terça-feira, 10 de setembro de 2024

Daniel Afonso da Silva: ‘O efeito Marçal’

A presença de Marçal reafirma o que é a política. Uma terra de brutos. Onde o darwinismo social, onde triunfam os adaptáveis, persiste.

Escreve Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas

Pablo Marçal incomoda. E a sua presença desestabiliza.

Foi assim no debate da Gazeta, no domingo, 01/09. E voltou a se ver o mesmo no Roda Viva, do dia seguinte. Sem contar em todas as suas aparições anteriores. É impressionante o mal-estar gerado. Trata-se de muito mais que divergências entre as partes a priori. Muito mais que rejeição sem sentido. Revela-se algo muito mais grave. E que diz respeito ao fim de uma era de hipocrisias, onde o bom-mocismo, vazio e estéreo, desejava imperar.

A presença de Marçal reafirma o que é a política. Uma terra de brutos. Onde o darwinismo social, onde triunfam os adaptáveis, persiste. Sendo as boas maneiras uma ingênua e cândida ilusão. Pelo elixir do poder sempre valeu tudo. E é assim desde a noite dos tempos.

Alguém já disse que não se ganham eleições com flores nem se mantém no poder com bombons. Perdoem os hipersensíveis: mas é assim. E exemplos abundam desde o mundo antigo, passando por todos os regimes modernos e contemporâneos e chegando ao Brasil antigo e recente.

Quem milita pelo bom-mocismo tem interesses. Quer se fazer de vítima ou perdeu a batalha. Ou, quem sabe, por desconhecer a política e se encontra perdido nessa verdadeira selva selvagem. Uma simples mirada diagonal nas principais impressões sobre a participação de Marçal na disputa eleitoral recente impinge a ele a condição de violento, agressivo, desbocado, imoral, sem modos e nada comportado.

As avaliações mais preguiçosas pretendem colar nesse goiano desembarcado em São Paulo a pecha de bolsonarista raiz – que, talvez, ele seja mesmo. As mais curadas percebem em tudo que ele faz as marcas de uma tendência mundial de descontentamento generalizado com o establishment. Não dá para fingir que o mundo segue rosa. O presente século vivencia severas tormentas. E a classe política de todas as partes virou impotente sem saber que fazer. Apenas de ilustração, a França, coração do Ocidente e modelo de democracia liberal, está sem governo há quase dois meses. Desde a abertura das urnas das eleições legislativas que forjaram uma derrota a todos. Quando nenhuma coloração política conseguir afirmar maiorias. Não dá para ficar sereno diante dessa anomia.

De volta ao Brasil, a São Paulo e às impressões sobre Marçal, os analistas mais ideologicamente perturbados – aqueles que insistem em encontrar “nazistas e “fascistas” em todas as esquinas – identificam Marçal como “filhote de ‘extrema-direita’”. Caem, portanto, nas simplificações analíticas e ofuscam a compreensão do fenômeno. Possuem traves em seus olhos e jogam areia dos olhos das pessoas que querem ver melhor. Mais ofuscam que clarificam, assim, o fenômeno Marçal.

Por fim, uma última tendência analítica, envolve um e outro que reconhece no fator Marçal os momentos finais da redemocratização brasileira. Feito sinais dos tempos. Turning point de uma era. Que reside muito além dos 20 segundos de memes virais produzidos pelas equipes de Marçal.

Marçal está onde está – na dianteira da corrida eleitoral na cidade mais importante do país – não pelos memes nem pela lacração. Ninguém chega nesse patamar sem deixar rastros. As razões de sua proeminência são profundas. Na superfície, ele pode até parecer deslocado. Mas, em verdade, ele, mais que nenhum, tem posto pressão processo através de seu falar e portar. O que, goste-se ou não, denota um retorno à política como ela é – e sempre foi. À flora da pele. Doa a quem doer.

