Viollis havia visitado
anteriormente a Índia, sob domínio britânico. Ela acreditava que a França
“usava métodos de colonização mais humanos e inteligentes do que a Inglaterra”.
No entanto, como ela observou, “alguns dias na Indochina seriam suficientes para
destruir brutalmente essa ilusão”. Ela contou a história horrível de um
prisioneiro que “mordeu a própria língua para não falar”.
Viollis também
conheceu colonos franceses que reconheciam que o domínio francês estava
condenado. Como um funcionário público lhe disse: “Talvez em quinze anos, nós,
franceses da Indochina, não estaremos mais aqui, e isso será nossa culpa!”
·
Libertação ou restauração?
Aocupação da França
pela Alemanha em 1940 piorou ainda mais as coisas para a Indochina. Os
apoiadores do marechal pró-alemão Philippe Pétain assumiram o controle do país.
No último ano da guerra, houve uma fome catastrófica: as estimativas de mortes
variam de 500 mil a 2 milhões.
Em 1941, os líderes da
Grã-Bretanha e dos Estados Unidos adotaram a Carta do Atlântico, que reconhecia
que todos os povos tinham direito à autodeterminação (embora o líder britânico
Winston Churchill tenha tentado afirmar que isso não se aplicava ao Império
Britânico). As potências Aliadas afirmavam estar lutando contra os nazistas em
nome de liberdades e direitos básicos. No entanto, as populações do mundo
colonial nunca haviam desfrutado desses direitos em primeiro lugar.
Esse foi o contexto da
Declaração de Independência em 1945. Ho Chi Minh, um lutador de longa data
contra o imperialismo e fundador do Partido Comunista Indochinês, formou o Viet
Minh, uma coalizão nacional de independência, em 1941. Sua declaração ecoou a
Declaração de Independência dos Estados Unidos de 1776:
“Todos os homens são
criados iguais. Eles são dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis,
entre eles a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade.”
A mensagem era
simples, e sua lógica se espalharia pela Ásia e África nos anos seguintes — se
é bom o suficiente para os americanos, é bom o suficiente para nós,
vietnamitas.
Mas era uma mensagem
que o colonialismo europeu não estava pronto para ouvir. A França ainda estava
reconstruindo suas Forças Armadas após a ocupação, então tropas britânicas —
enviadas pelo recém-eleito governo trabalhista — assumiram o controle do país e
garantiram que a independência fosse sufocada. Quando o deputado trabalhista
Tom Driberg, que estava visitando a Indochina, tentou mediar, sua carta foi
atrasada pelo General Douglas Gracey, comandante-chefe das Forças Aliadas em
Terra.
<><> Ho
Chi Minh e “La Lutte”
ADeclaração de
Independência respondeu a profundas aspirações do povo da Indochina, que não
queria retornar à opressão e miséria dos anos 1930. Em uma área, mineiros
elegeram conselhos de trabalhadores para controlar todo o distrito.
Em Saigon, surgiu a
demanda por uma reconstrução mais radical da sociedade, incentivada pela
organização trotskista La Lutte (“A Luta”), que tinha desfrutado de apoio
significativo na década de 1930. O revolucionário Ngo Van descreveu como
“numerosos comitês populares… surgiram espontaneamente, como organizações de
gestão local”.
Isso não se alinhava
com as perspectivas de Ho Chi Minh e do Viet Minh. Com o fim da Segunda Guerra
Mundial, Stalin havia concordado em dividir o mundo entre a União Soviética e
as potências ocidentais, e estava determinado a garantir que seus seguidores
não perturbassem o novo equilíbrio de poder.
Por sua vez, Ho Chi
Minh não queria ver um movimento de autodeterminação de trabalhadores e
camponeses crescendo além de seu controle. Ele dependia da liderança soviética
para orientação política e acreditava na possibilidade de cooperação com seus
antigos camaradas do Partido Comunista Francês, que agora faziam parte do
governo em Paris. Em contraste, os trotskistas vietnamitas acreditavam que, se
algo fosse alcançado nessa situação, os trabalhadores indochineses teriam que
confiar em sua própria força.
La Lutte e seus
apoiadores foram brutalmente reprimidos tanto pelas forças coloniais quanto
pelo Viet Minh. As forças do Viet Minh mataram Tạ Thu Thâu, um líder de longa
data que havia sido preso pelos franceses e eleito como vereador na década de
1930.
Quando Ho Chi Minh foi
à Paris para negociações em 1946, ele convidou Daniel Guérin, um militante
anticolonial estabelecido, para almoçar em um hotel. Desafiado sobre o destino
de Tạ Thu Thâu, Ho respondeu: “Todos os que não seguirem a linha que tracei
serão destruídos.”
·
Apego ao Império
Abreve tentativa de
independência da Indochina falhou. Se tivesse sido bem-sucedida, teria evitado
não apenas uma, mas duas guerras desnecessárias. A longa luta pela liberdade,
que deixou pelo menos 3 milhões de mortos, poderia ter sido evitada.
