Mudanças
na Igreja Católica do século XXI e o impacto na sociedade brasileira, segundo
teóloga
O século
XXI traz consigo a ideia de mudança. O surgimento das redes sociais e a inserção cada vez maior das tecnologias na sociedade mudam a configuração na vida humana. As instituições, a
partir desse cenário, também buscam se adaptar e a Igreja Católica não é diferente. É a partir desta proposição que a teóloga
e cientista social Brenda Carranza discute as mudanças no catolicismo neste século e como isso afeta a sociedade brasileira.
Na
videoconferência intitulada “Incidências ou não da Igreja Católica na sociedade brasileira no
século XXI”, promovida pela Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia – FAJE, Brenda Carranza afirma que há uma união
entre parte da Igreja Católica e a ultradireita no Brasil nos últimos anos. “O que sustento é que estamos diante
de um catolicismo com uma inflexão ao lado do conservador e
de direita diante de uma nova conjuntura social, novos pressupostos
de estrutura de Estado e sociedade democrática, e que se pauta por um projeto
político que visa ter como voz ordenadora o autoritarismo”, pontua.
Segundo
ela, há pautas que unem a velha e a nova direita cristã. “O fio condutor que une a pauta conservadora agora são
as campanhas antigênero. Essa direita cristã traz velhas reivindicações: guerra cultural, comunismo, armamentismo. E uma nova direita cristã traz também
a demonização da agenda pró-direitos, direitos reprodutivos, agenda LGBT, as alianças no Congresso e
na formulação de políticas públicas”, diz.
A
atividade integra o III Congresso Brasileiro de Teologia
Pastoral: A pastoral da Igreja do Brasil no século XXI: balanço, incidências,
perspectivas, iniciativa do Grupo de Pesquisa Teologia
Pastoral da FAJE, em parceria com outras instituições de ensino de Teologia.
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Confira a entrevista.
·
O que você considera como as mudanças mais
significativas do fim do século XX e início do século XXI no cenário brasileiro
da Igreja Católica?
Brenda
Carranza – O catolicismo midiático, a Renovação Carismática Católica e a pentecostalização brasileira. Esses são os
pressupostos de uma mudança no fim do século XX. Qual seria o pressuposto do século
XXI? Sabemos que tínhamos ferramentas analíticas para imaginar o que foi uma
das inflexões fundamentais do século XX: o Vaticano II com sua teologia latino-americana. Aquelas ferramentas
trabalhavam, a partir das Ciências Sociais, as concepções sobre sociedade,
injustiça e desigualdade.
A
partir da fala do professor Jessé de Souza sobre a questão escravocrata como princípio fundamental de interpretação da sociedade,
sabemos que nossa sociedade começa assim e segue, até hoje, com um nível
gigantesco de desigualdade mesmo depois de tanto tempo. A desigualdade está pautada
no Vaticano II e nas conferências episcopais da teologia
latino-americana.
Outro
pressuposto é imaginar que existiu uma leitura da Renovação Carismática
Católica na sua pentecostalização do catolicismo, e a Teologia da Libertação com sua defesa por um catolicismo engajado com o povo nas
questões sociais. É uma leitura muito simplista, tanto de agentes pastorais
como da mídia religiosa. A mídia colocava a renovação carismática como a
renovação de tudo, que poderia significar uma renovação espiritual,
performática e litúrgica.
A Teologia
da Libertação representava, para a Igreja Católica, seu compromisso social
e era política enquanto não era espiritual. Há anos eu refuto essas teses.
A renovação carismática, a pentecostalização, a direita cristã e
a direita católica têm um projeto político e se expressam politicamente em
todas as instâncias, assim como a Teologia da Libertação tinha um
projeto político e se expressava em todas as instâncias, principalmente em
coletivos sociais e em bases pastorais.
Essa
visão do fim do século XX seria uma maneira de abordar o que seriam as mudanças
dentro da Igreja Católica? Diria que a presença da Igreja Católica na
esfera pública e política ressignifica o compromisso social e altera a exposição midiática da Igreja. No início do século XXI, pode-se dizer que algo se desviou
dentro do catolicismo. Há um deslocamento interno no catolicismo
institucional que passa de uma postura de reivindicação de hegemonia societária
(ela é a voz da sociedade mundial do cristianismo) para uma aliança estratégica no campo
religioso evangélico, tendo a pauta reprodutiva,
os direitos e a ideologia de gênero como alvo de perseguição.
