Daniel Afonso da Silva: ‘O efeito Marçal’
A presença de Marçal reafirma
o que é a política. Uma terra de brutos. Onde o darwinismo social, onde
triunfam os adaptáveis, persiste.
Escreve Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e
autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações
internacionais contemporâneas
Pablo
Marçal incomoda. E a sua presença desestabiliza.
Foi assim no debate
da Gazeta, no domingo, 01/09. E voltou a se ver o mesmo no Roda Viva,
do dia seguinte. Sem contar em todas as suas aparições anteriores. É
impressionante o mal-estar gerado. Trata-se de muito mais que divergências entre
as partes a priori. Muito mais que rejeição sem
sentido. Revela-se algo muito mais grave. E que diz respeito ao fim de uma
era de hipocrisias, onde o bom-mocismo, vazio e estéreo, desejava imperar.
A presença
de Marçal reafirma o que é a política. Uma terra de brutos. Onde o
darwinismo social, onde triunfam os adaptáveis, persiste. Sendo as boas
maneiras uma ingênua e cândida ilusão. Pelo elixir do poder sempre valeu
tudo. E é assim desde a noite dos tempos.
Alguém já disse que
não se ganham eleições com flores nem se mantém no poder com
bombons. Perdoem os hipersensíveis: mas é assim. E exemplos abundam
desde o mundo antigo, passando por todos os regimes modernos e contemporâneos e
chegando ao Brasil antigo e recente.
Quem milita pelo
bom-mocismo tem interesses. Quer se fazer de vítima ou perdeu a batalha. Ou,
quem sabe, por desconhecer a política e se encontra perdido nessa verdadeira
selva selvagem. Uma simples mirada diagonal nas principais impressões
sobre a participação de Marçal na disputa eleitoral recente impinge a ele a condição de violento, agressivo,
desbocado, imoral, sem modos e nada comportado.
As avaliações mais
preguiçosas pretendem colar nesse goiano desembarcado em São Paulo a
pecha de bolsonarista raiz – que, talvez, ele seja mesmo. As mais
curadas percebem em tudo que ele faz as marcas de uma tendência mundial de
descontentamento generalizado com o establishment. Não dá para
fingir que o mundo segue rosa. O presente século vivencia severas tormentas. E
a classe política de todas as partes virou impotente sem saber que fazer.
Apenas de ilustração, a França,
coração do Ocidente e modelo de democracia liberal, está sem governo há quase
dois meses. Desde a abertura das urnas das eleições legislativas que forjaram
uma derrota a todos. Quando nenhuma coloração política conseguir afirmar
maiorias. Não dá para ficar sereno diante dessa anomia.
De volta ao Brasil,
a São Paulo e às impressões sobre Marçal, os analistas mais
ideologicamente perturbados – aqueles que insistem em encontrar “nazistas e “fascistas” em todas as esquinas – identificam Marçal como “filhote de ‘extrema-direita’”. Caem, portanto, nas simplificações analíticas e ofuscam a
compreensão do fenômeno. Possuem traves em seus olhos e jogam areia dos olhos
das pessoas que querem ver melhor. Mais ofuscam que clarificam, assim, o
fenômeno Marçal.
Por fim, uma última
tendência analítica, envolve um e outro que reconhece no fator
Marçal os momentos finais da redemocratização brasileira. Feito sinais dos
tempos. Turning point de uma era. Que reside muito além dos 20
segundos de memes virais produzidos pelas equipes de Marçal.
Marçal está onde
está – na dianteira da corrida eleitoral na cidade mais importante do país –
não pelos memes nem pela lacração. Ninguém chega nesse patamar sem deixar
rastros. As razões de sua proeminência são profundas. Na superfície, ele pode
até parecer deslocado. Mas, em verdade, ele, mais que nenhum, tem posto pressão
processo através de seu falar e portar. O que, goste-se ou não, denota um
retorno à política como ela é – e sempre foi. À flora da pele. Doa a quem doer.
