Brasil sob o signo da morte: letalidade
policial é uma das maiores do planeta, afirma Marcos Rolim
Um dos aspectos
centrais da desigualdade brasileira, mas abordado de maneira pusilânime na
mídia hegemonizada, é a letalidade de nossas polícias. Embora o Brasil tenha
uma população menor que a dos Estados Unidos, nossas forças policiais são muito
mais letais, em dimensões inimagináveis para qualquer pessoa que não seja
brasileira. Só a Polícia de São Paulo, nos últimos 20 anos, matou mais que
todas as polícias dos Estados Unidos, são 11,3 mil vítimas aqui contra 7,3 mil
no país da América do Norte.
“Devemos lembrar que a
alta letalidade das polícias brasileiras é o resultado de vários fatores, entre
eles a ausência de políticas de segurança baseadas em evidência, a inexistência
de controle externo efetivo sobre a atividade policial no Brasil e a consequente
impunidade dos policiais envolvidos em execuções, tortura, abuso de autoridade
e outros crimes, o baixo nível de profissionalismo da atividade policial e o
apoio à violência policial consolidada como cultura entre os segmentos sociais
privilegiados”, explica Marcos Rolim, em entrevista por e-mail ao Instituto
Humanitas Unisinos – IHU.
Não obstante a
violência institucional a que nossa população é vítima, o tema de violência
sexual ganha outros contornos, tal como o apoio cultural e social à violência
policial, sob a proteção do guarda-chuva da ideologia conservadora. “O tabu em
torno da sexualidade e o desconhecimento de crianças e adolescentes a respeito
são estimulados pelas abordagens preconceituosas que, comumente, são oferecidas
por perspectivas religiosas dogmáticas”, pontua o entrevistado. “As pessoas
temem a figura do ‘estuprador’ que pode atacar nas ruas e sequestrar suas
vítimas, mas, embora esse tipo de criminoso exista, ocorrências do tipo são
muito raras quando comparadas ao número de estupros praticados por maridos,
namorados, pais, padrastos, parentes e vizinhos. As residências podem ser
espaços muito perigosos para as crianças e não apenas em barracos de única
peça”, acrescenta Rolim.
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Confira a entrevista.
• Um relatório do Unicef e do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública – FBSP apontou que a polícia matou mais de 15
mil jovens no Brasil em três anos. Esse dado é comparável ao número de crianças
palestinas mortas pelo exército de Israel em sua incursão na Faixa de Gaza. O
que isso significa?
Marcos Rolim – O dado
evidencia que as polícias brasileiras, com mais gravidade em alguns estados
como Bahia, Rio e São Paulo, estão entre as mais letais do mundo. Nossas
polícias matam muito mais que a soma de todas as polícias dos EUA, conhecidas
pelos seus altos índices de letalidade. Para termos uma ideia das dimensões do
problema, se tomarmos só as mortes por intervenção da PM de São Paulo em 20
anos, teremos 11.300 vítimas. No mesmo período, todas as polícias
estadunidenses mataram 7.300 pessoas.
Devemos lembrar que a
alta letalidade das polícias brasileiras é o resultado de vários fatores, entre
eles a ausência de políticas de segurança baseadas em evidência, a inexistência
de controle externo efetivo sobre a atividade policial no Brasil e a consequente
impunidade dos policiais envolvidos em execuções, tortura, abuso de autoridade
e outros crimes, o baixo nível de profissionalismo da atividade policial e o
apoio à violência policial consolidada como cultura entre os segmentos sociais
privilegiados.
Trata-se de um dos
mais graves problemas brasileiros que tem sido negligenciado pela chamada
opinião pública e, diante do qual, os governos, sejam de direita, sejam de
esquerda, têm se prostrado como se estivessem diante de uma paisagem.
Assinale-se que o modelo atual de policiamento no Brasil vitima também os
policiais expostos desnecessariamente à lógica do confronto, muitas vezes
desprovidos de equipamentos mínimos necessários à sua própria segurança e
submetidos a um tipo de hierarquia e disciplina que produz desrespeito e
estresse tóxico.
• Em termos estatísticos, são assassinados
18 meninos negros a cada 100 mil habitantes, ao passo que entre os jovens
brancos essa taxa é de 4 a cada 100 mil. Até que ponto essa dimensão racial
contribui para a invisibilização desta espécie de genocídio “à brasileira”?
