Financeirização da política habitacional
municipal
A política
habitacional brasileira está baseada na compra de unidades por quem precisa, no
modelo da casa própria, a partir do endividamento das famílias que adquirem um
financiamento habitacional. Mesmo com subsídios e taxas de juros mais baixas,
as crises enfrentadas pelas famílias mais pobres levam, historicamente, ao não
pagamento da prestação, resultando em um alto índice de inadimplência. Assim,
uma das consequências desta política é, contraditoriamente, que ela ameaça e
despeja famílias, que perdem sua moradia.
Mas há novidades na
ameaça em curso. A Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo
(COHAB-SP), que possui uma grande quantidade de mutuários – famílias
responsáveis pelo pagamento do financiamento – transferiu esta “carteira de
dívidas” para serem geridas pela Companhia São Paulo de Desenvolvimento e
Mobilização de Ativos (SPDA). Esta colocou os imóveis em um fundo de
investimento, o Fundo SPDA, que anuncia descontos para os mutuários que
renegociam suas dívidas. As famílias que aderem ao desconto assinam novos
contratos com cláusulas (como a alienação fiduciária, que comentaremos adiante)
que têm ajudado a pressioná-los e removê-los mais eficazmente de suas moradias
no caso de inadimplência.
Com essa manobra,
inverte-se o objetivo da política habitacional, que é garantir casa para quem
precisa, e volta-se para uma estratégia de valorização das cotas do fundo –
reprimindo por meio de mecanismos agressivos a inadimplência, que é o principal
risco associado aos ativos, ameaçando e removendo as famílias de suas casas –,
e de utilização dos recursos para financiar projetos estratégicos da
Prefeitura.
• A política baseada no endividamento das
famílias e a alta inadimplência
Historicamente, a
inadimplência e o endividamento são consequências da política habitacional
desenvolvida pela COHAB-SP e por outras companhias habitacionais do país,
baseada fundamentalmente em um modelo de provisão pública de habitação popular
cujo pressuposto básico é a comercialização das unidades para se tornarem
propriedade privada individual por meio de longos financiamentos, que podem se
estender por até 30 anos.
O peso das parcelas,
reajustadas com juros, e dos custos de manutenção condominial sobre a renda das
famílias mutuárias, assim como a baixa qualidade dos conjuntos habitacionais e
as grandes distâncias com relação às áreas que concentram ofertas de trabalho e
infraestruturas urbanas, são problemas históricos deste modelo.
Em São Paulo, nos
períodos de grande produção pública de habitação desde os anos 1970, milhares
de moradias foram produzidas sobre um estoque de terras nas periferias, muito
concentrado na Zona Leste, para onde foi deslocada parte da população pobre, e
majoritariamente negra, removida da região central da capital paulista em
projetos de reestruturação urbana.
Cidade Tiradentes,
onde hoje se concentram mutuários da COHAB-SP, insere-se neste contexto de
expulsão da população negra e apagamento de sua história de bairros centrais,
como o Bixiga, de onde foram removidas e obrigadas a aderir à aquisição da
moradia via financiamento, como é o caso de algumas das famílias atualmente
moradoras de conjuntos habitacionais como o Santa Etelvina, a quase 30
quilômetro de distância de seu local original de moradia.
Endividamento e
inadimplência sempre acompanharam este modelo, estando documentados, por
exemplo, em 2008, quando a COHAB-SP, pouco após o início do Programa 1000 – um
de seus planos de recuperação de créditos via refinanciamento das dívidas –,
contabilizava 53.452 mutuários, dos quais 41.791 eram inadimplentes (78% do
total).
O Programa 1000, em
Cidade Tiradentes, voltava-se para 14 mil mutuários do Conjunto Santa Etelvina
e mais cerca de 11 mil mutuários de outros conjuntos do Complexo, propunha
“condições especiais para o pagamento das prestações, diminuindo valores, não
cobrando nenhum juro e respeitando a realidade de cada empreendimento da
Companhia”. O valor da prestação era calculado com base no valor de avaliação
do imóvel, em refinanciamentos de até 240 meses.
• A transferência das dívidas dos
mutuários da COHAB para a SPDA
Nos últimos anos,
contudo, a expectativa futura de pagamento das prestações pelos mutuários,
tanto adimplentes quanto inadimplentes, converteu-se em um produto financeiro,
agravando ainda mais a situação destas famílias. Mas como isso se deu?