Quem tiver alguma
dúvida e não desejar ir tão longo no tempo nem no espaço, que retorne aos anos
de 1920. Se quiser notar algo mais preciso, que se fixe numa apreciação mais
atenta do período da presidência de Washington Luís. Foi desconcertante.
Querendo mais, que avance. Sob Getúlio Vargas, para além do Estado Novo, teve de tudo. Rememore-se, por
exemplo, Carlos Lacerda. O antigo governador da Guanabara foi
um Pablo Marçal avant la lettre. Só que muito mais culto, mais
erudito, mais violento e mais letal. Veja-se, avançando ainda mais, o peso
moral de personagens como Leonel Brizola, Paulo Maluf ou mesmo Jânio Quadros nos anos de 1980-1990.
No presidente século,
não foi nada doce o embate de 2002. E o que dizer do pleito de 2006? Nele, os
atuais presidente e vice-presidente mostraram bíceps verbais inacreditavelmente
violentos. A reação da campanha da presidente Dilma Rousseff ante a ascensão da candidatura de Marina Silva em 2014 acoimou essa nobre acreana a ponto de fazê-la
perder o rumo e o prumo. Não foi brincadeira. Os pratos saindo da mesa de
jantar de uma família bem pobre continua no imaginário de muita gente. Dilma e
Marina sabem disso. João Santana, responsável maior daquela verdadeira ignomínia, também. Uma
covardia moral sem proporções. Que voltou com juros e correção em toda entropia
que conduziu ao impeachment de 2016.
Recuperando tudo
assim, as grosserias do capitão não passaram de café pequeno. E, agora, Marçal,
simplesmente, acentua certo nível de testosterona que sempre existiu nas
interações eleitoreiras e eleitorais de todos os tempos. Tudo em contrário
disso não passa de hipocrisia. Guilherme Boulos e sua entourage, melhor que ninguém, sabem
disso. As bravatas fazem parte do jogo. A carteira de trabalho na cara, também.
Até hoje segue
dramático o caso Lurian. Foi um golpe baixíssimo de Collor contra Lula em 1989. Não foi fake nem news.
Foi mau-caratismo mesmo. Que pode ter definido a parada presidencial. Quem
sabe, até mais que o debate trucado. Ninguém disse nem em nenhum lugar estava
escrito que não podia. A campanha de Collor então fez.
Então, antes de tudo,
deixe-se de chorumes: Marçal pode ser bruto, mas não é o capiroto: em
disputas de poder, o céu é o limite. O que, de fato, suscita preocupação
reside no conjunto da obra: Marçal e seus concorrente.
Olhando com calma,
nenhum deles deveria estar onde está. Recuperando o histórico dos candidatos à
prefeitura de São Paulo desde 1976, os 9 ou 10 candidatos
pela capital paulista seguem integralmente abaixo da média. São multidimensionalmente
frágeis demais. Alguns, por bonifrates, até cômicos.
A política, vale
repetir, é, sim, uma arena de brutos. Mas brutos com verdadeiros princípios,
fundamentos, propósitos e ambições. O que não parece ser o caso de nenhum dos
atuais concorrentes. E isso se deve, portanto, a algo muito mais grave e que
diz respeito ao esgotamento da redemocratização.
Parece assente entre
os observadores da política brasileira que as noites de junho de 2013
inauguraram outra fase da democracia do país e que o impeachment de
2016 e da prisão do presidente Lula da Silva em 2018 causaram traumas profundos no interior do sistema
que, em conjunto, golpeou de morte a vitalidade do regime político saído da
redemocratização. Um regime que virou mambembe e, por isso, desde então, segue
chafurdando em dúvidas e indeterminações.
O resultado das
eleições de 2018 causou espanto em todas as partes. “Ele, não”, diziam os
mesmos que ajudaram a desconjuntar o regime.
O que se viu em
2019-2022 foi impressionante. Mas mais impressionante ainda é que ninguém,
entre os sabidos, tenha se debruçado para escrever um grosso volume com título
ou com a tônica em “O bolsonarismo no poder” como se fizera, no âmbito da
fervura do Escândalo do Mensalão, em 2005, na forma de “O lulismo no
poder”.
