sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Capacitação de centros de transplante é uma das ferramentas para superar desafios de doação de órgãos no país

O Brasil é uma das referências mundiais no transplante de órgãos por possuir o maior programa público na área. Só em 2023, foram realizados 28.533 transplantes de todos os tipos, deixando o país atrás apenas dos Estados Unidos. Embora significativo, o número ainda é insuficiente diante da alta demanda do procedimento. Parte do desafio ocorre pela resistência familiar em autorizar a retirada dos órgãos: dados do Ministério da Saúde indicam que 42,4% das famílias entrevistadas após morte encefálica de um membro da família recusaram a doação. Outra dificuldade está relacionada à própria distribuição de centros de transplante pelo país.

Mas algumas iniciativas têm sido feitas para ultrapassar esses obstáculos. Este ano, por exemplo, foi lançada a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (Aedo), em uma parceria entre Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Justiça e o Colégio Notarial do Brasil. Com ela, qualquer pessoa pode acessar a plataforma, preencher um cadastro e formalizar a intenção de ser doador. Após o registro, um cartório entrará em contato para oficializar o pedido.

Além disso, entre fim de 2023 e meados deste ano, duas leis entraram em vigor. A primeira instituiu a Política Nacional de Conscientização e Incentivo à Doação e ao Transplante de Órgãos e Tecidos, com o objetivo de estimular as unidades federativas a promoverem campanhas de estímulo à doação em todo o país. A segunda alterou as regras para priorizar o transporte de órgãos por modal aéreo, inclusive cancelando a vaga de um passageiro se um voo estiver lotado.

Por fim, há ainda outras ações em andamento visando a capacitação dos centros de transplantes com o objetivo de reduzir a necessidade de transportes em função de disparidades regionais. “Apesar do Brasil ter o maior programa público de transplantes do mundo, existe uma heterogeneidade muito significativa entre as regiões do Brasil, tanto na atividade transplantadora, quanto na doação de órgãos”, explica José Eduardo Afonso Junior, pneumologista e coordenador do programa de transplantes de órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein.

•        Capacitação de centros de transplante

Por meio do Programa de Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), desde 2009, o Programa de Transplante é realizado em parceria com o Einstein para estruturar centros transplantadores e capacitar profissionais da saúde que atuam no processo de doação de órgãos. A organização também realiza os procedimentos, sendo que mais de 90% de todos os transplantes já realizados pelo Einstein foram em pacientes do SUS.

A expertise adquirida ganhou um capítulo novo em 2018 por meio de um projeto de tutoria para o estabelecimento de novos centros de transplante pelo país, que conta com um modelo híbrido de capacitação de equipes multidisciplinares. “São diversas modalidades de capacitação, desde treinar médicos no diagnóstico de morte encefálica e na retirada de órgãos, até orientar profissionais que atuam nas urgências e emergências para identificar possíveis doadores”, detalha Afonso Junior.

Em cinco anos de parceria, foram contemplados pelo projeto hospitais para o transplante de fígado no Pará, de pulmão no Rio de Janeiro e de rim no Mato Grosso do Sul e Sergipe. Os estados já realizaram 18 transplantes e ao todo mais de 2 mil profissionais entre médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas e nutricionistas já foram capacitados.

Afonso Junior explica que o projeto é desenhado sempre junto ao Ministério da Saúde, que faz a avaliação inicial de cada região e inclui informações como o tipo de órgão mais demandado por cada estado, por exemplo. Além disso, é feita também uma análise da capacidade do centro para receber a tutoria – o que leva em consideração não apenas o médico cirurgião como também a existência de uma equipe multidisciplinar, a infraestrutura e os equipamentos disponíveis para realizar um transplante com segurança para o paciente.

“O programa não se sustenta apenas com a presença do médico cirurgião”, afirma o especialista. “O centro de transplantes precisa ter uma equipe multiprofissional especializada e equipamentos necessários o procedimento”, diz. Nesse sentido, Afonso Junior afirma que o engajamento das secretarias de saúde locais, proporcionando a estrutura necessária para a realização desse tipo de cirurgia, é fundamental para manter o projeto funcionando.

Outro grande desafio são as dificuldades logísticas e financeiras que muitos profissionais enfrentam na hora de se especializarem. Ele conta que, apesar das aulas teóricas disponibilizadas online, há a necessidade de aulas presenciais, quando a equipe acompanha o procedimento cirúrgico. “Você não consegue ensinar um cirurgião em um ano a transplantar um órgão, então ele precisa ficar fora da cidade de residência por muito tempo treinando dentro do Einstein até poder retornar e fazer um transplante no seu hospital.”

A alternativa foi levar esses especialistas a cidades próximas apenas quando a cirurgia fosse, de fato, realizada. Isso foi feito, por exemplo, com especialistas do Rio de Janeiro que, pela proximidade com São Paulo, permitia que a equipe fosse para o estado apenas quando havia o aviso do transplante de pulmão – que acontece com menor frequência.

•        Sustentabilidade para o sistema de saúde

Além dos benefícios diretos para os pacientes transplantados, a iniciativa de desenvolver centros de transplantes em outras regiões do país, principalmente no Norte e no Centro-Oeste – regiões que menos realizam transplantes atualmente – também poupa recursos públicos. Isso porque, com a disponibilidade de centros mais próximos ao paciente, é possível que o tratamento seja realizado sem a necessidade de acomodação temporária em outras cidades.

Isso é importante pois, mesmo com o subsídio do Tratamento Fora do Domicílio (TFD), muitas vezes o tratamento do paciente costuma ser inviabilizado porque o único familiar habilitado para acompanhá-lo é também o responsável pela renda total da família. “Em uma família grande, é difícil a decisão de deixar de ganhar o sustento para todos para acompanhar o familiar adoecido. Muitos pacientes acabam falecendo antes de passarem por uma avaliação para o transplante e isso é muito triste. Mas nós podemos mudar isso”, acredita Afonso Junior.

Ele salienta que, com os novos centros, o recurso que seria destinado ao TFD pode ser direcionado ao tratamento de outras condições, otimizando o uso de recursos. “O estado que conta com um centro transplantador não precisa gastar com o deslocamento desse paciente. Ele pode converter esse recurso no cuidado com outras doenças, como diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e outras. É também uma questão de sustentabilidade do sistema.”

•        Nova etapa mira aprimoramento de centros já existentes

Os projetos do Proadi-SUS são trienais e o atual triênio se encerrou em 2023. Para o próximo, que vai de 2024 a 2026, o trabalho continuará a partir de um novo ponto de vista: o de aumentar a eficiência dos centros de transplantes já existentes.

Para o coordenador, é uma saída inteligente: “A ideia do Ministério da Saúde é, em parceria com o Einstein, entender por que o centro não está indo bem, seja na quantidade de transplantes esperada ou na sobrevida que não está adequada”.

Feito o diagnóstico, o próximo passo será a atuação local, com aplicação de modelos de melhoria contínua de processos (como Lean Six Sigma), com foco na redução de desperdícios e no aumento da eficiência. “Vamos avaliar as necessidades de cada centro, se necessário com outros modelos de análise, sempre visando uma melhoria de acordo com as possibilidades regionais de cada local”, conclui.

 

Fonte: Futuro da Saúde

 

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