Como sobreviver a abusos na infância?
Violentada sexualmente
dos 8 aos 11 anos pelo padrasto, contorcionista Georgia Bergamim narra
trajetória no documentário "Apesar de" e incentiva mais mulheres a
quebrarem o silêncio.
Para completar a
posição "queixinho", uma das mais difíceis da arte da contorção,
Georgia Bergamim precisou de quase quatro anos de treino. O movimento começa
com o corpo de bruços no solo; quadril e pernas se elevam até os pés chegarem à
frente do rosto. Os pulmões ficam extremamente pressionados sobre o chão, e o
pescoço sustenta todo o peso.
O domínio também é
mental. A habilidade de retorcer o corpo e formar poses que desafiam os limites
motores foi descoberta depois de anos de violência dentro de casa. Bergamim foi
estuprada dos oito aos onze anos pelo padrasto e a arte foi uma estratégia de
sobrevivência.
Aos 33 anos, ela
mantém a técnica do queixinho e treina futuros acrobatas. A força, concentração
e controle absoluto da respiração que o contorcionismo exige foram vitais para
que a alma de Bergamim estivesse em paz com o próprio corpo.
"Eu me senti
realizada quando finalmente consegui. Era um truque de contorcionista que era
meu principal foco e minha paixão. Senti também que meu corpo era maravilhoso e
que poderia fazer coisas incríveis", diz à DW.
A consciência corporal
ajudou Bergamim a entender as violações que sofreu e a dividir com o mundo sua
experiência. A história dela é detalhada no documentário Apesar de, que estreia
no fim de setembro no festival internacional de cinema CineFem, no Uruguai, e
no Bread and Roses, nos Estados Unidos, em outubro.
"No meu processo,
enquanto eu estava tentando ter até referências de outras pessoas que passaram
por isso, de outra sobrevivente, eu não encontrei muitas histórias. Por isso
decidi falar", diz a artista.
• "Todo mundo contra mim"
Aos nove anos de
idade, Bergamim se deu conta de que era vítima de estupro. Os abusos do
padrasto já tinham começado pelo menos um anos antes, mas a penetração de um
dedo foi como um marco da progressão da violência.
"Aquilo me deu
uma paralisada muito grande. Eu senti que algo foi violado, que tinha alguma
coisa errada. Porque tem as manipulações do próprio abusador, que quer te fazer
acreditar que tudo é normal", diz a acrobata sobre a infância.
Aos 11 anos, ela diz
que não suportava mais viver sob o mesmo teto que o padrasto. Em sua rotina de
abusos, ouvia que ele mataria sua mãe e irmã caso contasse a alguém sobre a
violência à qual era submetida. A irmã, oito anos mais nova, é filha do abusador,
que também bebia demais e agredia toda a família quando estava alcoolizado.
"Foi quando eu
tomei remédio, tentei me matar, e todo mundo ficou contra mim", relembra
Bergamim.
Depois dessa quase
morte, os estupros pararam, mas a violência doméstica continuou. O padrasto a
ameaçava dizendo que, quando ela crescesse, ficaria grávida dele.
Recortes dessa
infância foram capturados por uma câmera amadora do padrinho de Bergamim e
fazem parte do documentário. São vídeos que mostram festas de aniversário dela,
os presentes sobre a mesma cama onde sofria os abusos.
"Foi difícil me
ver criança. No vídeo, eu vi como eu era realmente. E aí eu vi uma diferença
dos sete para os dez anos no meu semblante. Eu tinha um olhar triste. Eu olhava
e pensava assim, 'nossa, eu sei mais do ninguém porque eu era assim'", diz
à DW.
• A tendência de proteger o abusador
A psicanalista Elisama
Santos, uma das especialistas em saúde mental ouvidas no documentário, diz que,
na maioria dos casos, as mulheres levam tempo até entenderem que são vítimas de
abuso. E quando isso acontece na infância e adolescência, o cenário é especialmente
mais complexo.
"Essa é uma fase
que a gente não consegue entender bem qual é o limite ultrapassado. A grande
maioria das mulheres que foi violentada não teve necessariamente a presença do
pênis", explica Santos à DW.
Dados recentes
compilados pela Fundação Abrinq mostram que a violência sexual afeta
principalmente crianças e adolescentes. Das 62.091 vítimas que registraram
queixa em 2022, mais de 45 mil tinham menos de 19 anos de idade – ou seja,
73,8%.
Quando as mulheres
finalmente conseguem dar nome ao abuso, elas encontram outra barreira: o
desmerecimento das pessoas próximas.
"A maior parte do
abuso acontece dentro de casa, por conhecidos da vítima. E ele não é conhecido
somente da vítima, mas é conhecido do pai, da mãe... Às vezes ele é pai, às
vezes ele é tio, é avô. E a família quer proteger [o abusador], tem vergonha de
lidar com aquilo", diz Santos.
