quinta-feira, 5 de setembro de 2024

A nova voracidade das multinacionais agroquímicas

Nos últimos tempos, grandes empresas agroquímicas internacionais vêm se redirecionando para a produção de insumos biológicos para o agronegócio. Enquanto há apenas 20 anos o número de empresas ativas no mercado global de inseticidas “bio” podia ser contado nos dedos de uma mão, hoje existem mais de 1.200. Mais do que uma conversão ecológica, tudo indica que é a descoberta de um novo e substancial filão para expandir seus lucros já multimilionários.

A ONG internacional Grain (Grano), com sede em Barcelona, em um estudo publicado na segunda quinzena de agosto, confirma que todas as grandes corporações de agroquímicos -como Bayer, BASF, Corteva, FMC, The Mosaic Group, Syngenta, UPL e Yara, entre outras- já operam nessa área. Sob o nome de Bioinsumos Corporativos: O Novo Negócio Tóxico do Agronegócio, o estudo afirma que essa “penetração nesse mercado se dá de maneira agressiva devido à sua forma típica de proceder, por meio de compras, contratos de licenciamento e fusões”.

A história do setor agroquímico nas últimas décadas é repleta de paradoxos. Até o final da década de 90, a Monsanto (que desde 2018 pertence à empresa alemã Bayer) produzia e vendia, exclusivamente, defensivos químicos destinados a combater drasticamente pragas em grandes áreas de monoculturas, com impactos desastrosos para os seres humanos e para o meio ambiente. Agora, visa controlar o mercado global de inseticidas do tipo “bio”. Durante todo esse tempo, foi, principalmente, o campesinato que utilizou agrotóxicos não químicos, como os feitos a partir do microrganismo Bacillus thuringiensis (Bt), de impacto mais lento e adequado a unidades produtivas menores.

<><> O oportunismo como base de lucro

De acordo com o relatório Bioinsumos. Oportunidades de investimento na América Latina, publicado em 2023 pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), o mercado global de insumos biológicos atingiu 10,6 bilhões de dólares em 2021, enquanto o de insumos agroquímicos atingiu 245 bilhões. Até 2026, o setor de bioinsumos deverá responder por cerca de US$ 18,5 bilhões, quase o dobro da taxa de cinco anos antes, como resultado de um crescimento acelerado de proporções devido à voracidade transnacional.

Grain argumenta que grande parte do mercado global de bioinsumos já está nas mãos das principais multinacionais de agrotóxicos. Em 2022, a Bayer comercializou insumos de tipo bio no valor de 214 milhões de dólares e projeta 1,6 bilhões em 2035. Em 2023, as vendas da empresa estadunidense Corteva atingiram 420 milhões de dólares, e as do grupo Syngenta, com sede na Suíça, 400 milhões. Essas corporações, assim como o resto de suas concorrentes, estão interessadas em biopesticidas porque são os produtos que mais vendem: cerca de metade do mercado global de bioinsumos. A outra metade inclui biofertilizantes para nutrir as culturas e bioestimulantes para aumentar sua capacidade de absorver nutrientes. Para garantir esse crescimento acelerado, as grandes empresas têm concentrado seu interesse em apenas alguns produtos, aqueles que contêm o microrganismo Bt: 90% do mercado global de biopesticidas.

Em termos de impacto regional, o maior mercado de insumos de base biológica está localizado nos Estados Unidos e no Canadá, seguidos pela Ásia-Pacífico, Europa e América Latina. Um caso emblemático é o do Brasil, um dos mercados em mais rápida expansão e, portanto, um importante alvo para as transnacionais agroquímicas. Em junho de 2024, o Brasil registrou a venda de 1.273 insumos bioagrícolas: metade biopesticidas, metade biofertilizantes. Em sua maioria, destinados às principais monoculturas, como soja, milho e trigo, 82% desses insumos foram produzidos por empresas estrangeiras. De acordo com o Ministério da Agricultura do Brasil, atualmente, os biofertilizantes são usados em quase 40 milhões de hectares e os biopesticidas em 10 milhões de hectares. A área cultivável atual nesse país sul-americano é de quase 79 milhões de hectares.

O estudo da FAO destaca a magnitude do uso de agrotóxicos na América Latina. “Embora a produção agrícola global seja sustentada por um uso intensivo de agroquímicos”, afirma, “de acordo com dados de 2019, pelo menos nove países latino-americanos dobram ou triplicam o número de quilos de pesticidas por hectare usados por países como os Estados Unidos e o Canadá”. E ressalta que o aumento das temperaturas -como resultado das mudanças climáticas-, acelera a forma como as pragas se reproduzem, colocando maior pressão sobre os sistemas de produção da região. Dados que reforçam a importância atribuída à América Latina pelas empresas produtoras de insumos agroquímicos tradicionais e dos novos bioinsumos. E o duplo papel que desempenham: por um lado, promover a produção em larga escala e o agronegócio (ou agronegócio para exportação) e, por outro, contribuir para o aquecimento global e para a crise climática.

