Demora da Justiça em caso de grilagem
ameaça famílias no Cerrado do Piauí
Há mais de sete anos,
o Ministério Público do Piauí (MPPI) denunciou “uma imensa grilagem” de 124 mil
hectares de terras, “talvez a maior do Estado do Piauí”, nas imediações da
fazenda Kajubar, em Santa Filomena, a 800 km da capital, Teresina. O Tribunal
de Justiça do Piauí (TJPI) aceitou a denúncia em 2016, por meio de sua Vara
Agrária, mas até o momento não chegou a um veredito. A falta de resposta
definitiva sobre o caso tem se transformado em ameaça a povos do Cerrado na
região.
A Agência Pública
apurou que, ao longo das últimas quatro semanas, está em curso uma nova
ofensiva de invasores, com desmatamentos e conflitos armados entre pistoleiros
na região, plena fronteira da soja no país, graças à revenda de parte das
terras supostamente griladas.
Grileiros têm usado
tratores e grandes correntes de aço para devastar áreas nativas de Cerrado.
Grupos rivais têm se atacado para ocupar e cercar terras que teriam sido
negociadas na área sob suspeita, entre os limites de Santa Filomena e
Bertolínia (PI).
Tanto o governo de
Rafael Fonteles (PT) quanto a Defensoria Pública Estadual sabem do aumento da
tensão. Movimentos sociais como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Rede
Social de Justiça e Direitos Humanos têm pedido às autoridades por definição
quanto à regularização fundiária para pacificar a região. Moradores de Barra da
Lagoa, Brejo das Meninas e Chupé, que vivem há mais de cem anos na região,
segundo o próprio governo estadual, temem por sua segurança após se verem
envolvidos pelo esquema de grilagem, como relatado pela Pública em 2022.
Por um lado, faltam
respostas do TJPI em relação à denúncia de 2016 do Ministério Público, com
impacto direto na segurança de povos tradicionais no sul do estado. Por outro,
a Justiça estadual tem dado decisões liminares a favor de supostos donos de
terras na mesma área do esquema denunciado.
O TJPI liberou
registros de fazendas mesmo com indícios de ligação com a grilagem de 124 mil
hectares. O desembargador José James Gomes Pereira, da 2ª Câmara Especializada
Cível do TJPI, é um dos que têm concedido decisões a favor de supostos
proprietários de terras na região, como mostrou a Pública. Em julho de 2023,
por exemplo, Pereira deu liminar desbloqueando os registros de duas fazendas na
área sob suspeita. Documentos obtidos pela reportagem expõem a conexão de um
dos imóveis liberados com um dos acusados de coordenar a suposta grilagem.
Não foi a primeira vez
que o desembargador decidiu em favor de acusados. Em 2021, Pereira liberou, de
uma só vez, os 124 mil hectares de terras sob suspeita do MPPI, por meio de
liminar em resposta ao pedido de desbloqueio parcial de apenas uma das fazendas
da região. O autor da solicitação foi um advogado que havia sido preso, anos
antes, por suspeita de envolvimento em outro esquema de grilagem.
Na prática, a sentença
de Pereira favoreceu todos os réus denunciados, incluindo um dos maiores
grileiros do país e alvo de denúncias da Pública há anos, o finado Euclides de
Carli. Carli era defendido na Justiça pelo governador do Distrito Federal, Ibaneis
Rocha (MDB), e seu escritório de advocacia. Em 2022, Ibaneis Rocha disse à
Pública que sua firma “foi contratada para atuar no referido processo no ano de
2016”, mas que “sequer apresentou defesa em nome dos constituintes, sendo
substituído por outro escritório, que efetivamente apresentou defesa nos
autos”.
A reportagem procurou
o TJPI e o desembargador José James Pereira, para ouvi-los sobre as críticas
sobre a concessão de liminares a fazendeiros e pela falta de um veredito quanto
à posse da área pelas comunidades tradicionais, mas não teve resposta até o
momento. Em caso de manifestação, a reportagem será atualizada.
• Moradores quase foram despejados sem
serem citados pela Justiça
Críticas das
comunidades tradicionais e movimentos que acompanham a luta por terras no sul
do Piauí se baseiam em outras controvérsias na Justiça estadual. Em maio
passado, uma oficial de justiça, acompanhada de policiais militares, esteve nas
comunidades de Barra da Lagoa, Brejo das Meninas e Chupé, todas atingidas pela
suposta grilagem de 124 mil hectares, para avisá-las de que teriam de sair de
suas terras devido a uma decisão da Justiça estadual.
As comunidades nem
sequer tinham sido citadas ou intimadas, desconhecendo oficialmente a
existência da ação. O caso envolve, entre outros réus, o grupo de Euclides de
Carli. Atualmente, a Defensoria Pública Estadual do Piauí pede, em nome das
comunidades, a anulação do caso por conta desse “erro processual claro”.
“Nosso pedido de
anulação aguarda uma decisão em segundo grau do Judiciário, instância
responsável por analisar os recursos apresentados à Vara Agrária [do Piauí]”,
afirmou à reportagem o defensor Daniel Bezerra Lira, titular da Defensoria
Pública Estadual em Bom Jesus (PI) – responsável pelo atendimento legal de
populações vulneráveis na região.