É por isso que
inúmeras mulheres seguem tendo contato com o abusador depois que são
violentadas, como foi o caso de Bergamim. Para ficar longe do padrasto, ela
saiu de casa e mudou de cidade aos 19 anos depois de ser aceita numa escola de
circo. Mas a partida também teve uma face extremamente dolorida: o medo de
deixar a irmã caçula para trás.
"Quando eu me
mudei, ela tinha 10 anos. Até hoje eu me emociono porque essa parte foi muito,
muito difícil. Ao mesmo tempo que eu queria muito romper e ir buscar os meus
sonhos, eu sentia um misto de culpa, com preocupação”, relembra a artista.
Bergamim contou para a
mãe sobre os estupros anos mais tarde. O padrasto morreu em 2012.
• Uma vida refeita
A artista começou a
falar abertamente sobre seus traumas aos 23 anos. Foi quando buscou
acompanhamento profissional contínuo – até então, ela só havia mencionado que
fora abusada para uma amiga da adolescência, sem muitos detalhes.
"Para quem vive
isso hoje, eu diria que, embora seja muito, muito, muito difícil falar,
denunciar, sempre vai ter uma pessoa que vai te ouvir. É preciso achar essa
pessoa. Porque às vezes você se sente tão incompreendida, tão isolada, tão
sozinha e também tão sem esperança de que as pessoas vão acreditar em você que
a gente perde as forças", aconselha.
Essa figura-chave é o
que estudiosos da psicanálise chamam de testemunha esclarecida, diz Elisama
Santos. "Essa pessoa vai te ouvir, vai te olhar e falar: 'nossa, isso o que você sofreu realmente é
uma dor, não é uma impressão sua'. A maioria das mulheres abusadas nunca
encontrou uma testemunha esclarecida”, afirma a psicanalista.
Como a história da
contorcionista mostra, é possível superar e aprender a lidar com o passado de
abusos. "Com acompanhamento, cuidando da saúde mental, essa mulher pode
ser feliz e voltar a sorrir em naturalidade, se relacionar bem, namorar e ter
filhos, ter experiências incríveis. A grande questão é que não dá pra gente
acreditar que ela vai viver como se tudo isso não tivesse acontecido”, diz
Santos.
• A dor transformada em filme
Beatriz Prates,
diretora do documentário, ouviu a história de Bergamim pela primeira vez em
2021. Naquela época, enquanto grupos políticos no Brasil tentavam banir a
educação sexual nas escolas e propunham o homeschooling, Prates enxergou que o
testemunho detalhado da artista seria um alerta à sociedade.
"Abuso sexual
infantil é um tema sobre o qual se conversa pouco, que se sabe pouco. É um tema
difícil, mas urgente. A história da Geórgia mostra que o sistema inteiro em
volta dela falhou, mas inspira pelo fato de ela ter sobrevivido, ter feito uma carreira,
ter se tornado empreendedora", diz Prates.
A expectativa da
diretora é que o documentário abra conversas dentro de casa, jogue luz sobre
este assunto tão obscuro e ajude pais e vítimas a identificarem situações de
abuso.
"Quero que a
mensagem do filme seja corajosa, positiva. E que funcione como um lugar para
quebrar o silêncio. Porque eu sei que dali muitas pessoas vão ter coragem de
falar”, afirma Bergamim à DW.
• Como denunciar
Casos de violência
sexual e/ou doméstica contra mulheres podem ser denunciados através do Ligue
180. Trata-se de um serviço público, gratuito e confidencial de atendimento à
mulher 24 horas por dia, acessível de qualquer lugar. A ligação é gratuita.
É possível fazer a
ligação de qualquer lugar do Brasil ou acionar o canal via chat no Whatsapp
(61) 9610-0180. Em casos de emergência, deve ser acionada a Polícia Militar,
por meio do 190.
Outros casos podem ser
denunciados pelo Disque 100. O serviço é uma espécie de "pronto
socorro" dos direitos humanos e atende graves situações de violações que
acabaram de ocorrer ou que ainda estão em curso, acionando os órgãos
competentes e possibilitando o flagrante.
O Disque 100 funciona
diariamente, 24 horas, por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. As
ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem direta e
gratuita, de qualquer terminal telefônico fixo ou móvel, bastando discar 100.
Casos de violência e
abuso sexual infantil também podem e devem ser denunciados à polícia, em
qualquer delegacia ou delegacias especializadas, bem como aos conselhos
tutelares, Ministério Público e profissionais de saúde, que são obrigados a
notificar as autoridades quando houver suspeita de violência.
Fonte: DW Brasil
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