Marçal, o funk e as relações raciais no
Brasil
Em 2024, 7 em cada 10
brasileiros desconfiam do trabalho da polícia, segundo pesquisa realizado pelo
PoderData. Em 2023, o Instituto Opinião realizou uma pesquisa semelhante e
revelou que 48,9% das pessoas confiam pouco na polícia militar e 15,5% não tem
nenhuma confiança na polícia militar, ou seja, mais da metade da população não
confia na polícia. Ao mesmo tempo, no último censo em 2022 a população
autodeclarada preta cresceu 42%, pela primeira vez desde 1872 a população parda
superou a população branca no país, revelando um aumento para 55% da população
autodeclarada negra.
Esses dados revelam
que o choque à direita nas relações raciais promovido pelo bolsonarismo mostra
embrionariamente expressões de resistência frente aos ataques contra a
identidade negra e cultura negra. Marçal enquanto um fenômeno social próprio
dessa realidade busca dialogar pela direita com os setores que de alguma forma
têm suas vidas atravessadas pelo racismo e a repressão estatal.
Marçal tem um discurso
público com foco no empreendedorismo, mas ainda assim busca dialogar com um
setor amplo da juventude ao colocar uma policial militar negra, mulher e
nordestina com vice em sua chapa, apresentando como algo distinto dos demais candidato, a fotos e acenos com
empresários de grandes gravadoras do funk paulista, o que teve uma repercussão
bem ruim entre artistas do trap, rap e funk.
Sobre esses aspectos
irei desenvolver mais a frente, mas agora vale frisar que o surgimento de uma
figura burguesa decadente como Marçal e a projeção mostra a total incapacidade
da política ministerial para a questão negra do governo Lula-Alckmin em responder
os principais anseios da população negra. Ao contrário, a proposta do PL da
Uberização e a Lei Orgânica da PM e BM sancionada por Lula abrem espaço para
figuras de extrema-direita como Marçal e são formas de aprofundar o racismo e
precarização do trabalho que essa extrema direita se alimenta. Tampouco, o
programa de Boulos para a cidade de São Paulo pode parecer como alguma “saída
viável”, porque escolheu um ex-comandante da Rota para desenvolver seu programa
de “segurança pública”.
• Marçal, neo-malufismo e questão negra
A ofensiva reacionária
que vimos se expressar contra o povo negro com o bolsonarismo e o choque à
direita nas relações raciais estão representadas na figura do Marçal,
especialmente através de seu programa. Do ponto de vista da precarização do
trabalho e da destruição dos direitos trabalhistas e do empreendedorismo,
Marçal encarna um programa neoliberal que representa ameça a vida social da
juventude negra e do povo negro.
A questão negra
historicamente se forjou como a luta por direitos sociais, contra a violência
policial e o trabalho precário, uma marca social do racismo no desenvolvimento
do capitalismo brasileiro. Marçal atua justamente nessa mácula social que tem
suas raízes na propriedade escrava e no tráfico de africanos, para propor uma
saída programática que reforça os traços racistas da burguesia brasileira.
Marçal, entretanto, o
faz de uma forma distinta de bolsonaristas como Nunes, Tarcísio e Claudio
Castro, aparecendo como uma reação à institucionalização da extrema direita e
ao mesmo tempo aparecendo como uma das “caras” do neo-malufismo em São Paulo.
Marçal se aproxima do neo-malufismo de uma forma particular, se afasta da
política de recrudescimento da violência policial representada por Tarcísio,
que defende a polícia militar e seus batalhões sanguinários como a Rota. Mas ao
mesmo tempo se vincula a esse mesmo projeto ao defender Tarcísio dizendo que
ele acertou ao privatizar a Sabesp, mas não só isso, todo seu projeto de cidade
envolve parcerias público privadas, desde o teleférico às empresas nas favelas.
Como um empresário faz demagogia para a população pobre paulistana como quem
pode levar prosperidade à juventude negra através de empresas privadas.
Dito de outra forma, a
combinação do projeto privatista e o recrudescimento da violência policial
encarnado no programa de Tarcísio para o Estado, também tem uma “cara” Marçal,
isto é, esta mesma juventude que a polícia arranca as vidas nas favelas, o coach
anti-comunista oferece um futuro sem direitos trabalhistas .
Por mais que Marçal
tente aparecer como aquele que fala em nome e para a juventude negra, lhe
oferecendo um suposto futuro, bem distinto do que é sentido cotidianamente na
pele com o racismo e o trabalho precário, Marçal nada mais é que um
representante burguês dos traços estruturais do capitalismo brasileiro. Longe
de ser uma oposição à repressão policial, traço marcante do neo-malufismo,
Marçal representa o aprofundamento das condições precárias de vida e trabalho
do povo negro.
