Em Dourados, venezuelanos podem ser
expulsos para área com risco de alagamento
Em 3 de junho deste
ano, 40 famílias receberam uma ordem de desapropriação da prefeitura de
Dourados, o maior município do interior de Mato Grosso do Sul. A decisão força
que elas deixem suas casas no Jardim Santa Felicidade, sob alegação de que
foram construídas em uma Zona Especial de Interesse Ambiental (Zeia), às
margens do Córrego Engano, que corta parte do município. Uma Zeia é uma área do
município destinada à preservação ou recuperação do bioma local.
A gestão do atual
prefeito e candidato à reeleição, Alan Guedes (Progressistas), responsável por
emitir a ordem de desapropriação, entregou a 25 delas pequenos terrenos na
ocupação Santa Fé, vizinha ao Santa Felicidade. O problema é que essa área é
classificada pela Defesa Civil do município como suscetível a alagamentos e sem
saneamento básico. Os relatórios da Defesa Civil que atestam os problemas e
alertam para desastres climáticos nas duas ocupações foram obtidos com
exclusividade pela Agência Pública.
As outras oito
famílias, que não tiveram direito a um novo terreno, foram ordenadas a deixar a
área e procurar por outro lugar para viver por conta própria.
Sete famílias foram
realocadas, segundo a prefeitura de Dourados, em outros terrenos dentro do
Jardim Santa Felicidade.
A maioria dos
moradores despejados é de origem venezuelana e comprou terrenos no assentamento
com o intuito de fugir dos altos preços dos aluguéis na cidade.
<><> Por
que isso importa?
• Desastres climáticos afetam
especialmente populações mais vulneráveis, como os mais pobres e migrantes.
• A Operação Acolhida, que recebeu cerca
de 1 milhão de pessoas, é a maior ação de acolhida de migrantes da história
recente do Brasil.
A maior parte dos
imigrantes chegou por intermédio da Operação Acolhida para trabalhar em
frigoríficos da cidade. A Operação Acolhida é uma ação organizada pelo governo
brasileiro com participação do Exército, a Agência ONU para Refugiados (Acnur),
a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e outras cem organizações
não governamentais. Estima-se que 4,5 mil venezuelanos vivam no município, em
2024, segundo a OIM.
• Mais de 90 dias de angústia
“Eu vou morar na rua,
pois não tenho onde viver, porque o terreno que [a prefeitura] deu para a minha
filha é pequeno e o suficiente [apenas] para ela e os seus filhos menores”,
contou Maria Maurera, venezuelana de 58 anos que mora no Jardim Santa Felicidade.
Embora o nome da
ocupação carregue a palavra “felicidade”, as famílias estão longe de viver em
um espaço de bem-estar. O ambiente é marcado por pessoas que sobrevivem com
poucos recursos, sem acesso à água encanada e potável, rede de esgoto, energia
elétrica e sob a rotina da insegurança alimentar.
As famílias foram
notificadas da ordem de despejo por representantes da prefeitura, que estiveram
na ocupação acompanhados de guardas municipais.
Parte dos moradores
recebeu a notificação de que deveriam deixar Santa Felicidade em 30 dias. Em
seguida, deveriam reconstruir suas casas em outra ocupação que fica no mesmo
bairro, a Santa Fé, que também enfrenta os mesmos problemas estruturais: falta
de saneamento, água encanada e área suscetível ao alagamento.
O plano traçado pela
Agência Municipal de Habitação e Interesse Social (AGEHAB) de Dourados
estabeleceu que seriam contempladas com um terreno nessa nova ocupação Santa Fé
apenas as famílias que construíram suas casas há mais de dois anos.
A proposta da agência
de habitação do município gerou conflito entre os moradores, como conta o
venezuelano Carlos Camacho, de 55 anos. “Me pediram para construir ao lado de
uma casa, mas os donos do terreno me ameaçaram com pistola […] Eu deixei pra lá
porque não quero problema”, contou.
Com trabalhos
esporádicos, ele afirma que consegue retirar, por mês, aproximadamente R$ 1,5
mil, o que diz não ser o suficiente para arcar com aluguel, alimentação e
mobilidade na região.
Após 90 dias da
emissão da ordem de desapropriação, as famílias lidam com o fantasma da
incerteza se no dia seguinte terão que abandonar suas casas às pressas e, sem
um teto, viver nas ruas.
De acordo com
servidores municipais ouvidos pela reportagem, sob a condição de anonimato, a
cidade não tem uma política de habitação social voltada para famílias de baixa
renda. “Não tem política de aluguel social, que seria um benefício eventual,
que ficaria com a habitação, com assistência [social] e não tem nenhum projeto,
nem de moradia, nem de alojamento, nem de nada”, disse Evelyn Francoso*.
