Caso Deolane Bezerra demonstra como bets
podem ser usadas para lavagem de dinheiro
A prisão da empresária
e influenciadora digital Deolane Bezerra em uma operação da Polícia Civil
contra uma organização criminosa suspeita de lavagem de dinheiro e prática de
jogos ilegais na internet chamou a atenção para como as bets podem
ser usadas para encobrir a origem de dinheiro ilegal.
Bezerra foi detida
nesta quarta-feira (5/9) em Recife como parte da operação
"Integration" da Polícia Civil de Pernambuco e de outros quatro
Estados.
De acordo com o
Ministério da Justiça e Segurança Pública, a quadrilha alvo movimentou cerca de
R$ 3 bilhões em quatro anos. Ao todo, foram expedidos 19 mandados de prisão e
outros 24, de busca e apreensão.
A polícia não detalhou
a ligação de Deolane e da mãe dela, Solange Bezerra, que também foi presa, com
o suposto esquema criminoso.
Sabe-se, porém, que
estão entre os alvos da investigação algumas empresas envolvidas em jogos na
internet. Uma delas é a plataforma de apostas online Esportes da Sorte, que
também atua como patrocinadora de alguns times de futebol, como Corinthians,
Athletico-PR, Bahia, Grêmio, Palmeiras, Ceará, Náutico e Santa Cruz.
Após a operação, a
casa de apostas Esportes da Sorte informou que "ratifica seu compromisso
com a verdade, com o jogo responsável e, principalmente, com o cumprimento de
todos os seus deveres legais".
"A nossa casa
está de portas abertas para apresentar documentos, esclarecer dúvidas e prestar
apoio irrestrito a qualquer ação investigatória. Atuamos sempre com muita
transparência e lamentamos o fato de, no momento, estarmos às escuras, sem
acesso aos autos do inquérito e aos motivos da ação policial. Seguimos à
disposição para todo tipo de esclarecimento que seja necessário para elucidar
qualquer controvérsia", diz a nota.
Já a defesa da
influenciadora Deolane Bezerra publicou uma nota nas redes sociais em que diz
que a investigação é sigilosa e que a divulgação de detalhes específicos do
processo "não só desrespeita o direito à privacidade da investigada, como
também pode configurar violação de segredo de Justiça, sujeitando os
responsáveis às devidas sanções legais".
"Ressaltamos que
a Dr. Deolane Bezerra tem plena confiança na Justiça e permanece à disposição
para colaborar com as autoridades competentes, de modo a esclarecer todos os
fatos.”
Segundo o portal JC,
em seu depoimento à polícia, Deolane confirmou que recebia dinheiro da casa de
apostas Esportes da Sorte por meio de contratos de publicidade. No entanto, a
influenciadora negou envolvimento em crimes de lavagem de dinheiro e ocultação
de bens.
Após a prisão, a
empresária também escreveu uma carta, que foi publicada em suas redes sociais,
em que afirma estar sofrendo "uma grande injustiça" e diz que ela e a
família são vítimas de preconceito.
“Os cassinos, jogos de
azar e jogos online são muito visados por criminosos desde sempre”, diz Ilana
Martins Luz, sócia do escritório Martins Luz & Falcão Sande Advogados
Associados e doutora em Direito Penal pela USP.
Segundo a advogada
criminalista, isso acontece por se tratar de um ambiente que opera muitas vezes
com baixa regulamentação, além de usar um formato em que a aleatoriedade e a
sorte falam muito alto, tornando mais possível a utilização de expediente fraudulentos.
·
Apostas e lavagem de
dinheiro
A lavagem de dinheiro
é o mecanismo por meio do qual se dá aparência de lícito ao dinheiro ilícito.
Na prática, acontece por meio da realização de transações para camuflar as
fontes criminosas e, posteriormente, da incorporação do valor no sistema formal
com aparência de licitude.
Esse processo costuma
ser usado para esconder a origem de valores obtidos por meio de atividades
criminosas, como tráfico de drogas, estelionato e corrupção.
Quando se utilizam das
bets para realizar a lavagem de dinheiro, os criminosos basicamente buscam
justificar a origem de seus ganhos ilícitos fazendo-os passar por valores
ganhos a partir apostas.
“O que se faz é
basicamente simular que aquele dinheiro foi ganho no jogo, quando na verdade
foi ganho em outro lugar”, explica Pierpaolo Cruz Bottini, professor de Direito
Penal da Faculdade de Direito da USP.