É curioso porque,
goste-se ou não, “bolsonarismo” e “lulismo”
restam quase dois irmãos. Sendo o “lulismo” um claro produto das ilusões da
redemocratização e “bolsonarismo”, em contraponto, o produto das desilusões da
democracia brasileira.
Basta que se veja o
comportamento do eleitor nos dois casos. Impressiona. Em todas as
eleições desde 1989, somente em 2006 e 2018 ocorreram fortes e verdadeiros
realinhamentos ideológicos na estrutura eleitoral brasileira. Em 2006,
esse realinhamento permitiu a reeleição de Lula da Silva e conduziu
todas as conquistas lutopetistas até 2014. Em 2018, ele garantiu a eleição
de Bolsonaro forjando
a sua quase reeleição em 2022.
Nessas ocasiões
ocorreram realinhamentos estruturais de blocos inteiros de eleitores que se
transformaram em fiéis e fidedignos aos seus líderes. Somente em 2006 que
o PT conseguiu convencer os objetos de sua narrativa – leia-se: as
classes menos favorecidas – a votar na sigla. Em 2018, o “bolsonarismo” fincou
raízes.
Mas, em 2022, emergiu
uma novidade nova. Com toda a vênia aos apaixonados por Lula da
Silva e pelo “lulismo”, mas, como virou sabido, o retorno do presidente
Lula da Silva ao poder se deveu mais ao desespero diante do “bolsonarismo” que
ao “lulismo”. Mais, portanto, à rejeição ao Bolsonaro que às
virtudes de Lula. Isso é mais que evidente. Mas não adianta dizer.
Precisa-se demonstrar. E a demonstração vem com os números.
Quando a cadelinha
Resistência subiu a rampa do Planalto, no 1º de janeiro de 2023, o novo
presidente tinha, claramente, menos intenção de votos que o presidente
derrotado. Isto mesmo: o vencedor de 2022 não venceu porque o perdedor perdeu.
Muito do contrário. Lula da Silva voltou à presidência porque, em
geral, parte, sensivelmente, majoritária da população criou asco do
presidente Bolsonaro. E, assim, tapou o nariz e votou com o “lulismo”, mas
sem a ilusão de um dia incorporá-lo. Ao passo que, do lado do “bolsonarismo”,
Bolsonaro saiu do pleito com 45% das intenções de voto e as manteve – e mantém
– até hoje quase intactas.
Isso quer dizer que o
“bolsonarismo” possui uma base eleitoral fidedigna maior que o “lulismo”: 45%
contra 33 ou 35%. Isso porque existe uma imensa fragmentação nisso que se
convenciona chamar de esquerda no Brasil e uma fragmentação ainda maior nisso
que se autodeclara ala progressista.
O movimento dessa
esquerda com a ala progressista se uniu apenas para barrar a manutenção de
Bolsonaro no poder. Só pra isso. Levou Lula da Silva de volta ao
poder. Mas, depois, novamente, se espargiu. Retornou aos seus combates nas
trevas. Claudicando, hesitando e batendo cabeça até chegar às municipais deste
ano.
O que se vivencia
em São Paulo é a expressão das contradições desses realinhamentos de
2006 e 2018 somada à contradição interna do “lulismo” após 2022. Não é,
portanto, ao acaso que o apoio do “lulismo” e da ala progressista
a Guilherme Boulos continua completamente envergonhado. E, por outro
lado, a preferência por Marçal parece ubíqua.
Ainda é cedo para se
falar em “marçalismo”. Ainda não se sabe do alcance, presente e
futuro, de Marçal. Mas é inegável que ele representa algo novo e inovador
na arena política e, por ser assim, drena votos de todas frentes. Ele vem
do campo bolsonarista, que lhe oferta prestígio e parte substantiva de seu
colchão eleitoral. Mas tem muita gente no entorno do “lulismo” e do
progressismo que sucumbiu aos seus encantos.
Tudo isso fruto de
pelo menos duas condições: 1. o vazio de lideranças à altura dos desafios de
recomposição da redemocratização e 2. o deserto intelectual, cultural e moral
dos candidatos “limpinhos”.