Dito isso, o objetivo
nessa análise é tentar compreender o “fenômeno Marçal” desde as relações
raciais no Brasil, porque é a juventude negra precária que ele disputa com o
bolsonarismo institucionalizado.
• O fenômeno Marçal e as relações raciais
no Brasil
Se aproveitando do
resultado social da reforma trabalhista, a precarização do trabalho,
uberização, e até mesmo do recrudescimento da violência policial, fruto do
choque à direita nas relações raciais, Marçal tem um discurso em que defende
supostamente “levar” o empreendedorismo para a população negra nas periferias e
favelas como a solução para os problemas sociais vividos pela população.
Enquanto fenômeno
social, dialoga com um setor da juventude negra e periférica de São Paulo que
se viu nos últimos anos obrigada a horas de trabalho em cima de uma bicicleta
ou moto trabalhando em empresas de plataforma. Essa mesma parcela da população
também protagonizou uma fortíssima greve contra Bolsonaro em 2020, o breque dos
apps, ao mesmo tempo em que via nos Estados Unidos se desenvolver o Black Lives
Matter.
Em alguns elementos se
distingue do programa de “segurança pública” de Tarcísio e Claudio Castro,
ainda que defenda o armamento da guarda civil metropolitana e o aumento de seu
efetivo. Nesse tema, inclusive, no podcast O Assunto faz uma enorme demagogia
dizendo que “segurança pública” se faz com educação. Sem criticar o Novo Ensino
Médio e defendendo uma educação através da transformação de mindset, onde os
estudantes se vejam como “vencedores”.
Mas ele não consegue
esconder sua cara reacionária e racista, sua vice é uma policial militar,
conhecida como cabo Barbosa, frequentadora assídua de podcasts policiais que
defendem chacinas nas favelas. Segundo ela, “pedia pra Deus…senhor dai-me a
graça de ser policial, e Deus me deu o privilégio de hoje ostentar a farda da
polícia como se fosse um manto sagrado. A minha segunda pele é cinza
bandeirante” [2]. Nada mais asqueroso e reacionário do que reivindicar a
tradição racista dos bandeirantes paulistas que tem na polícia militar que se
orgulha da chacina do Carandiru.
Marçal busca dialogar
com setores precários da classe trabalhadora paulista, o que engloba a
juventude negra, abrindo mão de um discurso mais “duro” do combate a violência
social e “criminalidade” – talvez pelas denúncias que surgem de sua ligação com
o PCC.
• Funk, juventude negra e empreendedorismo
Pouco tempo atrás
surgiram imagens de empresários do funk e donos das gravadoras GR6 e Funk Love
tirando fotos e fazendo vídeos com os candidatos Nunes e Marçal em aberto apoio
político a candidaturas deles. As imagens incomodaram grandes nomes da cultura
negra como Mano Brown, Rincon Sapiência, Djonga, Felipe Ret, Hariel; todos os
quais prontamente criticaram os empresários por tentar associar o funk à
extrema direita.
Felipe Ret escreveu em
sua rede social que era “lamentável ver o rap/funk (música incontestavelmente
marginalizada) apoiando posições políticas decadentes”. Hariel também lamentou
que pessoas como essa tenham abertura no movimento funk. Rapidamente surgiu um
corte de um vídeo onde Marçal mostra todo seu racismo criticando o funk:
"Esse povo é
doente. Acabaram com as músicas. Eu não dou conta de ouvir as músicas desse
tempo por um único motivo. Não é porque é secular, mundano, não é isso, não. É
porque instala drive mental de corno, instala drive mental de derrotado,
instala drive mental de preguiçoso, instala drive mental de estuprador, instala
drive mental de vagabundo. E aí você canta a música. Você vai virando um
estuprador sem ver, você vai virando um vagabundo sem ver. E quando você olhar
para a sua família, você vai destruir ela sem você perceber, porque isso vai
virando você: essas músicas de cornos e vagabundos"
Decerto, o que está em
jogo é a velha demagogia dos políticos da direita que quando chegam próximo dos
períodos eleitorais tentam se “aproximar do povo” para tentar esconder seu ódio
à população pobre e trabalhadora. Mas também é verdade que esse movimento de
políticos da extrema-direita em direção ao movimento funk é inteiramente novo e
isso chama bastante atenção. Algo que é também rechaçado pelo movimento de mães
que tiveram filhos e parentes vítimas da violência policial.
