quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Marçal, o funk e as relações raciais no Brasil

Em 2024, 7 em cada 10 brasileiros desconfiam do trabalho da polícia, segundo pesquisa realizado pelo PoderData. Em 2023, o Instituto Opinião realizou uma pesquisa semelhante e revelou que 48,9% das pessoas confiam pouco na polícia militar e 15,5% não tem nenhuma confiança na polícia militar, ou seja, mais da metade da população não confia na polícia. Ao mesmo tempo, no último censo em 2022 a população autodeclarada preta cresceu 42%, pela primeira vez desde 1872 a população parda superou a população branca no país, revelando um aumento para 55% da população autodeclarada negra.

Esses dados revelam que o choque à direita nas relações raciais promovido pelo bolsonarismo mostra embrionariamente expressões de resistência frente aos ataques contra a identidade negra e cultura negra. Marçal enquanto um fenômeno social próprio dessa realidade busca dialogar pela direita com os setores que de alguma forma têm suas vidas atravessadas pelo racismo e a repressão estatal.

Marçal tem um discurso público com foco no empreendedorismo, mas ainda assim busca dialogar com um setor amplo da juventude ao colocar uma policial militar negra, mulher e nordestina com vice em sua chapa, apresentando como algo distinto  dos demais candidato, a fotos e acenos com empresários de grandes gravadoras do funk paulista, o que teve uma repercussão bem ruim entre artistas do trap, rap e funk.

Sobre esses aspectos irei desenvolver mais a frente, mas agora vale frisar que o surgimento de uma figura burguesa decadente como Marçal e a projeção mostra a total incapacidade da política ministerial para a questão negra do governo Lula-Alckmin em responder os principais anseios da população negra. Ao contrário, a proposta do PL da Uberização e a Lei Orgânica da PM e BM sancionada por Lula abrem espaço para figuras de extrema-direita como Marçal e são formas de aprofundar o racismo e precarização do trabalho que essa extrema direita se alimenta. Tampouco, o programa de Boulos para a cidade de São Paulo pode parecer como alguma “saída viável”, porque escolheu um ex-comandante da Rota para desenvolver seu programa de “segurança pública”.

•        Marçal, neo-malufismo e questão negra

A ofensiva reacionária que vimos se expressar contra o povo negro com o bolsonarismo e o choque à direita nas relações raciais estão representadas na figura do Marçal, especialmente através de seu programa. Do ponto de vista da precarização do trabalho e da destruição dos direitos trabalhistas e do empreendedorismo, Marçal encarna um programa neoliberal que representa ameça a vida social da juventude negra e do povo negro.

A questão negra historicamente se forjou como a luta por direitos sociais, contra a violência policial e o trabalho precário, uma marca social do racismo no desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Marçal atua justamente nessa mácula social que tem suas raízes na propriedade escrava e no tráfico de africanos, para propor uma saída programática que reforça os traços racistas da burguesia brasileira.

Marçal, entretanto, o faz de uma forma distinta de bolsonaristas como Nunes, Tarcísio e Claudio Castro, aparecendo como uma reação à institucionalização da extrema direita e ao mesmo tempo aparecendo como uma das “caras” do neo-malufismo em São Paulo. Marçal se aproxima do neo-malufismo de uma forma particular, se afasta da política de recrudescimento da violência policial representada por Tarcísio, que defende a polícia militar e seus batalhões sanguinários como a Rota. Mas ao mesmo tempo se vincula a esse mesmo projeto ao defender Tarcísio dizendo que ele acertou ao privatizar a Sabesp, mas não só isso, todo seu projeto de cidade envolve parcerias público privadas, desde o teleférico às empresas nas favelas. Como um empresário faz demagogia para a população pobre paulistana como quem pode levar prosperidade à juventude negra através de empresas privadas.

Dito de outra forma, a combinação do projeto privatista e o recrudescimento da violência policial encarnado no programa de Tarcísio para o Estado, também tem uma “cara” Marçal, isto é, esta mesma juventude que a polícia arranca as vidas nas favelas, o coach anti-comunista oferece um futuro sem direitos trabalhistas .

Por mais que Marçal tente aparecer como aquele que fala em nome e para a juventude negra, lhe oferecendo um suposto futuro, bem distinto do que é sentido cotidianamente na pele com o racismo e o trabalho precário, Marçal nada mais é que um representante burguês dos traços estruturais do capitalismo brasileiro. Longe de ser uma oposição à repressão policial, traço marcante do neo-malufismo, Marçal representa o aprofundamento das condições precárias de vida e trabalho do povo negro.