Marcos Rolim – A
violência no Brasil é concentrada, atingindo com muita força os jovens
moradores de periferia que são pobres e, em sua grande maioria, negros. O
racismo e a desigualdade social se somam aqui em duas vertentes: de um lado, as
operações policiais em favelas ou em áreas marcadas pela exclusão social são
muito comumente violentas e abusivas porque essa é a forma que, historicamente,
o Estado brasileiro trata as pessoas pobres e negras. A mesma polícia que não
tem qualquer prurido em efetuar disparos de fuzil em áreas pobres densamente
povoadas e de atirar antes de perguntar não se porta da mesma maneira em áreas
privilegiadas socialmente. Pelo contrário, quando policiais abordam suspeitos
ricos e/ou poderosos, eles são invariavelmente respeitosos e mesmo cordiais.
Ao mesmo tempo, a
violência e os abusos praticados pelas polícias nas periferias não são fatos
noticiosos no Brasil. Excepcionalmente, quando uma cena brutal é filmada, há
algum interesse pelo fato, sem que a imprensa, magistrados, promotores,
parlamentares e governantes identifiquem nesses casos um padrão. Diante da
prova inegável de violência policial todos correm para sustentar que se trata
de um “caso isolado” e, então, também excepcionalmente, os responsáveis são
punidos. Nada, absolutamente nada, entretanto, se altera em termos de
protocolos de atuação, controle, formação profissional ou seleção de policiais.
Seguimos tocando nossas vidas como se estivéssemos em uma casa intocada pelo
horror que se prolonga ao nosso lado e de onde se ouvem apenas os gritos de
dor, para lembrar o argumento do filme “Zona de Interesse” que deveria integrar
o currículo básico de formação no serviço público brasileiro.
• O Brasil vive uma cruzada
fundamentalista religiosa em torno das condições legais de se realizar o
aborto. Isto ocorre em um contexto no qual, nos últimos três anos, o país
registrou 164.199 casos de estupro e estupro de vulnerável contra crianças e
adolescentes. Do ponto de vista da segurança pública, como enfrentar esse
cenário?
Marcos Rolim – É
preciso lembrar que esses números de violência sexual são decorrentes de
registros policiais, ou seja, eles não expressam as dimensões reais do problema
porque crimes sexuais possuem altíssimas taxas de subnotificação. Normalmente,
as vítimas ou os seus familiares não procuram a polícia para efetuar esse tipo
de registro.
Há muitas iniciativas
que são empregadas para se enfrentar problemas dessa natureza, mas quero
destacar duas delas: é preciso que as escolas brasileiras abordem, desde muito
cedo, de acordo com a idade de crianças e adolescentes, o tema da violência
sexual até para que as vítimas identifiquem riscos e saibam separar o que é um
gesto de carinho e de manifestação de amor, de um gesto abusivo com intenção
libidinosa.
O tabu em torno da
sexualidade e o desconhecimento de crianças e adolescentes a respeito são
estimulados pelas abordagens preconceituosas que, comumente, são oferecidas por
perspectivas religiosas dogmáticas. Nem todas as religiões são preconceituosas
quanto à sexualidade, mas a maioria delas é. Nas democracias mais avançadas, o
problema não é tão relevante quanto no Brasil, porque o princípio da laicidade
é algo muito estabelecido. Entre nós, entretanto, as convicções religiosas têm
sido influentes politicamente, em particular as denominações mais obscuras
neopentecostais, o que pressiona os gestores para que não haja educação sexual
nas escolas. Isso faz com que os docentes também não estejam capacitados para
identificar em sala de aula indícios de vitimização entre as crianças e
adolescentes, o que seria um mecanismo essencial de prevenção.
O outro ponto
importante a resolver é a melhoria do trabalho dos conselhos tutelares. Os
conselhos são órgãos públicos de uma esfera não estatal e são estruturas
essenciais para a proteção das crianças e adolescentes. O problema é que eles
têm atuado sem uma política de atenção baseada em evidências e em um quadro de
independência que se confundiu com a ausência de accountability. Assim, a
rigor, os conselhos não prestam contas de suas atividades e agem de forma
improvisada. Não dispomos nem sequer de protocolos específicos para a atuação
dos seus membros, o que, por óbvio, acarreta ineficiência. Uma providência, por
exemplo, seria um programa de monitoramento com visitas domiciliares a todos os
lares em que houvesse um histórico de violência contra a mulher, porque os
fatores de risco presentes na violência doméstica contra as mulheres são os
mesmos que aumentam as chances de violência doméstica contra crianças.