Mas aqueles que
governavam a França estavam determinados a manter seu império. O chefe do
governo provisório que emergiu da Libertação foi Charles de Gaulle, um militar
de direita que havia incentivado a resistência à ocupação nazista a partir de
Londres. Mas a maioria das forças de direita na França havia sido desacreditada
por seu apoio aos nazistas, de modo que os partidos no governo de De Gaulle
eram predominantemente de esquerda: comunistas (PCF), socialistas (SFIO) e
democratas cristãos.
Para De Gaulle, não
havia dúvida de que a França continuaria em seu papel imperial. Em uma
transmissão, ele declarou que a França estava retomando seu “lugar no mundo.”
Já no verão de 1945, a França havia entrado em confronto com a Grã-Bretanha
sobre o controle da Síria.
Vindo de De Gaulle,
isso era esperado. Mais decepcionante foi a resposta da esquerda, que foi muito
lenta em abordar a questão do colonialismo. Le Monde, um jornal diário
recém-fundado, geralmente expressava um ponto de vista progressista, de
centro-esquerda. Mas, em setembro de 1945, notou com prazer a perspectiva de
que “a bandeira francesa voltará a tremular no céu indochinês.”
O Partido Comunista,
formado em 1920 sob a influência da Revolução Russa, originalmente comprometido
em apoiar os movimentos de libertação nas colônias, viu seu compromisso com o
anticolonialismo diminuir à medida que refletia cada vez mais os interesses da
política externa soviética.
O Tratado de
Assistência Mútua Franco-Soviético de 1935 fez com que os comunistas franceses
— e indochineses — abandonassem sua oposição à política de defesa nacional da
França, para a consternação de muitos socialistas vietnamitas. O PCF abandonou
sua demanda por independência colonial: o líder do partido, Maurice Thorez,
usou o argumento espúrio de que “o direito ao divórcio não significava a
obrigação de divorciar-se.” A implicação aparentemente era que a relação da
França com suas colônias constituía um casamento feliz. O povo da Indochina
talvez não concordasse.
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Brutalidade na Argélia
Sob a liderança do
PCF, a Resistência se apresentou como um movimento de independência nacional,
muitas vezes usando slogans grosseiramente anti-alemães, em vez de
antinazistas. Não abordaram a questão da França como potência colonial e uma
nova geração introduzida ao ativismo que não foi confrontada com a questão
colonial. A SFIO, com exceção da ala de extrema esquerda, sempre foi mais fraca
em questões coloniais.
As coisas mudaram
desde o primeiro dia do período pós-guerra. Em 8 de maio de 1945, foi realizada
uma celebração da vitória em Sétif, no norte da Argélia. A polícia abriu fogo
contra uma manifestação pacífica de nacionalistas argelinos. Isso provocou uma
revolta espontânea na qual cerca de cem colonos europeus foram mortos, vítimas
da raiva acumulada da população indígena.
O governo francês
ordenou uma retaliação maciça, com ataques, bombardeios e esquadrões da morte.
Pelo menos quinze mil muçulmanos morreram, provavelmente muito mais. No
entanto, o PCF e a SFIO permaneceram no gabinete em Paris e concordaram com a
repressão.
A única oposição na
França veio da extrema esquerda. Um jornal independente de esquerda chamado Ohé
Partisans denunciou o massacre como “Oradour-sur-Glane na Argélia”,
comparando-o ao massacre nazista de mais de 600 pessoas na cidade francesa com
esse nome. Comparações entre a ocupação nazista da França e o domínio francês
em suas colônias tornaram-se cada vez mais frequentes nos anos seguintes.
Enquanto o PCF e a
SFIO permaneciam no governo, eles não fizeram nenhuma tentativa de desafiar o
domínio colonial da França. Como resultado, as primeiras expressões de apoio à
independência da Indochina vieram de indivíduos não alinhados. Em novembro de 1945,
o filósofo católico Joseph Rovan, que havia sido preso em Dachau por atividades
de resistência, denunciou as “posições desumanas do colonialismo”.
Comentando a afirmação
do general francês Philippe Leclerc de que o Viet Minh eram “bandidos e
extremistas”, Rovan lembrou “a época em que os resistores franceses também
foram descritos como terroristas e criminosos comuns recrutados no submundo.” O
novo jornal de Jean-Paul Sartre, Les Temps modernes, pediu a retirada das
tropas francesas e publicou vários artigos contrários à guerra, embora sem
apoiar explicitamente a independência.
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Morrendo pelos plantadores de borracha
Henri Martin, um jovem
comunista que havia sido ativo na resistência, permaneceu nas Forças Armadas
após a Libertação para ir à Indochina, acreditando que continuaria a luta
contra os remanescentes do fascismo. Em maio de 1946, ele escreveu aos pais com
a seguinte mensagem:
Na Indochina, o
Exército francês está se comportando como os alemães fizeram na França. Estou
completamente desgostoso de ver isso. Por que nossos aviões metralham (todos os
dias) pescadores indefesos? Por que nossos soldados saqueiam, queimam e matam?
Para trazer a civilização?