Dito isso, o objetivo nessa análise é tentar compreender o “fenômeno Marçal” desde as relações raciais no Brasil, porque é a juventude negra precária que ele disputa com o bolsonarismo institucionalizado.

•        O fenômeno Marçal e as relações raciais no Brasil

Se aproveitando do resultado social da reforma trabalhista, a precarização do trabalho, uberização, e até mesmo do recrudescimento da violência policial, fruto do choque à direita nas relações raciais, Marçal tem um discurso em que defende supostamente “levar” o empreendedorismo para a população negra nas periferias e favelas como a solução para os problemas sociais vividos pela população.

Enquanto fenômeno social, dialoga com um setor da juventude negra e periférica de São Paulo que se viu nos últimos anos obrigada a horas de trabalho em cima de uma bicicleta ou moto trabalhando em empresas de plataforma. Essa mesma parcela da população também protagonizou uma fortíssima greve contra Bolsonaro em 2020, o breque dos apps, ao mesmo tempo em que via nos Estados Unidos se desenvolver o Black Lives Matter.

Em alguns elementos se distingue do programa de “segurança pública” de Tarcísio e Claudio Castro, ainda que defenda o armamento da guarda civil metropolitana e o aumento de seu efetivo. Nesse tema, inclusive, no podcast O Assunto faz uma enorme demagogia dizendo que “segurança pública” se faz com educação. Sem criticar o Novo Ensino Médio e defendendo uma educação através da transformação de mindset, onde os estudantes se vejam como “vencedores”.

Mas ele não consegue esconder sua cara reacionária e racista, sua vice é uma policial militar, conhecida como cabo Barbosa, frequentadora assídua de podcasts policiais que defendem chacinas nas favelas. Segundo ela, “pedia pra Deus…senhor dai-me a graça de ser policial, e Deus me deu o privilégio de hoje ostentar a farda da polícia como se fosse um manto sagrado. A minha segunda pele é cinza bandeirante” [2]. Nada mais asqueroso e reacionário do que reivindicar a tradição racista dos bandeirantes paulistas que tem na polícia militar que se orgulha da chacina do Carandiru.

Marçal busca dialogar com setores precários da classe trabalhadora paulista, o que engloba a juventude negra, abrindo mão de um discurso mais “duro” do combate a violência social e “criminalidade” – talvez pelas denúncias que surgem de sua ligação com o PCC.

•        Funk, juventude negra e empreendedorismo

Pouco tempo atrás surgiram imagens de empresários do funk e donos das gravadoras GR6 e Funk Love tirando fotos e fazendo vídeos com os candidatos Nunes e Marçal em aberto apoio político a candidaturas deles. As imagens incomodaram grandes nomes da cultura negra como Mano Brown, Rincon Sapiência, Djonga, Felipe Ret, Hariel; todos os quais prontamente criticaram os empresários por tentar associar o funk à extrema direita.

Felipe Ret escreveu em sua rede social que era “lamentável ver o rap/funk (música incontestavelmente marginalizada) apoiando posições políticas decadentes”. Hariel também lamentou que pessoas como essa tenham abertura no movimento funk. Rapidamente surgiu um corte de um vídeo onde Marçal mostra todo seu racismo criticando o funk:

"Esse povo é doente. Acabaram com as músicas. Eu não dou conta de ouvir as músicas desse tempo por um único motivo. Não é porque é secular, mundano, não é isso, não. É porque instala drive mental de corno, instala drive mental de derrotado, instala drive mental de preguiçoso, instala drive mental de estuprador, instala drive mental de vagabundo. E aí você canta a música. Você vai virando um estuprador sem ver, você vai virando um vagabundo sem ver. E quando você olhar para a sua família, você vai destruir ela sem você perceber, porque isso vai virando você: essas músicas de cornos e vagabundos"

Decerto, o que está em jogo é a velha demagogia dos políticos da direita que quando chegam próximo dos períodos eleitorais tentam se “aproximar do povo” para tentar esconder seu ódio à população pobre e trabalhadora. Mas também é verdade que esse movimento de políticos da extrema-direita em direção ao movimento funk é inteiramente novo e isso chama bastante atenção. Algo que é também rechaçado pelo movimento de mães que tiveram filhos e parentes vítimas da violência policial.