Primeiro, a Prefeitura
de São Paulo passou a carteira de dívida dos mutuários da COHAB-SP para uma
sociedade de economia mista. Em 2016, 31.492 contratos de financiamento
habitacional da Companhia foram cedidos pela Prefeitura a uma sociedade de
economia mista por ela controlada: a SPDA, cuja finalidade é otimizar a gestão
de ativos financeiros municipais para financiar seus projetos estratégicos.
A SPDA pode, para
tanto, comprar e vender ativos, créditos, títulos e valores mobiliários,
geri-los e dá-los em garantia, inclusive em contratos de parcerias
público-privadas. No caso, a companhia constituiu um Fundo de Investimento em
Direitos Creditórios (“FIDC”) – o FIDC SPDA que recebeu os créditos das dívidas
das famílias mutuárias –, registrado na bolsa de valores e do qual é quotista
exclusiva.
Assim, o fundo passou
a fazer a gestão destas dívidas reunidas em uma “carteira imobiliária” que
agrupa mais de 31 mil financiamentos habitacionais da COHAB-SP. Essas dívidas
constituem o “ativo financeiro” do fundo e a expectativa de pagamento das prestações
é oferecida como garantia contratual das parcerias público-privadas
habitacionais municipais nos 11 Contratos de Concessão Administrativa (os
Editais de PPP COHAB-SP 001/2018 e COHAB-SP 001/2020).
Este fundo de
investimento, o FIDC SPDA, busca a valorização de seu “ativo”. Nos termos
declarados de seu regulamento, seu objetivo é “proporcionar aos Cotistas a
valorização de suas Cotas, no longo prazo”. E um de seus maiores fatores de
“risco” é o de que as famílias mutuárias não consigam pagar suas dívidas.
De modo geral, o
índice de inadimplência é determinante para os resultados do fundo, impactando
a valorização de suas cotas. Assim, esta forma de estruturação, que surge da
transferência da COHAB-SP à SPDA, com a criação de um fundo de investimento em
direitos creditórios, exige a repressão da inadimplência ainda que de modo a
implicar o contrassenso evidente de promover remoções e agravar o déficit
habitacional que se declara combater.
• A renegociação das dívidas dos mutuários
com a inclusão da alienação fiduciária
Diminuir a
inadimplência tornou-se urgente para evitar “risco” e garantir a rentabilidade
dos ativos, e com isso assistimos à renegociação das dívidas e as ameaças de
remoção.
Neste contexto, um
segundo passo foi adotar uma política de cobranças que envolveu a transferência
da gestão das dívidas para um agente de cobrança privado, vindo do mercado
financeiro com experiência em recuperação de créditos, como já dito
anteriormente. Este, ao renegociar as dívidas com as famílias, inclui nos novos
contratos de dívidas renegociadas a cláusula de alienação fiduciária nos
contratos de financiamento habitacional.
Alienação fiduciária é
um mecanismo jurídico contratual cujo propósito é facilitar a realização de um
crédito, permitindo a retomada da garantia de uma dívida sem mediação judicial:
no caso, o imóvel da família mutuária, garantia de seu financiamento habitacional,
é posto pelo fundo credor em leilões onde qualquer pessoa pode arrematá-lo,
desocupá-lo e, então, tomar posse.
Esta cláusula,
evidentemente incompatível com os objetivos da política habitacional e que
jamais deveria constar em seus contratos de financiamento, generalizou-se desde
que o fundo de investimento foi estruturado: dos 31.492 contratos cedidos,
3.434 – ou seja, um pouco mais de 10% – tinham cláusula de alienação
fiduciária, número que quase triplicou, atingindo atualmente 9.600 contratos.
• Se o mutuário não paga a dívida, o
imóvel vai a leilão
Nos contratos com
cláusula de alienação fiduciária, esgotadas as cobranças administrativas, se a
família mutuária não conseguir pagar a dívida total em um prazo fatal de 15
dias – depois de ter seu nome e CPF negativados junto aos órgãos de proteção do
crédito (SPC, SERASA, por exemplo) –, a propriedade do imóvel é consolidada em
nome do Fundo, para posterior realização de leilão.
No leilão, o imóvel
pode ser arrematado por qualquer pessoa, inclusive por imobiliárias – o que
configura outra incompatibilidade flagrante com a política habitacional, uma
vez que não há controle público sobre o arrematante, se atende ou não aos
critérios da política habitacional.
Pelas regras dos
leilões – organizados em dois turnos, havendo depreciação do preço na segunda
tentativa – os imóveis leiloados (originalmente destinados à política
habitacional) podem ser arrematados por valores ínfimos, que em alguns casos
baixam a R$ 30 mil, fomentando negócios imobiliários de caráter especulativo.