A determinação
francesa de manter o império e a demanda indochinesa por liberdade não podiam
coexistir. Em novembro de 1946, um navio francês bombardeou Haiphong, matando
seis mil pessoas e iniciando uma guerra em grande escala. Mas o PCF e a SFIO
permaneceram no governo; em março de 1947, ministros do PCF votaram a favor de
créditos de guerra, enquanto os outros deputados comunistas apenas se
abstiveram.
A única oposição veio
da seção juvenil da SFIO (que logo seria dissolvida), que organizou uma
campanha de panfletagem, colagem de cartazes e reuniões, culminando em uma
manifestação militante. Um panfleto dizia:
As pessoas pensam que
estão morrendo pela pátria, mas estão morrendo pelos plantadores de borracha…
nem um tostão, nem um homem pela Indochina.
Em 1947, após uma
greve na fábrica de automóveis da Renault, o PCF foi expulso do governo. Com a
intensificação da Guerra Fria, os comunistas franceses agora montaram uma
oposição vigorosa à guerra. Houve greves de estivadores e manifestações
violentas nas quais apoiadores do PCF atacaram e danificaram munições
destinadas à Indochina. Após Henri Martin ser preso por distribuir material
antiguerra nas Forças Armadas, uma grande campanha começou em seu apoio,
respaldada por intelectuais como Sartre e Pablo Picasso.
Por sete anos, a
França lutou para manter a Indochina. Embora o governo francês não tenha usado
recrutas, alguns dos soldados regulares reconheceram a natureza da guerra que
estavam lutando. Durante a Libertação, Albert Clavier, esperando conhecer o
mundo, se alistou na Artilharia Colonial — embora, como ele posteriormente
lembrou, “não soubesse muito sobre o que eram as colônias”. Ele descobriu ao
fazer amizade com uma família indochinesa e observar as atrocidades francesas.
Eventualmente, ele desertou para o Viet Minh.
O movimento de
independência empregou Clavier em trabalho de propaganda, abordando tropas
francesas com um alto-falante, instando-as a depor suas armas e traçando
paralelos entre a luta vietnamita e a Resistência Francesa. Ele compartilhou o
padrão de vida de seus anfitriões vietnamitas, subsistindo com dois pratos de
arroz por dia.
<><> Uma
guerra brutal, depois paz
Os resultados da
determinação da França em manter seu império também podem ser vistos em
Madagascar. Em 1947, uma insurreição
nacionalista se espalhou rapidamente, envolvendo até um milhão de camponeses,
que logo foram acompanhados por trabalhadores ferroviários. As forças francesas
recorreram a execuções em massa, à queima de vilarejos inteiros e à tortura, e
conseguiram reprimir a insurreição em dezembro de 1948.
Apenas doze anos
depois, Madagascar conquistou sua independência. A defesa do império pela
França foi brutal, mas fútil. Houve pouca crítica às guerras coloniais por
parte da esquerda não comunista, exceto por indivíduos como o romancista Albert
Camus.
A guerra fútil e
assassina na Indochina durou até 1954. Após a derrota francesa em Dien Bien
Phu, a Indochina foi dividida; Laos e Camboja já haviam se tornado
independentes em 1953. Um estado comunista foi estabelecido no Vietnã do Norte,
com um regime pró-americano no Vietnã do Sul.
As eleições prometidas
nunca ocorreram. Iludidos por sua própria ideologia da Guerra Fria, os Estados
Unidos falharam em reconhecer o apoio popular à independência nacional e
enviaram um número crescente de tropas para apoiar um regime fantoche no Vietnã
do Sul. Somente em 1975 o Vietnã obteve a independência que poderia, e deveria,
ter tido trinta anos antes.
Não se desenvolveu em
uma sociedade socialista como alguns haviam esperado. No entanto, parece ter
lidado com a pandemia de COVID-19 de forma consideravelmente melhor do que seus
antigos mentores imperiais na França, nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha.
<><>
Legados imperiais
Os franceses não
haviam aprendido nada e não haviam esquecido nada. Pouco depois da liquidação
da guerra indochinesa, eclodiu uma rebelião na Argélia. Um governo liderado
pelo líder da SFIO, Guy Mollet, intensificou a repressão militar. François
Mitterrand (mais tarde presidente socialista) foi responsável pela execução de
prisioneiros rebeldes.
O PCF fez uma campanha
morna pela “paz” em vez de pedir a independência argelina e falhou em apoiar
revoltas de recrutas que se recusavam a ir para a Argélia. Somente em 1962,
quando De Gaulle, que havia retornado ao poder após uma crise política, encarou
a realidade e negociou a independência argelina. Naquela época, a maior parte
do império francês já havia sido liquidada.
O presidente Emmanuel
Macron reconheceu que a história colonial da França na Argélia envolveu “crimes
contra a humanidade”. Mas a estátua de Jules Ferry ainda permanece no Jardim
das Tulherias, em Paris, perto do Museu do Louvre. Talvez esteja na hora dela
cair.
Fonte: Por Ian
Birchall, com tradução de Priscila Marques, em Jacobin Brasil
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