E com a legalização
das bets, realizada em 2018 por meio da sanção de uma medida provisória pela
então presidente Michel Temer, ficou possível justificar o ganho por esse meio,
diz o especialista.
Há diversas
estratégias utilizadas para isso, que podem variar conforme o mecanismo do jogo
e a atuação da casa.
Em alguns casos, por
exemplo, os criminosos realizam depósitos de origem ilícita - muitas vezes em
dinheiro em espécie ou criptomoedas - em contas em empresas de bet e sequer
investem o valor em apostas, transferindo posteriormente o montante para contas
bancárias.
Contas em nome de
intermediários, às vezes dezenas deles, também podem ser usadas dessa forma e
para esses fins.
“Chamamos essas
pessoas de ‘mula’ da lavagem de dinheiro”, explica Ana Carolina Carlos de
Oliveira, consultora anti-lavagem de dinheiro do BSL Group, nos EUA, e
pesquisadora do tema na Universidade Pompeu Fabra. de Barcelona. “Essas
transações podem passar desapercebidas pelos bancos, pois costumam ser de
valores menores.”
Nessas situações, as
transações entre os ‘mulas’ e o destinatário final do valor podem ser
justificadas como prestação de serviços de origem lícita, por exemplo, afirma
Oliveira.
Os criminosos também
podem usar os depósitos feitos nas contas de bet para realizar apostas
coordenadas, em que os ganhos de um apostador (que está agindo em conluio com
os outros) são usados para legitimar os fundos ilícitos.
Segundo Ana Carolina
Carlos de Oliveira, essas são operações que envolvem mais complexidade, mas
ainda assim podem acontecer, especialmente quando há jogos de azar envolvidos.
Outro mecanismo
utilizado, segundo Pierpaolo Cruz Bottini, envolve o próprio gestor da empresa
de bet. “Os criminosos podem criar um mecanismo de dissimulação em que eles
fingem que apostam e fingem que ganham”, diz.
Todas essas
estratégias, explicam os especialistas, são muito utilizadas em cassinos em
países onde essas casas de aposta são permitidas.
·
A regulamentação das
apostas esportivas
O Ministério da
Fazenda finaliza atualmente a regulamentação do mercado de apostas esportivas online, que apesar de legalizado em 2018 permanecia em uma
espécie de “vácuo legal”, segundo os especialistas.
A lei que estabeleceu
os limites para as bets foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) em janeiro deste ano e já está em vigor, mas as empresas têm anistia
para se adequar até 1º de janeiro de 2025.
A legislação cobre os
sites de apostas esportivas no Brasil, um mercado que vive um boom de
crescimento no país desde 2018, quando as páginas foram liberadas para operar
no país e logo passaram a patrocinar quase todos os principais times de
futebol, masculinos e femininos.
A regulamentação vai
permitir que o governo passe a taxar empresas e apostadores. Além disso, visa a
uma maior fiscalização sobre o setor, para coibir a atuação de sites ilegais e
a manipulação de resultados, assim como a estabelecer novas regras para propaganda
desses sites e ações de suporte para usuários contra o vício em jogo.
Diferente das apostas
esportivas, os chamados jogos de azar permanecem ilegais no Brasil.
No primeiro caso, o
apostador é capaz de acompanhar o resultado para saber se ganhou ou perdeu, por
exemplo, monitorando os eventos esportivos. Também é possível saber qual será o
lucro obtido em caso de resultado favorável, por isso esse tipo de aposta é
chamada de quota fixa.
Já os jogos de azar,
como por exemplo o que ficou popularmente conhecido como "jogo do
tigrinho", dependem de um algoritmo que é desconhecido pelos apostadores.
Outra forma de jogo de
azar bastante conhecida são as loterias. Essas são regulamentadas pelo artigo
1º do Decreto-Lei nº 204/1967, mas são consideradas um monopólio do Estado
brasileiro.
Ilana Martins Luz
afirma que, no Brasil, toda essa discussão ganhou novas proporções quando
passou a envolver propagandas realizadas por influenciadores.
“No Brasil os
influenciadores estão sendo muito utilizados para divulgar esse tipo de
plataforma de jogos - leais e ilegais”, diz. “Alguns ilegais porque não são de
quota fixa, outros porque se tratam de estelionato, ou seja, são jogos
programados para que o apostar sempre perca dinheiro no final.”