O Observatório de
Remoções identificou o caso de uma imobiliária local que já arrematou 8 imóveis
em leilão e está promovendo a remoção das famílias moradoras, todas em Cidade
Tiradentes.
Segundo as informações
de março deste ano, desde a constituição do Fundo, haviam sido realizados 49
leilões administrativos, dos quais 41 imóveis foram comprados por pessoas
físicas e os demais, jurídicas. Nas plataformas de leilões de imóveis é
possível verificar dezenas de novos leilões em andamento. E denúncias do
Movimento Reaja dão conta de diversos casos de imissão na posse iminente,
quando o imóvel arrematado é desocupado pelo comprador, despejando a família
moradora.
Com todos estes
leilões, a SPDA “recuperou” o valor total de R$ 4.343.841,65, uma média de R$
88.649,00 por imóvel retomado. Contudo, cada uma das famílias removidas neste
processo volta a compor o déficit habitacional!
• O aumento da inadimplência e a ameaça de
remoção e perda da moradia
Dos 31.492 contratos
recebidos, a SPDA informou, em 27/03/2024, que 7.898 estavam inadimplentes.
Contudo, em resposta posterior, informou, em 2 de julho, que o número de
contratos inadimplentes havia chegado a 10.555. Ou seja, houve um crescimento
rápido e substancial das famílias mutuárias em condição de inadimplência dentro
deste novo modelo.
Estas pessoas, muitas
delas idosas, aposentadas, em dificuldades econômicas decorrentes do
desemprego, de doenças e de uma miríade de outras situações de vulnerabilidade,
estão sujeitas a uma política de cobrança ameaçadora – valendo-se desde a
negativação do nome e CPF junto ao sistema de proteção do crédito, até os
leilões e remoções –, que tem aumentado em Cidade Tiradentes, onde as famílias
atingidas se organizam no Movimento Reaja, reivindicando uma política mais
justa e adequada ao direito à moradia.
Em parceria com o
Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública estadual, o
Observatório de Remoções do LabCidade entrevistou 37 famílias mutuárias que
buscaram atendimento judicial da Defensoria Pública para intervir em seus
processos de cobrança e execução da dívida. No geral, a maioria das famílias,
de renda domiciliar total de até dois salários mínimos, encontra-se
vulnerabilizada economicamente em decorrência da redução da renda familiar,
desemprego, falecimento, dentre outras situações.
Apesar do interesse em
realizar acordo para regularizar sua situação, a maioria das famílias conhece
pouco do contrato e não encontra disposição de negociação por parte da SPDA. Confrontadas
com dívidas elevadas, sem a possibilidade de parcelamento, muitas delas já têm
seus imóveis levados a leilão, em decorrência da cláusula de alienação
fiduciária inserida nos contratos.
Em suma, esse novo
modelo envolve (i) a financeirização da carteira de mutuários da COHAB-SP via
SPDA e fundo de investimento; (ii) a inclusão de cláusulas nos contratos de
renegociação de dívidas como a alienação fiduciária, que pressionam o
pagamento, (iii) ameaçam e removem de forma mais rápida e eficiente; (iv)
leilão dos imóveis para quaisquer interessados.
Todo este processo
afasta os resultados da política habitacional ainda mais das finalidades
almejadas, agrava o déficit habitacional, que deveria combater. Ao submeter a
política pública de forma ainda mais profunda e radical à lógica das finanças,
transforma dívidas e contrato de financiamento habitacional da COHAB em ativo
financeiro, gerido segundo a lógica da máxima valorização das cotas de um fundo
de investimento, e ainda os converte em garantia das parcerias público-privadas
habitacionais do município – que, como relatamos anteriormente, promovem, elas
próprias, remoções em massa.
Ou seja, a
financeirização da carteira de mutuários da COHAB-SP agrava a condição destas
famílias, as ameaça e remove, enquanto ainda é oferecida aos “parceiros
privados” das PPPs como garantia contratual de políticas de reestruturação
urbana que promovem. O objetivo não é assegurar o direito à moradia, e sim
valorizar uma carteira imobiliária por meio da redução do índice de
inadimplência, custe o que custar. Mais uma vez aqui, a política habitacional
não parece ter como objetivo atender com moradia quem mais precisa, mas fazer
circular um capital financeiro, garantindo sua multiplicação.
Fonte: LabCidade
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