Por meio de nota, a
prefeitura de Dourados respondeu que “o aluguel social é uma medida paliativa
que representa um grande ônus ao poder público e pouca efetividade aos
beneficiários, por se tratar de benefício eventual e não política pública
satisfativa”.
“Ademais, ofertar ao
público que ali reside a obrigação de mudar-se da área, além de constituir
ofensa ao princípio do pertencimento, fundamental na política pública
habitacional, garantiria a estas famílias moradia apenas por determinados
meses, e não impediria que novas famílias viessem a invadir a área, ou seja,
não só não resolveria o problema daquelas famílias, como não resolveria a
questão da favelização do espaço”, completou a prefeitura de Dourados. (Nota
completa no final).
Terreno
disponibilizado a famílias também é área de risco
Parte das famílias
iniciou os trabalhos de construção de suas residências, com recursos próprios,
na comunidade Santa Fé, conforme orientou a prefeitura de Dourados na ordem de
desapropriação.
Esse é o caso da filha
mais velha de Maria Maurera. “Minha filha está construindo a casa dela de
alvenaria em Santa Fé, porque ela tem mais de dois anos que mora aqui [na Santa
Felicidade]”, contou Maurera, que não foi contemplada com um terreno na ocupação
vizinha por morar há menos de um ano no Jardim Santa Felicidade.
Durante a caminhada
pela Santa Felicidade, a estudante de engenharia civil Sofia Romero apontou
para uma casa vazia e disse: “Ele [ex-morador] se mudou para Santa Fé.
Construiu um barraco [na ocupação Santa Fé] e está vivendo lá”. Romero integra
a ONG Organização de Infraestrutura e Habitação Santa Felicidade, que oferece
serviços de assistência social às famílias que moram na comunidade.
O parecer da Defesa
Civil, em parceira com a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD),
apontou que a comunidade Santa Fé é uma área que oferece riscos à saúde
pública, pois “não há fornecimento de água potável”, além de enxurradas e
alagamentos, uma vez que não há drenagem dos volumes de chuva.
Outro ponto destacado
pelo estudo é que há riscos de “deslocamento de massa pontual, pois a
declividade do terreno é acentuada e as edificações [casas] são estruturalmente
frágeis”.
Ademais, a equipe de
pesquisadores que assina o documento concluiu que “toda a comunidade Santa Fé
deve ser considerada como área de risco, pela atual configuração das condições
geofísicas e sociais”.
Apesar das questões
apontadas pela Defesa Civil, a matriarca venezuelana Mari Rizalez, de 45 anos,
avalia que a ocupação Santa Fé é melhor porque “tem asfalto e fornecimento de
eletricidade”. No entanto, ela avalia que o terreno é pequeno, “somente 6 metros
[de extensão] por 3 [de largura]”, que não é o suficiente para abrigá-la com os
seus cinco filhos.
• Fogo, enchentes e lama: famílias lidam
com climas extremos em construções precárias no Santa Felicidade
A forma com que Marilu
Cariaco, de 46 anos, e Luis Sifontes, 43, encontraram de se refrescar do calor
das noites quentes de Mato Grosso do Sul foi com um ventilador velho de hélices
enferrujadas, ligado em uma estrutura precária de fiação dentro de um quarto de
quatro metros quadrados.
Durante o dia, a
venezuelana contou que fica do lado de fora, sob as sombras da casa, para
amenizar os efeitos do calor extremo. O terreno onde fica o Jardim Felicidade é
descampado e com poucas árvores.
Em 19 de agosto de
2023, um curto-circuito na rede elétrica causou um incêndio na comunidade e
destruiu as casas de madeira de três famílias venezuelanas. Não houve feridos,
mas todos os móveis foram perdidos.
Uma das casas
pertencia a Mari Rizalez, de 45 anos. “Com a ajuda de outras pessoas, eu
consegui madeiras para construir de novo e aqui estamos”, contou ela.
O risco de incêndio
também foi apontado pela Defesa Civil “devido à grande quantidade de ligações
irregulares de energia elétrica”.
Altas temperaturas não
são o único efeito climático que afeta as famílias do Santa Felicidade. Em dias
de chuvas fortes, as casas são inundadas por água e lama que escorrem pelas
ruas de terra, danificando os poucos móveis e a estrutura precária em que as
casas foram construídas.
No dia 3 de fevereiro
de 2023, a Defesa Civil de Dourados realizou 11 atendimentos de ocorrências de
enchentes no Jardim Santa Felicidade, sendo 32 pessoas resgatadas na ocasião.
“Quando chove, a gente
tenta colocar barreiras, mas a água passa pela minha sala inteira […] Por esse
motivo, eu não coloquei cimento no chão e nem piso”, contou Maria Maurera.