Há
também uma agenda moral comum por toda América Latina, alinhada a diretrizes
do Vaticano e estratégias que alavancam a visibilidade midiática e
política no Brasil. O catolicismo e sua leitura do final do século XX e da
segunda década do século XXI não nos ajudam a entender as mudanças internas do
catolicismo. Elas passam por setores católicos que se alinham com
uma pauta moral. Essas alianças com setores conservadores evangélicos, que trabalham uma pauta de moralidade que reverbera na mídia
religiosa, levam para a frente pressupostos de moralidades públicas,
religiosas, éticas e sociais do cristianismo como sendo pressupostos sociais e
éticos da sociedade brasileira. Um Brasil cristão, por ser de maioria cristã, impõe a todos a sua moralidade.
O ultraconservadorismo, dentro do catolicismo, trabalha com a visão de que o mundo
está em decomposição moral, uma visão totalizante do mundo necessária para
manter um status quo e defender a tradição e a moralidade de
um tipo de família. Vai haver uma mudança litúrgica e, diante disso, há uma defesa
da liturgia tradicional
e do clericalismo.
Falo
de neoconservadorismo a partir de afrontas à democracia, às pautas de direitos
e da interseccionalidade social e dos marcadores sociais. Não se pode falar de religião se
não se fala de sexo, sexualidade, raça, gênero, etnia, desigualdade
social. Wendy Brown, uma filósofa política, trabalha o conceito de
neoconservadorismo na linha de, quando as instituições democráticas são
atacadas, elas precisam de uma contrarreação.
·
Você fala em uma “ultradireita católica, do
papel das mídias sociais católicas e do fortalecimento da ala conservadora”. O
que isto significa?
Brenda
Carranza – Há afinidades ideológicas com uma projeção midiática desta
tendência ultraconservadora. Um dos grandes parâmetros dessa inflexão
contextual é o governo Bolsonaro. Poderíamos tecer os personagens católicos que apoiaram a
representação de um governo de ultradireita. Essa teologia política traz a defesa da moralidade cristã e da visão de mundo nos moldes da corrupção porque
é uma moralidade política sobre os problemas da desigualdade social.
Essa
inflexão tem uma grande reverberação popular. Li um texto que traz os influenciadores digitais católicos, seus efeitos e as perspectivas teológicas e pastorais. Entre
os influenciadores estão o padre Paulo Ricardo, o padre Fábio de Melo e outros. É muito interessante por mostrar o impacto
desses influenciadores na sociedade e na inserção popular através de um clique
no celular.
São também youtubers católicos na linha deste conservadorismo, que questionam a
autoridade e trazem suas afinidades ideológicas com a ultradireita. Há uma
moralidade sexual e na corrupção, que veem como fonte dos problemas sociais a
corrupção e não a desigualdade. Temos uma agência social que se torna porta-voz
de um tipo de catolicismo.
Se
avançarmos na recomposição do catolicismo em uma imagem interna,
teremos muitos elementos que nos levam à conclusão de que estamos em um novo
momento do catolicismo. A primeira coisa, a partir de uma pesquisa que fiz
com Agenor Brighenti e outros pesquisadores sobre o novo clero brasileiro, é entender
como funciona este clero e o que ele traz como visão de mundo e de Igreja.
Achei
interessante um texto de Romero Venâncio onde ele coloca em discussão, a partir de uma pesquisa
realizada na França, como o clero pode estar malformado de um abandono da
esquerda na formação das bases religiosas do catolicismo e como as redes
sociais preencheram essas lacunas. Quais são as fontes de formação do novo
clero brasileiro? Nas aulas do padre Paulo Ricardo e nos textos
de Bernardo Küster. Essas bases sociais precisam ser retomadas.
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Figuras influentes e significativas do novo catolicismo
O padre Lancelotti é uma figura de incidência social, política e midiática no
estado de São Paulo, mas com projeção nacional a partir de sua proposta de
leitura das necessidades sociais. É um projeto de sociedade, uma visão de mundo
e uma proposta de interpretação do catolicismo a partir da chave social.
Podemos dizer que o padre Lancelotti representa um catolicismo
progressista, de Teologia da Libertação, que interage com diferentes
esferas sociais a partir de uma realidade concreta: os moradores de rua.
A
segunda figura é o deputado federal Eros Biondini. É um católico carismático, ascende como cantor gospel, vira
deputado, participa intensamente do Congresso Nacional e agora está
com sua filha, candidata a vereadora em Minas Gerais e possivelmente
seguirá uma saga familiar política. Ela também seria representante de um novo
tipo de interpretação sobre o papel da mulher em um grupo ligado a uma visão antifeminista. Podemos localizar Biondini dentro de uma política
institucional católica que adere a projetos que a Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil – CNBB tem posto em discussão.