• Ainda sobre a violência sexual, 6 de
cada 10 casos de violência são cometidas em casa e 8 em cada 10 estupradores
são pessoas da família ou conhecidos. Como motes políticos do gênero “Deus,
pátria e família” acabam reforçando a estrutura social que dá suporte a esses
crimes?
Marcos Rolim – Crimes
sexuais são quase sempre praticados por familiares e conhecidos das vítimas. As
pessoas temem a figura do “estuprador” que pode atacar nas ruas e sequestrar
suas vítimas, mas, embora esse tipo de criminoso exista, ocorrências do tipo
são muito raras quando comparadas ao número de estupros praticados por maridos,
namorados, pais, padrastos, parentes e vizinhos. As residências podem ser
espaços muito perigosos para as crianças e não apenas em barracos de única
peça. Também entre famílias privilegiadas há muitos casos de violência sexual.
Algumas visões
religiosas alinhadas ideologicamente com a extrema-direita identificam a escola
como uma ameaça aos seus valores, o que inclui as universidades. Isso ocorre
porque é na escola que podemos introduzir as crianças no legado cultural e
científico da humanidade, o que irá lhes oferecer as condições para a reflexão
autônoma. Reflexão e crença são dimensões importantes da agência humana e podem
e devem conviver em um mundo plural e democrático, orientado pela tolerância,
mas a escola é um espaço de reprodução e produção de conhecimento, não de
crenças. Uma visão religiosa moderna pode compreender isso claramente,
aceitando o saber científico e reinterpretando os textos sagrados, mas grupos
fundamentalistas partem de outro princípio pelo qual a verdade foi anunciada
pelos textos sagrados e qualquer afirmação que contrarie a letra desses
documentos milenares é manifestação do pecado.
Por isso, os grupos
fundamentalistas gostariam de acabar com a obrigatoriedade de matricular seus
filhos na escola e apoiaram a proposta de homeschooling [escolarização
doméstica] defendida no governo Bolsonaro. Por sorte, essa proposta não
prosperou. Ela seria desastrosa para o Brasil e só ajudaria os abusadores de
crianças na medida em que retiraria as vítimas do único espaço onde os abusos
poderiam ser detectados, a escola.
• Apesar dos reiterados relatórios que
apontam a crescente violência e letalidade policial e do Estado, há a impressão
de que nada tem sido feito contra essas práticas. Enquanto sociedade civil, em
parceria com os poderes públicos, como podemos trabalhar pela reversão deste
quadro?
Marcos Rolim – O
primeiro passo é impedir a normalização dessas ocorrências. A imprensa pode
cumprir um papel muito importante neste sentido. Hoje, para valer, apenas
projetos independentes de jornalismo no Brasil dedicam uma real atenção à
violência policial.
Há algumas iniciativas
de colaboração entre as universidades e entidades comunitárias que podem
produzir bons resultados produzindo dados que não são divulgados, nem sequer
registrados ou sistematizados pelo Poder Público, a respeito de violências
cotidianas praticadas por policiais. O trabalho realizado pelo Grupo de Estudos
dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF) e do
Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Rio de Janeiro
(LAV-UERJ), assim como o trabalho do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania
(CESeC) da Universidade Cândido Mendes (UCAM), no Rio, e do Centro de Estudos
de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP) da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), são referências importantes que precisam se multiplicar. Não se
trata apenas da produção de conhecimento na área, o que já seria muito
importante, mas da articulação necessária entre os centros de pesquisa e as
comunidades periféricas, assegurando especialmente às juventudes da periferia
um protagonismo especial.
Na sociedade civil,
algumas instituições como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP),
formado por pesquisadores e policiais, e o Instituto Cidade Segura (ICS), aqui
do RS, que tem auxiliado estados e municípios na construção de políticas de
segurança com base em evidências, mostram que há um espaço importante para o
aperfeiçoamento de políticas públicas e também para uma maior interação com as
polícias. Seguimos dependendo, entretanto, da seriedade, da inteligência e da
coragem dos gestores públicos e esses produtos, infelizmente, são raros no
mercado político.
• Programas policialescos abundam na
televisão. Nas redes sociais, páginas e perfis dedicados a publicizar conteúdos
de violência policial (via de regra em favor de uma cultura belicista) têm
grande audiência. Isto posto, qual o papel da mídia na “naturalização”
violência? Como a morte das populações marginalizadas se tornou midiaticamente
lucrativa? Quais os efeitos sociais disso?