Segundo a Defesa
Civil, especificamente a parte em que Maurera mora é um dos trechos mais
vulneráveis às inundações, porque está situado na área mais baixa do terreno e
próxima às nascentes que alimentam o córrego Engano.
O documento cita que o
Jardim Santa Felicidade tem “alta vulnerabilidade ambiental para essa área,
predispondo a uma condição natural de inundações e alagamentos”.
A gestão do prefeito
Alan Guedes afirmou que “a área do Santa Fé não foi classificada como área de
risco tal como a área de remoção no Santa Felicidade. Tanto no Santa Fé quanto
no Santa Felicidade existem áreas que atualmente podem sofrer dos riscos elencados,
no entanto, as intervenções realizadas e a realizar sanam os problemas
existentes, conforme pareceres da Defesa Civil e IMAM [Instituto de Meio
Ambiente de Dourados] e cronograma de intervenções. Já no que tange à área de
remoção no Santa Felicidade não há intervenções capazes de impedir os riscos
existentes e, portanto, tornar o espaço próprio para moradia”.
• Queimadas, lixo e falta de saneamento
básico
A reportagem da
Pública visitou o assentamento, que fica na zona sudoeste de Dourados, em um
dia cuja temperatura chegou aos 35 ºC. O horizonte era marcado por uma névoa
cinzenta, reflexo das queimadas que podiam ser vistas no horizonte de qualquer
lugar da ocupação.
“É um risco, porque
imagina que se o fogo vem pra cá. Quem vai apagar?”, disse Sofia Romero,
preocupada com as queimadas ao redor, enquanto caminhava com a reportagem pelo
assentamento.
A poucos metros da
casa de Marilu Cariaco e Luis Sifontes, um amontoado de lixo escancara um outro
problema não solucionado pela prefeitura de Dourados: a coleta de lixo não
chega até ali.
O ponto de descarte
fica na entrada da ocupação, em uma área asfaltada do bairro. No entanto, o
local fica distante das casas onde mora a maior parte dos imigrantes.
“A Defensoria Pública
veio comigo e eles fizeram uma reunião [com os moradores] e pediram à
prefeitura para que colocassem coleta aqui na comunidade, mas até hoje não
aconteceu”, disse Sofia Romero.
Na análise da Defesa
Civil de Dourados, o que impede a chegada dos caminhões de lixo é que as vias
são estreitas e com desníveis. No entanto, a falta de coleta “compromete a
qualidade ambiental, constituindo focos para vetores de doenças e epidemias”.
Em um quarto de quatro
metros quadrados, o casal venezuelano vive há um ano. A casa é feita parte de
alvenaria e a outra de lona e madeiras retalhadas. O banho diário do casal é
improvisado na cozinha, onde são mantidos dois grandes baldes de água e o material
de higiene pessoal.
As necessidades são
feitas em um cano de PVC, dentro de um barraco de madeira externo, a sete
passos da entrada do quarto. Os dejetos são lançados em uma vala atrás da
construção.
A poucos palmos de
distância do banheiro improvisado de Cariaco e Sifontes, uma grande área de
mata e árvores carbonizadas denunciava que ali havia ocorrido uma queimada
recente. “Nós jogamos água”, disse a venezuelana quando questionada se não teve
medo do fogo queimar a sua casa.
Maria Maurera, de 58
anos, vive na casa mais próxima ao córrego Engano. O terreno é composto por
três construções, sendo uma de alvenaria, onde vive a filha mais velha, e
outros dois barracos de madeira, divididos entre ela e as netas.
• Maioria dos candidatos a prefeito de
Dourados não tem propostas para migrantes
A Pública consultou os
planos de governo dos sete candidatos ao pleito que decidirá o futuro prefeito,
e apenas dois fazem menção às políticas voltadas à população imigrante do
município.
O atual prefeito e
concorrente à reeleição, Alan Guedes (Progressistas), é um dos candidatos que
não apresentam propostas à população migrante. No entanto, colocou em seu plano
de governo o projeto de regularização fundiária às famílias que adquiriram terrenos
de forma irregular.
“Respeito ao meio
ambiente” é a única proposta que cita o meio ambiente do principal concorrente
do atual prefeito, o candidato Marçal Filho (PSDB), ex-deputado estadual
sul-matogrossense. No plano de governo dele, não há uma política específica
para mudanças climáticas. Contudo, ele promete realizar o levantamento
detalhado do déficit habitacional por categorias sociais para minimizar a falta
de moradias dignas. Marçal declarou R$ 11 milhões em bens, sendo R$ 9 milhões
em imóveis e terrenos.
Já Bela Barros (PDT)
promete a pavimentação de bairros periféricos, “garantindo acessibilidade e
qualidade de vida”.