A
terceira figura é Christine Nogueira dos Reis Tonietto. Em
2018, Chris Tonietto foi a congressista parlamentar mais jovem e mais
bem votada do Brasil. Foi candidata em nome da religião cristã, da sua fé e do
seu engajamento católico. Ela também é fundadora do grupo ultraconservador do
Rio de Janeiro, Centro Cultural Dom Bosco. No Congresso Nacional, ela
aderiu à pauta sobre as questões da reprodução humana junto à Angela
Gandra.
Por
último, temos Bernardo Küster, um youtuber nordestino com
alta incidência na sociedade católica, sobretudo nas redes sociais. Ele tem
afinidades ideológicas com Olavo de Carvalho e com o padre Paulo Ricardo: os três direcionaram seu
olhar para uma perspectiva no espectro político à ultradireita.
Por
que cito essas quatro figuras? Para mostrar que temos tendências que colocam
o catolicismo do século XXI com outra performance e
outro tipo de incidência social. Com essas figuras há visões de sociedade em
disputa: a visão progressista da Teologia da Libertação, do catolicismo
social; e uma visão de mundo conservadora como estratégia de posicionamento no
espectro social e que atravessa toda a alteridade relativa. Isso significa que
nós temos o conservadorismo como uma estratégia que reativa relações com o
outro. Observa como o outro se posiciona e isso tem a ver com a defesa de um
tipo de moralidade, família, nação. Essa visão precisa, para se defender, sempre apontar inimigos.
Isso é fundamental: sempre ter inimigos.
·
Quais pautas unem o catolicismo brasileiro
e o ultraconservadorismo?
Brenda
Carranza – O catolicismo à direita está flertando com esse ultraconservadorismo que se nega a
reconhecer o caráter ecumênico das iniciativas da Igreja Católica. Lembro
da Campanha da Fraternidade de 2021, em que tivemos sérios problemas e fortes ataques à
instituição CNBB, entidade que teve seu caráter católico posto em dúvida.
Foi um problema com o Centro Dom Bosco.
É
importante considerar como foi trabalhada essa campanha. Havia acusações de
infiltrado da esquerda revolucionária como imposição de ideologia de
gênero e a desqualificação do ecumenismo através da perseguição das organizadoras da campanha.
Coloco esse fato para mostrar o ataque institucional deste Centro à instituição
de caráter religioso e colegiado. Isso foi uma performance militante
disruptiva que trazia consigo um modo de romper e comunicar-se com o uso das
redes sociais em memes e vídeos, mas, sobretudo, aliando-se com a
comunidade bolsonarista. Detectamos onde estava esse alinhamento e o perigo de performances baseadas
em ódio, em discursos autoritários e que traziam uma constelação de uma teologia do poder.
O
fio condutor que une a pauta conservadora agora são as campanhas antigênero.
Essa direita cristã traz velhas reivindicações: guerra cultural, comunismo,
armamentismo. E uma nova direita cristã traz também a demonização da
agenda pró-direitos, direitos reprodutivos, agenda LGBT, as alianças no
Congresso e a formulação de políticas públicas. Por isso digo que não podemos falar que alguns cuidam da
espiritualidade e outros da política. Toda teologia traz seu próprio projeto
político e, neste caso, o ultraconservadorismo traz um projeto político de
sociedade de formulação de políticas públicas, Estado e governo.
Há
uma afinidade ideológica com uma projeção midiática desta tendência
ultraconservadora. Um dos grandes parâmetros dessa inflexão contextual é o
governo Bolsonaro. Nós poderíamos tecer os personagens católicos que
apoiaram a representação de um governo de ultradireita. Essa teologia política
traz a defesa da moralidade cristã e da visão de mundo nos moldes da corrupção
porque é uma moralidade política sobre os problemas da desigualdade
social.
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Abusos sexuais e discursos
Outro
ponto importante neste contexto da inflexão do catolicismo brasileiro são
os abusos sexuais na América Latina. O que está em xeque e a visão de qual Igreja está em crise com
o impacto destes abusos sexuais? Uma coisa fundamental é que a imagem da
Igreja Católica institucional não necessariamente é arranhada. A pergunta é
onde falhamos para que a pedofilia seja
um tema tão central nas redes sociais para uma crítica deste catolicismo
institucional, mas, no fundo, a grande questão é: esse catolicismo se confronta
com o poder? Porque todo esse escândalo de abuso, que não é só sexual, mas
também espiritual, profético, aponta para uma crise institucional mais
profunda. Abuso é abuso de poder e o poder como estrutura é questionado. Isso reverbera nas
mídias sociais quando se pergunta qual o papel da Igreja diante destes grandes
escândalos.