“Naturalmente,
demandas e casos complexos tomam um tempo maior de análise pela Justiça, como
vemos nas ações anulatórias e possessórias em curso, mas juridicamente não
vemos como seria possível afastar ou remover as comunidades de suas terras já
reconhecidas”, disse ainda à Pública o defensor.
• Terras liberadas mesmo sob suspeita
Parte das áreas hoje
em conflito em Santa Filomena coincide com imóveis na região sob suspeita de
grilagem. A conexão fica evidente a partir de uma das posses do antigo sócio de
Euclides de Carli, o também finado João Emídio de Sousa Marques, conhecido como
João ‘Orelhinha’ – um dos acusados pelo MPPI de coordenar o esquema.
O detalhe importa,
considerando a liminar do TJPI que liberou duas fazendas na área sob suspeita.
Comunicada em julho de 2023, a decisão do desembargador José James Pereira
liberou os registros das fazendas Figueira Gaúcha e Pôr do Sol após anos de
bloqueio por suspeita do MPPI de que os imóveis fizessem parte do esquema de
Marques e Carli.
A fazenda Figueira
Gaúcha deriva de uma das áreas controladas na região pelo grupo de João
‘Orelhinha’ – definido em uma sentença
da Vara Agrária do TJPI como “dono de quase o Piauí inteiro juntamente com
Euclides de Carli”. Então sócio e procurador de empresa envolvida na suposta
grilagem, ele “falsificou procurações públicas para adquirir propriedades”,
segundo a sentença proferida em 2016.
Mesmo apresentando a
certidão de compra da fazenda Figueira Gaúcha, que mostra o vínculo do imóvel
com uma das fazendas sob suspeita, a defesa dos supostos donos do imóvel –
Antônio Andrino e Romeo Michael – alegou ao TJPI que o bloqueio das terras “não
se mostrava razoável”, pois impedia atividades agrícolas. No entanto, o suposto
impedimento não evitou a revenda de parte das fazendas por R$ 5,5 milhões,
segundo documentos apresentados pela defesa à Justiça do Piauí.
Segundo apurado pela
Pública, os novos proprietários teriam ligação com os recentes conflitos e
teriam derrubado parte da vegetação nativa de Cerrado. Desmatamentos se
tornaram frequentes na região, fato usado pelo MPPI como argumento para
bloquear registros e evitar novos “danos ambientais”.
Ainda assim, e
considerando a origem suspeita da fazenda Figueira Gaúcha, o desembargador José
James Pereira liberou os registros dos imóveis. “As arguições do Ministério
Público tanto na data do ajuizamento da ação anulatória como recentemente
quanto às questões relacionadas a danos ambientais são graves e devem ser
apuradas, contudo, não nos parece razoável antecipar o resultado prático da
ação”, disse Pereira na decisão.
• Desmatamento ilegal ‘regularizado’ pelo
governo
Um detalhe chama
atenção no caso das fazendas Figueira Gaúcha e Pôr do Sol: a existência de uma
licença emitida pela Secretaria de Meio Ambiente do estado (Semarh), obtida
pela Pública, que permite o plantio agrícola em uma área de 2 mil hectares já
desmatada e sob suspeita de grilagem, o que, na prática, regulariza o
desmatamento ilegal. O documento tem validade até 7 de março de 2027 e foi
assinado pelo então diretor de Licenciamento e Fiscalização da Semarh João
Henrique de Sousa Sampaio, e pelo secretário de Meio Ambiente, Daniel Carvalho
de Oliveira Valente.
Recentemente, a
secretaria se viu envolvida em outro caso controverso envolvendo José James
Pereira. Em 25 de agosto, o desembargador determinou, por meio de uma decisão
monocrática, que a Semarh emita licenças para o desmatamento de mais de 74 mil
hectares de terras para o plantio de milho e soja em fazendas que invadem uma
unidade federal de conservação.
O desmate permitido
atingirá a Estação Ecológica de Uruçuí-Una, em Baixa Grande do Ribeiro (PI),
vizinha a Santa Filomena, como revelado pelo portal O Eco. À reportagem, a
Semarh afirmou que “tomou as devidas providências junto à Procuradoria-Geral do
Estado do Piauí” e que “se mostra contrária” à liminar que a obriga a autorizar
o desmatamento de 74 mil hectares.
À Pública, a pasta
disse em nota que a permissão de 2 mil hectares para as fazendas Figueira
Gaúcha e Pôr do Sol se refere a “uma licença ambiental corretiva que regulariza
uma atividade econômica sobre uma área já antropizada, a qual não dispõe de
qualquer outra licença ambiental prévia”.
Quanto à suspeita de
ilegalidade no registro das fazendas, a Semarh afirma que “não constava no
banco de dados geoespaciais do Estado qualquer conflito fundiário entre o
detentor da licença e a comunidade tradicional Brejo das Meninas” à época da
concessão da licença.
“Tal conflito somente
se evidenciou em maio de 2023, mediante uma análise técnica por parte do
INTERPI [órgão fundiário do governo do Piauí]. No entanto, cumpre frisar que,
até o momento, o INTERPI não se manifestou nem pela regularidade de domínio da
mencionada fazenda, nem sobre os limites do território ocupado pela população
tradicional”, disse ainda a Semarh.
Fonte: Por Caio
Freitas da Agencia Pública
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