Beto Teles (Rede)
também promete asfaltar todos os bairros de Dourados. Ele é um dos poucos
candidatos que trazem proposta para migrantes, prometendo criar a coordenadoria
de incentivo ao emprego e renda ao migrante e imigrante, a Casa do imigrante
douradense, que deve oferecer cursos de idiomas, capacitação e qualificação,
além de acolhimento e alimentação.
Thiago Botelho (PT)
promete regularizar assentamentos “ilegais” de baixa renda e fazer
investimentos em infraestrutura urbana (pavimentação, conexão às redes de água
e esgoto etc.).
Racib Harb, candidato
do Novo, não faz menção aos migrantes ou políticas públicas para as populações
que vivem em áreas à espera de regularização.
<><><>
LEIA A NOTA COMPLETA DA PREFEITURA DE DOURADOS
1. Foram notificadas
para realocação 32 famílias e 8 para desocupação. Outras 4 famílias foram
notificadas para desocupar um terreno, pois estavam na posse de dois ou mais
terrenos, mas com residência em apenas um.
2. Foram realocadas 25
famílias no Santa Fé e 7 no própria Santa Felicidade em outros terrenos. Não
foram contempladas com outros terrenos 8 famílias que não residiam na
comunidade desde a data do congelamento (algumas também não residiam na época
das notificações mantendo apenas um terreno cercado).
3. A Prefeitura, tendo
conhecimento da situação, que data de 2.014 (surgimento das comunidades Santa
Fé e Santa Felicidade), agiu em diversas frentes. No que compete à política
pública habitacional, foi realizado projeto de regularização fundiária e urbanização
das áreas (Santa Fé e Santa Felicidade, dentre outras comunidades). A
regularização fundiária está em fase final, além disso, já foi realizado o
devido arruamento das áreas e correções de nível de terrenos, bem como projeto
de abastecimento de água, cuja execução pela Sanesul está em andamento e tem
previsão de ser finalizada ainda em setembro.
4. Embora haja
especulação acerca da venda de terrenos nas comunidades, esta agência nunca
recebeu, de fato, denúncia sobre o assunto, tampouco qualquer informação acerca
de registro de ocorrência ou denúncia de fato junto a órgãos investigativos
competentes.
5. 25 famílias foram
realocadas no Santa Fé. Os terrenos nas duas áreas tem metragem mínima de 65
m2, e os menores estão localizados no Santa Felicidade. Atualmente na área de
remoção existem terrenos de 24 m2. Neste momento a prefeitura não fornecerá materiais
de construção por falta de orçamento para tanto.
6. A área do Santa Fé
não foi classificada como área de risco tal como a área de remoção no Santa
Felicidade. Tanto no Santa Fé quanto no Santa Felicidade existem áreas que
atualmente podem sofrer dos riscos elencados, no entanto, as intervenções
realizadas e a realizar sanam os problemas existentes, conforme pareceres da
defesa civil e imam e cronograma de intervenções. Já no que tange à área de
remoção no Santa Felicidade não há intervenções capazes de impedir os riscos
existentes, e, portanto tornar o espaço próprio para moradia, razão pela qual a
regularização fundiária e urbanização dos terrenos em questão não foi aprovada
pelo município. Como enunciado, foram feitas obras de melhoria e estas
continuam sendo realizadas. A Defesa Civil, o Imam, órgãos de controle e
justiça, tal como defensoria pública, e a sociedade civil, como comitês de
atenção a direitos e universidade, foram ouvidos e participaram de todo o
projeto, bem como vem participando de sua execução.
7. A prefeitura já está realizando o projeto
de asfaltamento das duas comunidades, dentre outras, e busca convênio para sua
execução. A data limite para execução consta do cronograma e prevê prazo de 24
à 48meses para ser concluído, porém pelas execuções já em andamento acreditamos
conseguir adiantar consideravelmente tais prazos. A coleta de lixo já está
sendo realizada.
8. O aluguel social é uma medida paliativa que representa um grande ônus ao poder público e pouca efetividade aos beneficiários, por se tratar de benefício eventual e não política pública satisfativa. Ademais, ofertar ao público que ali reside a obrigação de mudar-se da área, além de constituir ofensa ao principio do pertencimento, fundamental na política pública habitacional, garantiria a estas famílias moradia apenas por determinados meses, e não impediria que novas famílias viessem a invadir a área, ou seja, não só não resolveria o problema daquelas famílias, como não resolveria a questão da favelização do espaço. Sendo realocadas em área limítrofe a onde residiam e recebendo a devida titulação de seus terrenos estas famílias estão ascendendo à qualidade de beneficiárias de política habitacional definitiva sem terem de se preocupar novamente com moradia própria e digna
Fonte: Por Rafael
Custódio, da Agencia Pública
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