Outra
questão fundamental é que a Igreja Católica é uma maioria geográfica, mas
muitas vezes ela se comporta como minoria discursiva, submetendo-se à lógica da
atuação política dos evangélicos. Isso vem sendo muito discutido: como
a Igreja Católica abdica de seu poder hegemônico e renuncia a seu legado ético para se submeter a tipos de
modelo corporativo de participação política. Será que a sobrevivência de um
catolicismo de direita é possível somente com o apoio dos evangélicos?
·
Como a crise do catolicismo no século XXI é
vista na atualidade?
Brenda
Carranza – Uma coisa discutida é a metamorfose católica como sendo
cultural e histórica. O catolicismo sempre muda para continuar sendo o mesmo.
Porque ele tem, na sua estrutura, um segredo da teologia política que é: não
expulsar ninguém e sempre tentar a conciliação e, caso não consiga incorporar o
antagônico, ela o domestica através da canonização como dispositivo
sociológico. O dispositivo sociológico que permite a Igreja Católica negociar
internamente suas diferenças está na canonização e na heresia.
Uma
socióloga francesa dizia que a grandeza do catolicismo é a metamorfose de
continuar seu legado de poder e se manter ela mesma ao interagir com
a sociedade em mudança. Essas inflexões nos ajudam a compreender as
mudanças internas no catolicismo atual e como elas vão dialogar com
as diferentes instâncias da sociedade.
Como
fazer a leitura sociológica, epistemológica, antropológica desse catolicismo?
Nos anos 70, 80 e 90, Flávio Pierucci trabalhava com a ideia de uma sociologia da religião que estava
em declínio.
Isso fazia com que o catolicismo entrasse em constrangimento pelo avanço
estatístico do pentecostalismo. Ele falava de um tipo de catolicismo
institucional atrelado às esferas políticas. Outra leitura, a partir dos
sociólogos e antropólogos Flávio Munhoz Sofiati e Alberto
Moreira, é que, nos anos 90/2000, há uma perda da hegemonia política da Igreja
Católica pelo modelo corporativista do evangelismo. A análise ainda se
fragmenta nos impactos que esse modelo traz dentro da leitura da Igreja
Católica institucional, do catolicismo progressista, do catolicismo pastoral. Como esses diferentes catolicismos assimilam esta maneira
fragmentada da Igreja nesta crise interna? Eles vão trabalhar com os
especialistas midiáticos sobre o que seriam as verdades no catolicismo, a ética, a
palavra do magistério. Pelas mídias sociais e pelos influenciadores, a verdade é
interpretada a partir de uma hermenêutica de um grupo tradicionalista
neoconservador que se abdica de uma forma de leitura do magistério e assume um
tipo de papa e rejeita outros, entre eles o Papa Francisco.
Tudo
isso tem a ver com uma imagem social enfraquecida, em um campo político
confessional, mas alinhado com as questões evangélicas. O antropólogo Carlos Steil trabalha o catolicismo popular e vem observando que o
catolicismo vivido está em outra rota. O catolicismo está na rota de
compreender o papel das mídias sociais nessa experiência religiosa que, até
agora, se dava em caravanas, em romarias e procissões.
O
que sustento é que estamos diante de um catolicismo com uma inflexão do lado do
conservador de direita, diante de uma nova conjuntura social, novos
pressupostos de estrutura de Estado e sociedade democrática, e que se pauta por
um projeto político que visa ter como voz ordenadora o autoritarismo. Se isso
não é a Igreja Católica, e ela não é a maioria, podemos dizer que são
grupos alinhados a outros que pensam um Brasil diferente. Isto segue a linha da
ultradireita que percebe as mudanças culturais como guerras culturais e
criminaliza movimentos discordantes. A criminalização de igrejas e pastorais
inclusivas faz parte desse contingente de um catolicismo diferente que tenta
incorporar demandas sociais do século XXI.
Há
um movimento progressista se recompondo com uma nova linguagem, novos quadros,
mas que não tem a mesma performance do catolicismo
institucional progressista dos anos 90. Há uma mudança interna que precisa ser
acompanhada.
Fonte:
Entrevista com Brenda Carranza em IHU
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