Quem tiver alguma dúvida e não desejar ir tão longo no tempo nem no espaço, que retorne aos anos de 1920. Se quiser notar algo mais preciso, que se fixe numa apreciação mais atenta do período da presidência de Washington Luís. Foi desconcertante. Querendo mais, que avance. Sob Getúlio Vargas, para além do Estado Novo, teve de tudo. Rememore-se, por exemplo, Carlos Lacerda. O antigo governador da Guanabara foi um Pablo Marçal avant la lettre. Só que muito mais culto, mais erudito, mais violento e mais letal. Veja-se, avançando ainda mais, o peso moral de personagens como Leonel Brizola, Paulo Maluf ou mesmo Jânio Quadros nos anos de 1980-1990.

No presidente século, não foi nada doce o embate de 2002. E o que dizer do pleito de 2006? Nele, os atuais presidente e vice-presidente mostraram bíceps verbais inacreditavelmente violentos. A reação da campanha da presidente Dilma Rousseff ante a ascensão da candidatura de Marina Silva em 2014 acoimou essa nobre acreana a ponto de fazê-la perder o rumo e o prumo. Não foi brincadeira. Os pratos saindo da mesa de jantar de uma família bem pobre continua no imaginário de muita gente. Dilma e Marina sabem disso. João Santana, responsável maior daquela verdadeira ignomínia, também. Uma covardia moral sem proporções. Que voltou com juros e correção em toda entropia que conduziu ao impeachment de 2016.

Recuperando tudo assim, as grosserias do capitão não passaram de café pequeno. E, agora, Marçal, simplesmente, acentua certo nível de testosterona que sempre existiu nas interações eleitoreiras e eleitorais de todos os tempos. Tudo em contrário disso não passa de hipocrisia. Guilherme Boulos e sua entourage, melhor que ninguém, sabem disso. As bravatas fazem parte do jogo. A carteira de trabalho na cara, também.

Até hoje segue dramático o caso Lurian. Foi um golpe baixíssimo de Collor contra Lula em 1989. Não foi fake nem news. Foi mau-caratismo mesmo. Que pode ter definido a parada presidencial. Quem sabe, até mais que o debate trucado. Ninguém disse nem em nenhum lugar estava escrito que não podia. A campanha de Collor então fez.

Então, antes de tudo, deixe-se de chorumes: Marçal pode ser bruto, mas não é o capiroto: em disputas de poder, o céu é o limite. O que, de fato, suscita preocupação reside no conjunto da obra: Marçal e seus concorrente.

Olhando com calma, nenhum deles deveria estar onde está. Recuperando o histórico dos candidatos à prefeitura de São Paulo desde 1976, os 9 ou 10 candidatos pela capital paulista seguem integralmente abaixo da média. São multidimensionalmente frágeis demais. Alguns, por bonifrates, até cômicos.

A política, vale repetir, é, sim, uma arena de brutos. Mas brutos com verdadeiros princípios, fundamentos, propósitos e ambições. O que não parece ser o caso de nenhum dos atuais concorrentes. E isso se deve, portanto, a algo muito mais grave e que diz respeito ao esgotamento da redemocratização.

Parece assente entre os observadores da política brasileira que as noites de junho de 2013 inauguraram outra fase da democracia do país e que o impeachment de 2016 e da prisão do presidente Lula da Silva em 2018 causaram traumas profundos no interior do sistema que, em conjunto, golpeou de morte a vitalidade do regime político saído da redemocratização. Um regime que virou mambembe e, por isso, desde então, segue chafurdando em dúvidas e indeterminações.

O resultado das eleições de 2018 causou espanto em todas as partes. “Ele, não”, diziam os mesmos que ajudaram a desconjuntar o regime.

O que se viu em 2019-2022 foi impressionante. Mas mais impressionante ainda é que ninguém, entre os sabidos, tenha se debruçado para escrever um grosso volume com título ou com a tônica em “O bolsonarismo no poder” como se fizera, no âmbito da fervura do Escândalo do Mensalão, em 2005, na forma de “O lulismo no poder”.