<><> Agroquímicas e seu poder arrasador

A corrida das grandes corporações agroquímicas no desenvolvimento e na promoção de bioinsumos anda de mãos dadas com impressionantes avanços tecnológicos e científicos, como a capacidade de editar geneticamente, com a biologia sintética e a ciência de dados, que facilitam a identificação de microrganismos para a formulação de novos bioprodutos. Além disso, os avanços tecnológicos permitem que eles garantam o controle do monopólio por meio de patentes. De acordo com Grain, essas corporações estão apostando em trazer esses produtos geneticamente modificados ao mercado sem ter que enfrentar obstáculos regulatórios.

Uma patente é um título de propriedade industrial através do qual o direito exclusivo sobre uma invenção é reconhecido. Impede que outros façam, vendam ou usem tal invenção sem o consentimento de seu proprietário. Entre 2000 e 2023, foram registrados mais de 44 mil pedidos de reconhecimento oficial de patentes de bioinsumos em todo o mundo.

Diante dessa avalanche de multinacionais que tentam penetrar e se impor no mercado de insumos biológicos a qualquer preço, a reação dos pequenos e médios produtores agrícolas é insignificante. Segundo Grain, esse processo em curso “pode provocar uma nova onda de privatização dos modos de vida” que até agora têm sido reservados às comunidades camponesas e aos seus conhecimentos ancestrais. As patentes de processos e sequências genéticas de microrganismos criarão um mercado de bioinsumos dominado pelas corporações, dando-lhes direitos de monopólio. Isso significa, diz Grain, que aqueles que desejam usar produtos com certos componentes ou processos patenteados “devem obter autorização ou pagar pelo direito de uso”. Como a Via Campesina e a Grain alertaram em 2015 em seu documento conjunto sobre A Criminalização das Sementes Camponesas: Resistência e Lutas, em caso de descumprimento dos mecanismos estabelecidos pelo direito internacional de patentes, o campesinato pode receber multas onerosas e até sentenças de prisão.

<><> Novo paradigma agrário

Essa é uma questão de relevância global com um impacto significativo, particularmente para a América Latina e o Caribe, que continua sendo fundamental para a segurança alimentar e a preservação da biodiversidade no mundo; uma região que produz alimentos para cerca de 1,3 bilhões de pessoas (mais que o dobro de sua população), reúne 50% da biodiversidade do planeta e abriga seis dos países mais biodiversos do planeta: Brasil, Colômbia, Equador, México, Peru e República Bolivariana da Venezuela. E, ao mesmo tempo, possui o maior número de espécies de alimentos silvestres ameaçadas, além de 200 milhões de hectares de terras já degradadas.

As grandes empresas do agronegócio fazem parte das principais responsáveis pela crise climática e por muitos outros problemas globais. Para Grain, “a solução não é apenas reduzir os pesticidas e os fertilizantes químicos”, porque ambos são componentes inevitáveis do modelo de agricultura industrial inserido em um sistema alimentar global injusto e predatório, controlado por algumas corporações multinacionais. A solução vem da definição de um novo paradigma de produção e distribuição agrícola.

Nesse quadro, como, há décadas, os movimentos sociais do campo vêm propondo o grande desafio que consiste em realizar uma transição para a agroecologia baseada no conhecimento, nos saberes camponeses, na inovação coletiva e na soberania alimentar, descartando soluções tecnológicas caras e com patentes corporativas que apenas perpetuam a agricultura industrial e suas consequências devastadoras. É, simplesmente, uma questão de realocar o cursor social, colocando a saúde de cada ser vivo e da Mãe Terra no centro.

 

•        Campeão no uso de agrotóxicos, Mato Grosso tem municípios agrícolas com maior risco de mortes fetais e anomalias em bebês

Uma criança em Lucas do Rio Verde, município da região central de Mato Grosso, tem um risco 20% maior de nascer com anomalias congênitas — alterações estruturais ou funcionais que ocorrem durante o desenvolvimento fetal — do que uma criança nascida em Juruena, 670 quilômetros distante em direção noroeste, no mesmo estado.

Esse risco também se eleva para mortes fetais. Mulheres que vivem em Lucas do Rio Verde têm até 30% mais chances de perder o bebê após a 28ª semana de gestação do que as moradoras de Juruena.