Marcos Rolim – A
sociedade brasileira adoeceu e esse processo tem muito a ver com o modelo
clandestino desenvolvido pelas chamadas “big techs” (Google, Apple, Amazon,
Microsoft e Meta) de gestão das redes sociais por algoritmos que oferecem
conteúdos cada vez mais radicalizados aos usuários de modo a capturar o maior
tempo possível sua atenção. A ausência de moderação efetiva propicia a
disseminação invisível de um discurso de ódio; de conteúdos racistas,
supremacistas, misóginos e homofóbicos, além de uma avassaladora carga de
desinformação que transita em “bolhas” na internet, que funcionam como “câmaras
de eco”.
Nesses espaços não há
debate algum, e a figura do contraditório é desconhecida. O resultado é a
produção de um mundo paralelo, frequentemente sem nenhuma conexão com o mundo
real, mas que produz efeitos extraordinários sobre o mundo real, inclusive o de
projetar como lideranças políticas um número expressivo de cretinos e de
bandidos perigosos. Esse fenômeno pressiona os órgãos de comunicação social
(emissoras de rádio e TV) que perdem audiência para as redes, o que significa
redução de verbas publicitárias. O apelo ao bizarro, à escatologia, ao
sobrenatural e à violência é a resposta comercial oferecida, o que, entretanto,
no caso das emissoras de rádio e TV, que são concessões públicas, contraria
frontalmente a missão constitucional desses órgãos, notadamente o disposto no
artigo 221 que assinala:
“A produção e a
programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes
princípios:
I ‐ preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II ‐ promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção
independente que objetive sua divulgação;
III ‐ regionalização da produção
cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos
em lei;
IV ‐ respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
Os efeitos sociais dos
programas policialescos do tipo “mundo cão” é o estímulo ao medo e ao ódio já
disseminados socialmente, o que contribui para o descrédito das instituições, a
começar pelo Poder Judiciário, e alimenta a ânsia por mais violência, incluindo
o linchamento de suspeitos.
• Como vê o orçamento secreto e como ele
contraria dois princípios constitucionais importantes, o da impessoalidade e o
da publicização da administração pública?
Marcos Rolim – O
Brasil se acostumou com o instituto das chamadas “emendas parlamentares” ao
orçamento, sem se dar conta de que “emenda” é a possibilidade de um parlamentar
propor alguma alteração nos projetos de leis orçamentárias. Assim, uma emenda
ao orçamento que indique mais recursos para uma área ou um programa deve
indicar a origem desses recursos. O que se convencionou chamar de emendas
parlamentares é coisa muito diversa. Trata-se, na verdade, de um processo
antirrepublicano, em que recursos orçamentários são reservados para destinação
parlamentar, sem nenhum compromisso com as leis orçamentárias, o que, além da
irracionalidade pressuposta, assinala clara ofensa ao princípio da
impessoalidade na administração pública.
Esse mecanismo foi
sempre usado para garantir a “fidelidade” da base de apoio dos governos. Ou
seja, é uma jabuticaba criada para atender aos interesses fisiológicos daqueles
que só votam com o governo se tiverem algum benefício eleitoral assegurado. Não
encontro outra palavra na língua portuguesa para essa prática que não seja
corrupção, no caso corrupção institucionalizada e normalizada. Nada que seja
ruim está impedido de piorar, entretanto, o que ocorreu é que, diante de
governos fragilizados como o foram os governos de Dilma e Bolsonaro, admitiu-se
a aprovação da ideia de que as emendas parlamentares seriam impositivas – o que
daria ao Congresso o poder de dispor de bilhões de reais para o clientelismo,
agora sem a obrigação de apoiar os projetos do Executivo.
No governo Bolsonaro,
para que ele fosse blindado diante da possibilidade do impeachment, ele
negociou com o Congresso o aprofundamento dessa vergonha, admitindo a
destinação de recursos em emendas do relator que eram solicitadas por centenas
de parlamentares cuja identidade não seria divulgada. Muitos desses recursos
foram solicitados por parlamentares inclusive para obras ou programas em
estados diversos dos seus, o que sugere a existência de outros mecanismos
“atraentes”, digamos assim. No dia que esse tapete for levantado, saberemos as
razões efetivas dessas mudanças. O fato é que, hoje, o modelo político
brasileiro namora perigosamente com a ingovernabilidade construída com esmero
pelas organizações mafiosas que transitam no espaço público.
Fonte: IHU
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