Os debates todos,
desde o inaugural da Band, evidenciaram isso. Mas o mais recente
da Gazeta escancarou o problema. Numa primeira impressão, parece
que, salvo a baixaria, ninguém ganhou a parada da Gazeta. Mas, meditando-se com
mais calma, começa-se a notar que as aparências enganam. E, nesse caso, enganam
muito.
Boulos, Datena e Nunes,
que haviam faltado ao debate anterior, vieram, agora, no domingo, 01/09, com
toda a fúria. Tabata também.
Queriam, todos, conter, esmagar e achatar Marçal. Para tanto,
promoveram uma verdadeira blitzkrieg contra o goiano. Subiram
o tom e partiram pra cima. Dando a entender que Marçal havia sido domado. Que,
ao menos, nesse debate, ele havia perdido. Ou, no mínimo, ficado empatado com
os demais. Essa foi a primeira impressão.
Mas, vendo-se, tudo,
novamente, com mais paciência, fica latente que não foi isso que, de fato,
aconteceu. Boulos, Datena, Nunes e Tabata usaram,
contra Marçal, as táticas de Marçal sem ser Marçal. Ou seja, Boulos,
Datena, Nunes e Tabata abandonaram a totalidade de sua roupagem comportada e
partiram para o full contact como faz Marçal. Perderam, assim,
as estribeiras. Jogaram às favas o politicamente correto. E se lançaram num
descampado desconhecido das provocações. O chão de terra das injúrias. Um
terreno movediço, onde Marçal é rei. Desse modo, caíram na arapuca de Marçal.
Perderam a sua identidade. Aceitaram jogar roleta russa. E, com isso, venderam
as suas próprias almas.
Veja-se.
Boulos, Datena, Nunes e Tabata apareceram
mais fortes no debate da Gazeta. Viraram, todos, bocas bravas. Sendo
diretos e francos. Impolidos e incultos. Interpelando os seus interlocutores e
especialmente Marçal sem nuanças nem mediações. Tornaram-se, assim,
como Marçal, também, brutos e rudes. Sem elegância.
Abandonando o politicamente correto, deixando cair todas as máscaras e indo ao
corpo a corpo quase carnal. À flor da pele.
Fazendo assim, todos
eles, Boulos, Datena, Nunes e Tabata, ganharam, sim,
algum protagonismo. E, mais que isso, simbolicamente, aparentemente,
conseguiram, em bloco, conter Marçal. Mas por um custo alto demais: o
custo de suas almas.
Mercadejando as suas
almas, descaracterizaram-se. E, por isso, tornaram-se, ainda mais, artificiais.
E, como resultado, foram “marçalizados”. Ingeriram a cicuta de Marçal. Ficaram
entorpecidos. Começaram a cambalear. Perderam o prumo e a direção. Virando
Marçais em miniatura. Pois deixaram de ser quem são. E, com isso, correm o
risco de ir a corner bem mais rápido. E, também, receber o nocaute. Eis
o efeito Marçal.
Um efeito que já
causou todo o estrago que poderia causar. Adentrando a corrente sanguínea de
seus adversários e os lobotomizando. Desse modo, independentemente do que
ocorrer daqui pra diante e independentemente de quem vencer a disputa pela
prefeitura de São Paulo, o entorpecimento causado por Marçal vai ficar.
As razões de Marçal na
parada não são pelos 20 segundos de meme.
Tudo é muito mais
profundo. Quem sabe, monstruoso. E tem que ver com o fim da
redemocratização. A democracia brasileira está na UTI. Sem a recomposição de pactos para revigorá-la, ela vai seguir
agonizando. E, como resultado, as disputas eleitorais serão mais desesperadoras
que a presente. Com candidatos sem alma nem coração. Feito
zumbis. Marçal está dando o tom do que vem por aí. Quem ainda não
capitou o código, que medite. Sem uma recomposição da redemocratização, o céu é
o limite.
Fonte: Jornal GGN
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