Capacitação de centros de transplante é uma
das ferramentas para superar desafios de doação de órgãos no país
O Brasil é uma das
referências mundiais no transplante de órgãos por possuir o maior programa
público na área. Só em 2023, foram realizados 28.533 transplantes de todos os
tipos, deixando o país atrás apenas dos Estados Unidos. Embora significativo, o
número ainda é insuficiente diante da alta demanda do procedimento. Parte do
desafio ocorre pela resistência familiar em autorizar a retirada dos órgãos:
dados do Ministério da Saúde indicam que 42,4% das famílias entrevistadas após
morte encefálica de um membro da família recusaram a doação. Outra dificuldade
está relacionada à própria distribuição de centros de transplante pelo país.
Mas algumas
iniciativas têm sido feitas para ultrapassar esses obstáculos. Este ano, por
exemplo, foi lançada a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (Aedo), em
uma parceria entre Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Justiça e o
Colégio Notarial do Brasil. Com ela, qualquer pessoa pode acessar a plataforma,
preencher um cadastro e formalizar a intenção de ser doador. Após o registro,
um cartório entrará em contato para oficializar o pedido.
Além disso, entre fim
de 2023 e meados deste ano, duas leis entraram em vigor. A primeira instituiu a
Política Nacional de Conscientização e Incentivo à Doação e ao Transplante de
Órgãos e Tecidos, com o objetivo de estimular as unidades federativas a promoverem
campanhas de estímulo à doação em todo o país. A segunda alterou as regras para
priorizar o transporte de órgãos por modal aéreo, inclusive cancelando a vaga
de um passageiro se um voo estiver lotado.
Por fim, há ainda
outras ações em andamento visando a capacitação dos centros de transplantes com
o objetivo de reduzir a necessidade de transportes em função de disparidades
regionais. “Apesar do Brasil ter o maior programa público de transplantes do mundo,
existe uma heterogeneidade muito significativa entre as regiões do Brasil,
tanto na atividade transplantadora, quanto na doação de órgãos”, explica José
Eduardo Afonso Junior, pneumologista e coordenador do programa de transplantes
de órgãos do Hospital Israelita Albert Einstein.
• Capacitação de centros de transplante
Por meio do Programa
de Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), desde
2009, o Programa de Transplante é realizado em parceria com o Einstein para
estruturar centros transplantadores e capacitar profissionais da saúde que atuam
no processo de doação de órgãos. A organização também realiza os procedimentos,
sendo que mais de 90% de todos os transplantes já realizados pelo Einstein
foram em pacientes do SUS.
A expertise adquirida
ganhou um capítulo novo em 2018 por meio de um projeto de tutoria para o
estabelecimento de novos centros de transplante pelo país, que conta com um
modelo híbrido de capacitação de equipes multidisciplinares. “São diversas
modalidades de capacitação, desde treinar médicos no diagnóstico de morte
encefálica e na retirada de órgãos, até orientar profissionais que atuam nas
urgências e emergências para identificar possíveis doadores”, detalha Afonso
Junior.
Em cinco anos de
parceria, foram contemplados pelo projeto hospitais para o transplante de
fígado no Pará, de pulmão no Rio de Janeiro e de rim no Mato Grosso do Sul e
Sergipe. Os estados já realizaram 18 transplantes e ao todo mais de 2 mil
profissionais entre médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas e
nutricionistas já foram capacitados.
Afonso Junior explica
que o projeto é desenhado sempre junto ao Ministério da Saúde, que faz a
avaliação inicial de cada região e inclui informações como o tipo de órgão mais
demandado por cada estado, por exemplo. Além disso, é feita também uma análise da
capacidade do centro para receber a tutoria – o que leva em consideração não
apenas o médico cirurgião como também a existência de uma equipe
multidisciplinar, a infraestrutura e os equipamentos disponíveis para realizar
um transplante com segurança para o paciente.
“O programa não se
sustenta apenas com a presença do médico cirurgião”, afirma o especialista. “O
centro de transplantes precisa ter uma equipe multiprofissional especializada e
equipamentos necessários o procedimento”, diz. Nesse sentido, Afonso Junior afirma
que o engajamento das secretarias de saúde locais, proporcionando a estrutura
necessária para a realização desse tipo de cirurgia, é fundamental para manter
o projeto funcionando.
Outro grande desafio
são as dificuldades logísticas e financeiras que muitos profissionais enfrentam
na hora de se especializarem. Ele conta que, apesar das aulas teóricas
disponibilizadas online, há a necessidade de aulas presenciais, quando a equipe
acompanha o procedimento cirúrgico. “Você não consegue ensinar um cirurgião em
um ano a transplantar um órgão, então ele precisa ficar fora da cidade de
residência por muito tempo treinando dentro do Einstein até poder retornar e
fazer um transplante no seu hospital.”
A alternativa foi
levar esses especialistas a cidades próximas apenas quando a cirurgia fosse, de
fato, realizada. Isso foi feito, por exemplo, com especialistas do Rio de
Janeiro que, pela proximidade com São Paulo, permitia que a equipe fosse para o
estado apenas quando havia o aviso do transplante de pulmão – que acontece com
menor frequência.
• Sustentabilidade para o sistema de saúde
Além dos benefícios
diretos para os pacientes transplantados, a iniciativa de desenvolver centros
de transplantes em outras regiões do país, principalmente no Norte e no
Centro-Oeste – regiões que menos realizam transplantes atualmente – também
poupa recursos públicos. Isso porque, com a disponibilidade de centros mais
próximos ao paciente, é possível que o tratamento seja realizado sem a
necessidade de acomodação temporária em outras cidades.
Isso é importante
pois, mesmo com o subsídio do Tratamento Fora do Domicílio (TFD), muitas vezes
o tratamento do paciente costuma ser inviabilizado porque o único familiar
habilitado para acompanhá-lo é também o responsável pela renda total da
família. “Em uma família grande, é difícil a decisão de deixar de ganhar o
sustento para todos para acompanhar o familiar adoecido. Muitos pacientes
acabam falecendo antes de passarem por uma avaliação para o transplante e isso
é muito triste. Mas nós podemos mudar isso”, acredita Afonso Junior.
Ele salienta que, com
os novos centros, o recurso que seria destinado ao TFD pode ser direcionado ao
tratamento de outras condições, otimizando o uso de recursos. “O estado que
conta com um centro transplantador não precisa gastar com o deslocamento desse
paciente. Ele pode converter esse recurso no cuidado com outras doenças, como
diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e outras. É também uma questão
de sustentabilidade do sistema.”
• Nova etapa mira aprimoramento de centros
já existentes
Os projetos do
Proadi-SUS são trienais e o atual triênio se encerrou em 2023. Para o próximo,
que vai de 2024 a 2026, o trabalho continuará a partir de um novo ponto de
vista: o de aumentar a eficiência dos centros de transplantes já existentes.
Para o coordenador, é
uma saída inteligente: “A ideia do Ministério da Saúde é, em parceria com o
Einstein, entender por que o centro não está indo bem, seja na quantidade de
transplantes esperada ou na sobrevida que não está adequada”.
Feito o diagnóstico, o
próximo passo será a atuação local, com aplicação de modelos de melhoria
contínua de processos (como Lean Six Sigma), com foco na redução de
desperdícios e no aumento da eficiência. “Vamos avaliar as necessidades de cada
centro, se necessário com outros modelos de análise, sempre visando uma
melhoria de acordo com as possibilidades regionais de cada local”, conclui.
Fonte: Futuro da Saúde
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