É curioso porque, goste-se ou não, “bolsonarismo” e “lulismo” restam quase dois irmãos. Sendo o “lulismo” um claro produto das ilusões da redemocratização e “bolsonarismo”, em contraponto, o produto das desilusões da democracia brasileira.

Basta que se veja o comportamento do eleitor nos dois casos. Impressiona. Em todas as eleições desde 1989, somente em 2006 e 2018 ocorreram fortes e verdadeiros realinhamentos ideológicos na estrutura eleitoral brasileira. Em 2006, esse realinhamento permitiu a reeleição de Lula da Silva e conduziu todas as conquistas lutopetistas até 2014. Em 2018, ele garantiu a eleição de Bolsonaro forjando a sua quase reeleição em 2022.

Nessas ocasiões ocorreram realinhamentos estruturais de blocos inteiros de eleitores que se transformaram em fiéis e fidedignos aos seus líderes. Somente em 2006 que o PT conseguiu convencer os objetos de sua narrativa – leia-se: as classes menos favorecidas – a votar na sigla. Em 2018, o “bolsonarismo” fincou raízes.

Mas, em 2022, emergiu uma novidade nova. Com toda a vênia aos apaixonados por Lula da Silva e pelo “lulismo”, mas, como virou sabido, o retorno do presidente Lula da Silva ao poder se deveu mais ao desespero diante do “bolsonarismo” que ao “lulismo”. Mais, portanto, à rejeição ao Bolsonaro que às virtudes de Lula. Isso é mais que evidente. Mas não adianta dizer. Precisa-se demonstrar. E a demonstração vem com os números.

Quando a cadelinha Resistência subiu a rampa do Planalto, no 1º de janeiro de 2023, o novo presidente tinha, claramente, menos intenção de votos que o presidente derrotado. Isto mesmo: o vencedor de 2022 não venceu porque o perdedor perdeu. Muito do contrário. Lula da Silva voltou à presidência porque, em geral, parte, sensivelmente, majoritária da população criou asco do presidente Bolsonaro. E, assim, tapou o nariz e votou com o “lulismo”, mas sem a ilusão de um dia incorporá-lo. Ao passo que, do lado do “bolsonarismo”, Bolsonaro saiu do pleito com 45% das intenções de voto e as manteve – e mantém – até hoje quase intactas.

Isso quer dizer que o “bolsonarismo” possui uma base eleitoral fidedigna maior que o “lulismo”: 45% contra 33 ou 35%. Isso porque existe uma imensa fragmentação nisso que se convenciona chamar de esquerda no Brasil e uma fragmentação ainda maior nisso que se autodeclara ala progressista.

O movimento dessa esquerda com a ala progressista se uniu apenas para barrar a manutenção de Bolsonaro no poder. Só pra isso. Levou Lula da Silva de volta ao poder. Mas, depois, novamente, se espargiu. Retornou aos seus combates nas trevas. Claudicando, hesitando e batendo cabeça até chegar às municipais deste ano.

O que se vivencia em São Paulo é a expressão das contradições desses realinhamentos de 2006 e 2018 somada à contradição interna do “lulismo” após 2022. Não é, portanto, ao acaso que o apoio do “lulismo” e da ala progressista a Guilherme Boulos continua completamente envergonhado. E, por outro lado, a preferência por Marçal parece ubíqua.

Ainda é cedo para se falar em “marçalismo”. Ainda não se sabe do alcance, presente e futuro, de Marçal. Mas é inegável que ele representa algo novo e inovador na arena política e, por ser assim, drena votos de todas frentes. Ele vem do campo bolsonarista, que lhe oferta prestígio e parte substantiva de seu colchão eleitoral. Mas tem muita gente no entorno do “lulismo” e do progressismo que sucumbiu aos seus encantos.

Tudo isso fruto de pelo menos duas condições: 1. o vazio de lideranças à altura dos desafios de recomposição da redemocratização e 2. o deserto intelectual, cultural e moral dos candidatos “limpinhos”.