A eleição de Bolsonaro em 2019 abriu espaço para uma renovada perseguição e aprofundamento da marginalização do funk. A prisão do DJ Renan da Penha, a detenção do Salvador da Rima, a intimação por apologia ao crime e associação ao tráfico de MC’s como Poze do Rodo, Maneirinho, Cabelinho, entre outros, mostrou que o Estado e o regime político tinha escolhido a cultura negra como um de seus inimigos.

Mas de uns tempos para cá isso vem mudando. Não porque o Estado deixou de ser racista com a cultura negra, mas achou outras formas de cooptar ideologicamente segmentos do movimento através da indústria cultural.

Foi nesse período que vimos se fortalecer no trap e no funk ostentação ideologias como a “favela venceu”, “pretos no topo”. Esse processo mostrou que havia um debate sobre ascensão individual pela cultura, associando a cultura negra e a identidade negra à falsa ideia de superação dos problemas sociais do capitalismo através do consumo.

Valeria a pena discorrer detidamente como se desenvolveu todo esse processo, mas ao que cabe aos objetivos dessa análise é notar que foi sobre uma juventude negra arrasada pela reforma trabalhista e que consome músicas que vendem esse sonho da ascensão individual que Marçal oferece o empreendedorismo. Não é casual que Marçal esteja ligado a empresários do funk. A indústria cultural lhe serviu como uma arma ideológica que encaixa muito bem com seu programa neoliberal.

Na medida em que conseguiu erguer através da música e de artistas que há uma possibilidade de superar a pobreza e a precariedade da vida mediante seu próprio esforço através da cultura, a indústria cultural também deu bases ideológicas para que o entrelaçamento entre populismo e ideologia neoliberal ganhasse fôlego no funk. Marçal vê esse espaço na cultura, especialmente, a falsa ideia de que só depende do indivíduo para que sua própria realidade se transforme.

De certo, a ideologia neoliberal e individualista encontra limites na própria cultura, seja em artista que denunciam a violência policial e a própria burguesia, seja nos slams, batalhas de rap e em todos os quatro elementos da cultura hip hop que servem como espaços de diversão e sociabilidade da juventude, mas também como um arma de denúncia e resistência ao Estado capitalista.

•        Conclusão

A cultura negra sempre teve historicamente um potencial abertamente subversivo e de contestação não apenas do Estado e de suas forças repressivas, mas da própria burguesia. Versos como “fogo nos racistas” de Djonga e todos aqueles que lembram dos 9 de Paraisópolis, o 2 de outubro de 1992, George Floyd, Agatha, Amarildo, Marielle e João Pedro são um grande problema para a burguesia e por isso através de empresários desses segmentos culturais tentam vincular a cultura negra a ideologias que historicamente combateu.

A juventude negra que enxerga nos artistas do funk, trap e rap ídolos de sua geração, sentem orgulho de ser negros, porque enxergam em outros negros e negras a capacidade incrível de criticar a sociedade e narrar histórias de seu cotidiano através da arte e da cultura, também deve enxergar Marçal como um inimigo. Um político de extrema-direita que veio do mesmo lugar que Nunes, Tarcísio e Bolsonaro. As ideologias da classe dominante como o racismo, a misoginia, a ascensão individual pela via do consumo capitalista servem para dar fôlego para ideias que servem para atacar nossa classe e nosso povo. Nossa bandeira também deve ser de denunciar e combater ideologicamente os valores burgueses de ostentação, machismo e individualismo que os empresários do funk, trap e rap tentam impregnar na nossa cultura.

Estamos diante de uma política de extrema direita que quer politizar pela direita as camadas mais pobres, se valendo inclusive de se aproximar de empresários do funk. Isso também é resultado da passivização criada pelas centrais sindicais e pela frente ampla ao desmontar a greve dos entregadores em São Paulo no começo do ano passado.

Para combater figuras como Marçal é necessário levantar um programa que vá de encontro a ideologia do empreendedorismo neoliberal, reivindicando plenos direitos, sem trabalho precário e privatizações. Na prática, devemos lutar contra a uberização e terceirização defendendo a incorporação dos trabalhadores terceirizados sem a necessidade de concurso público, o fim da escala 6 x 1 sem redução salarial e a revogação da reforma trabalhista.

Marçal sem dúvida vai na contramão disso, é um legítimo defensor do aprofundamento da precarização do trabalho que se vale do racismo para fazer com que empresários como ele, siga lucrando rios de dinheiro. Seu programa é o da devastação da vida da população negra e nisso se assemelha aos “senhores de engenho” de antigamente que tem nas imagens de Bolsonaro, Tarcísio, Nunes e tantos outros, seus semelhantes.

 

Fonte: Esquerda Diário

 

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