·
Certificação dos meios
de pagamento
Em uma audiência
pública sobre as apostas esportivas realizada na Comissão de Esporte (CEsp) do
Senado em outubro do ano passado, o advogado José Francisco Cimino Manssur,
então assessor do Ministério da Fazenda, também tratou da questão.
O uso para lavagem de
dinheiro é uma das “externalidades negativas” trazidas pelas apostas por quota
fixa, disse o especialista, que hoje não faz mais parte do ministério.
Para tentar evitar
tais operações, o Ministério da Fazenda tem investido na certificação dos meios
de pagamento usados nas apostas online pelo Banco Central. Em abril deste ano,
a Secretaria de Prêmios e Apostas da pasta publicou uma portaria com as regras
gerais para as transações.
Entre outras coisas, a
norma determina que o apostador poderá transferir recursos para a realização de
apostas por meio de PIX, TED, cartões de débito ou cartões pré-pagos, desde que
os recursos sejam provenientes da sua conta cadastrada na bet.
Não serão aceitos
aportes financeiros por meio de dinheiro em espécie, boletos de pagamento,
criptoativos ou qualquer outra forma alternativa de depósito que possa
dificultar a identificação da origem dos recursos.
A portaria também
determina que os recursos dos apostadores não poderão ser utilizados para
cobrir despesas operacionais de responsabilidade das bets ou ser dados em
garantia de dívidas dos agentes operadores, minimizando assim o risco de má
gestão dos recursos financeiros.
A secretaria ainda
iniciará um processo de monitoramento das empresas de apostas a partir de 1º de
janeiro de 2025, quando começa a funcionar o mercado regulado de abrangência
nacional. Esse trabalho incluirá, segundo o Ministério da Fazenda, inspeções por
meio de um sistema de processamento de dados e também visitas in loco às
empresas.
Para evitar a prática
de lavagem de dinheiro na Europa, por exemplo, apostadores que desejem sacar
valores acima de 2 mil euros em fichas precisam se identificar completamente,
explica Ana Carolina Carlos de Oliveira.
“O processo de
identificação é semelhante ao que existe quando se abre uma conta bancária”,
diz a pesquisadora. “Essa regra serve para tudo no continente: cassinos,
apostas onlines e até e-games.”
Mas os especialistas
afirmam que, mesmo com todas essas medidas, a lavagem de dinheiro ainda pode
acontecer.
“O que se faz é criar
travas e mecanismos para dificultar tornar mais caros e oneroso esse processo”,
afirma Pierpaolo Cruz Bottini. “Mas esse é um processo eterno, porque a
criatividade humana para lavar dinheiro é infindável. As autoridades precisam
estar sempre correndo atrás.”
Para Ilana Martins
Luz, “mesmos os bancos brasileiros que possuem os sistemas de compliance mais
sofisticados e antigos não conseguem impedir totalmente que a lavagem de
dinheiro aconteça”.
“Por isso é preciso
que esse mercado seja bem regulamentado”, diz.
“Só o tempo vai dizer
se vamos ingressar em um modelo de segurança jurídica a nível nacional”, opina
Cruz Bottini. “Mas tenho eu tenho esperanças de que isso acontecerá com o
tempo.”
·
A operação
A operação deflagrada
nesta quarta começou com uma investigação de lavagem de capitais, iniciada em
abril de 2023, a partir da apreensão de R$ 180 mil reais em espécie em 1º de
dezembro de 2022.
Foram movimentados, de
janeiro de 2019 a maio de 2023, mais de R$ 3 bilhões em contas correntes, em
aplicações financeiras e dinheiro em espécie, provenientes dos jogos ilegais.
Conforme o inquérito,
a organização criminosa usava várias empresas de eventos, publicidades, casas
de câmbio e seguros para lavagem de dinheiro realizada por meio de depósitos e
transações bancárias.
Segundo o Ministério
da Justiça e Segurança Pública, o dinheiro era lavado por meio de depósitos
fracionados em espécie, transações bancárias entre os investigados com o
imediato saque do montante, compra de veículos de luxo, aeronaves, embarcações,
joias, relógio de luxo, além da aquisição de centenas de imóveis.
Os investigadores
identificaram transações atípicas de pessoas físicas e jurídicas, que indicam
indícios de crimes financeiros, sem nenhum suporte para as transações
comerciais e financeiras feitas pelo grupo.
Além disso, a maioria
dos integrantes tem padrão de vida incompatível com a renda e bens declarados.
Fonte: BBC News Brasil
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