Os debates todos, desde o inaugural da Band, evidenciaram isso. Mas o mais recente da Gazeta escancarou o problema. Numa primeira impressão, parece que, salvo a baixaria, ninguém ganhou a parada da Gazeta. Mas, meditando-se com mais calma, começa-se a notar que as aparências enganam. E, nesse caso, enganam muito.

Boulos, Datena e Nunes, que haviam faltado ao debate anterior, vieram, agora, no domingo, 01/09, com toda a fúria. Tabata também. Queriam, todos, conter, esmagar e achatar Marçal. Para tanto, promoveram uma verdadeira blitzkrieg contra o goiano. Subiram o tom e partiram pra cima. Dando a entender que Marçal havia sido domado. Que, ao menos, nesse debate, ele havia perdido. Ou, no mínimo, ficado empatado com os demais. Essa foi a primeira impressão.

Mas, vendo-se, tudo, novamente, com mais paciência, fica latente que não foi isso que, de fato, aconteceu. Boulos, Datena, Nunes e Tabata usaram, contra Marçal, as táticas de Marçal sem ser Marçal. Ou seja, Boulos, Datena, Nunes e Tabata abandonaram a totalidade de sua roupagem comportada e partiram para o full contact como faz Marçal. Perderam, assim, as estribeiras. Jogaram às favas o politicamente correto. E se lançaram num descampado desconhecido das provocações. O chão de terra das injúrias. Um terreno movediço, onde Marçal é rei. Desse modo, caíram na arapuca de Marçal. Perderam a sua identidade. Aceitaram jogar roleta russa. E, com isso, venderam as suas próprias almas.

Veja-se.

Boulos, Datena, Nunes e Tabata apareceram mais fortes no debate da Gazeta. Viraram, todos, bocas bravas. Sendo diretos e francos. Impolidos e incultos. Interpelando os seus interlocutores e especialmente Marçal sem nuanças nem mediações. Tornaram-se, assim, como Marçal, também, brutos e rudes. Sem elegância. Abandonando o politicamente correto, deixando cair todas as máscaras e indo ao corpo a corpo quase carnal. À flor da pele.

Fazendo assim, todos eles, Boulos, Datena, Nunes e Tabata, ganharam, sim, algum protagonismo. E, mais que isso, simbolicamente, aparentemente, conseguiram, em bloco, conter Marçal. Mas por um custo alto demais: o custo de suas almas.

Mercadejando as suas almas, descaracterizaram-se. E, por isso, tornaram-se, ainda mais, artificiais. E, como resultado, foram “marçalizados”. Ingeriram a cicuta de Marçal. Ficaram entorpecidos. Começaram a cambalear. Perderam o prumo e a direção. Virando Marçais em miniatura. Pois deixaram de ser quem são. E, com isso, correm o risco de ir a corner bem mais rápido. E, também, receber o nocaute. Eis o efeito Marçal.

Um efeito que já causou todo o estrago que poderia causar. Adentrando a corrente sanguínea de seus adversários e os lobotomizando. Desse modo, independentemente do que ocorrer daqui pra diante e independentemente de quem vencer a disputa pela prefeitura de São Paulo, o entorpecimento causado por Marçal vai ficar.

As razões de Marçal na parada não são pelos 20 segundos de meme.

Tudo é muito mais profundo. Quem sabe, monstruoso. E tem que ver com o fim da redemocratização. A democracia brasileira está na UTI. Sem a recomposição de pactos para revigorá-la, ela vai seguir agonizando. E, como resultado, as disputas eleitorais serão mais desesperadoras que a presente. Com candidatos sem alma nem coração. Feito zumbis. Marçal está dando o tom do que vem por aí. Quem ainda não capitou o código, que medite. Sem uma recomposição da redemocratização, o céu é o limite.

 

Fonte: Jornal GGN

 

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