A eleição de Bolsonaro
em 2019 abriu espaço para uma renovada perseguição e aprofundamento da
marginalização do funk. A prisão do DJ Renan da Penha, a detenção do Salvador
da Rima, a intimação por apologia ao crime e associação ao tráfico de MC’s como
Poze do Rodo, Maneirinho, Cabelinho, entre outros, mostrou que o Estado e o
regime político tinha escolhido a cultura negra como um de seus inimigos.
Mas de uns tempos para
cá isso vem mudando. Não porque o Estado deixou de ser racista com a cultura
negra, mas achou outras formas de cooptar ideologicamente segmentos do
movimento através da indústria cultural.
Foi nesse período que
vimos se fortalecer no trap e no funk ostentação ideologias como a “favela
venceu”, “pretos no topo”. Esse processo mostrou que havia um debate sobre
ascensão individual pela cultura, associando a cultura negra e a identidade
negra à falsa ideia de superação dos problemas sociais do capitalismo através
do consumo.
Valeria a pena
discorrer detidamente como se desenvolveu todo esse processo, mas ao que cabe
aos objetivos dessa análise é notar que foi sobre uma juventude negra arrasada
pela reforma trabalhista e que consome músicas que vendem esse sonho da
ascensão individual que Marçal oferece o empreendedorismo. Não é casual que
Marçal esteja ligado a empresários do funk. A indústria cultural lhe serviu
como uma arma ideológica que encaixa muito bem com seu programa neoliberal.
Na medida em que
conseguiu erguer através da música e de artistas que há uma possibilidade de
superar a pobreza e a precariedade da vida mediante seu próprio esforço através
da cultura, a indústria cultural também deu bases ideológicas para que o
entrelaçamento entre populismo e ideologia neoliberal ganhasse fôlego no funk.
Marçal vê esse espaço na cultura, especialmente, a falsa ideia de que só
depende do indivíduo para que sua própria realidade se transforme.
De certo, a ideologia
neoliberal e individualista encontra limites na própria cultura, seja em
artista que denunciam a violência policial e a própria burguesia, seja nos
slams, batalhas de rap e em todos os quatro elementos da cultura hip hop que
servem como espaços de diversão e sociabilidade da juventude, mas também como
um arma de denúncia e resistência ao Estado capitalista.
• Conclusão
A cultura negra sempre
teve historicamente um potencial abertamente subversivo e de contestação não
apenas do Estado e de suas forças repressivas, mas da própria burguesia. Versos
como “fogo nos racistas” de Djonga e todos aqueles que lembram dos 9 de Paraisópolis,
o 2 de outubro de 1992, George Floyd, Agatha, Amarildo, Marielle e João Pedro
são um grande problema para a burguesia e por isso através de empresários
desses segmentos culturais tentam vincular a cultura negra a ideologias que
historicamente combateu.
A juventude negra que
enxerga nos artistas do funk, trap e rap ídolos de sua geração, sentem orgulho
de ser negros, porque enxergam em outros negros e negras a capacidade incrível
de criticar a sociedade e narrar histórias de seu cotidiano através da arte e
da cultura, também deve enxergar Marçal como um inimigo. Um político de
extrema-direita que veio do mesmo lugar que Nunes, Tarcísio e Bolsonaro. As
ideologias da classe dominante como o racismo, a misoginia, a ascensão
individual pela via do consumo capitalista servem para dar fôlego para ideias
que servem para atacar nossa classe e nosso povo. Nossa bandeira também deve
ser de denunciar e combater ideologicamente os valores burgueses de ostentação,
machismo e individualismo que os empresários do funk, trap e rap tentam
impregnar na nossa cultura.
Estamos diante de uma
política de extrema direita que quer politizar pela direita as camadas mais
pobres, se valendo inclusive de se aproximar de empresários do funk. Isso
também é resultado da passivização criada pelas centrais sindicais e pela
frente ampla ao desmontar a greve dos entregadores em São Paulo no começo do
ano passado.
Para combater figuras
como Marçal é necessário levantar um programa que vá de encontro a ideologia do
empreendedorismo neoliberal, reivindicando plenos direitos, sem trabalho
precário e privatizações. Na prática, devemos lutar contra a uberização e terceirização
defendendo a incorporação dos trabalhadores terceirizados sem a necessidade de
concurso público, o fim da escala 6 x 1 sem redução salarial e a revogação da
reforma trabalhista.
Marçal sem dúvida vai
na contramão disso, é um legítimo defensor do aprofundamento da precarização do
trabalho que se vale do racismo para fazer com que empresários como ele, siga
lucrando rios de dinheiro. Seu programa é o da devastação da vida da população
negra e nisso se assemelha aos “senhores de engenho” de antigamente que tem nas
imagens de Bolsonaro, Tarcísio, Nunes e tantos outros, seus semelhantes.
Fonte: Esquerda Diário
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