A explicação está conectada à ocupação do território dessas duas cidades: enquanto Lucas do Rio Verde tem mais de 50% de sua área coberta por lavouras, Juruena tem menos de 5%. Essa configuração impacta a saúde da população porque eleva o risco dessas duas condições graves, segundo uma análise da InfoAmazonia em parceria com Tatiane Moraes, pós-doutoranda da Universidade de São Paulo (USP).

Moraes, que atua na área de saúde ambiental e também integra o Observatório Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), primeiramente analisou todos os estados brasileiros para identificar os maiores produtores de commodities do país. O critério adotado foi selecionar aqueles com mais da metade dos municípios com ao menos 5% de sua área dedicada à agricultura. São eles: Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Em seguida, foi verificada a existência de uma associação entre anomalias congênitas e mortes fetais e o tamanho da área agrícola nos municípios desses estados.

Mato Grosso foi o que apresentou o maior risco de anomalias e mortes fetais entre todos os analisados. Já São Paulo e Paraná não apresentaram associação entre o aumento da área agrícola e um maior risco dessas condições.

No caso das anomalias, o estado da Amazônia Legal apresenta uma chance 20% maior em municípios com pelo menos 5% de lavouras em comparação àqueles que não alcançam esse percentual. Cerca de 60% do estado, isto é, 85 municípios, têm mais de 5% do seu território dedicado à agricultura.

Nos municípios mais agrícolas de Mato Grosso do Sul, por exemplo, o risco aumenta em 12%; em Goiás, em 4%. Na Região Sul, tanto o Rio Grande do Sul quanto Santa Catarina registraram um aumento no risco de anomalias, variando entre 2% e 4% em municípios com pelo menos 30% da área plantada.

Uso de agrotóxicos e a saúde

Os mesmos estados também estão entre os que mais comercializam agrotóxicos no país, segundo dados do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Mato Grosso também está no topo desse ranking, enquanto Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul estão entre os dez primeiros colocados.

O glifosato, o mais utilizado no país, e outros produtos, como o 2,4-D, a atrazina, o mancozebe, o clorotalonil e o acefato são fatores de risco ambiental para uma série de doenças, como as anomalias e as mortes fetais. Exceto o glifosato e o 2,4-D – um dos componentes do agente laranja, usado como arma de guerra –, os demais são proibidos na União Europeia.

Para chegar aos resultados, Moraes observou o avanço das áreas agrícolas entre 2013 e 2021, com dados extraídos da plataforma MapBiomas. Em seguida, analisou os registros do sistema nacional de saúde do DATASUS no mesmo período e verificou se havia aumento na taxa de anomalias congênitas e mortes fetais, condições já associadas à exposição a agrotóxicos. O objetivo era comparar os dados de saúde de municípios com mais de 5%, 30% e 50% da área dedicada a plantações de grãos com outros sem lavouras.

“Mensuramos o risco de viver em um município agrícola com foco na saúde das crianças”, disse Tatiane Moraes, que foi bolsista do Departamento de Saúde Global e População da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. “Os resultados reforçam a necessidade de reavaliar o uso massivo de agrotóxicos na agricultura brasileira”, disse.

Em 2011, quando Lucas do Rio Verde tinha metade da população atual, mas já despontava como um dos polos do agronegócio, uma pesquisa realizada na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) já havia identificado a presença de agrotóxicos em amostras de leite materno de 62 mulheres. Em todas, havia algum resíduo de pesticida; em outras, até seis tipos de agrotóxicos. O estudo foi orientado por Wanderlei Pignati, líder de um grupo de pesquisadores da universidade que há décadas se dedica a avaliar os diferentes impactos do agronegócio na saúde coletiva.

De lá para cá, o setor agrícola em Lucas do Rio Verde só cresceu. Sua localização às margens da BR-163, a principal via de escoamento das commodities até os portos do Pará ou do Rio Grande do Sul, selou seu destino. O município abriu seu território para as produções de milho, soja, arroz, algodão, que hoje ocupam mais de 120 mil hectares. A população quase dobrou na última década.

Sinop, conhecida como a Capital do Nortão, expressão cunhada por ser referência a outros 30 municípios da região, e Colíder, ambas situadas no trajeto da BR-163 em direção ao norte, também seguem o mesmo caminho: destinam 30% a 50% do seu território a lavouras, respectivamente. Mato Grosso deve plantar na safra 2024-2025 mais de 12,6 milhões de hectares só de soja, uma área superior a do território de Portugal.

<><> Juruena e Lucas, paisagens distintas

A paisagem de Juruena, um município com pouco mais de 10 mil habitantes, é oposta à de Lucas do Rio Verde. Em vez de uma rodovia, está situada à beira do rio homônimo, uma das nascentes do rio Tapajós. As áreas protegidas da floresta amazônica, que dominam a região noroeste do estado, ofereceram mais resistência ao avanço agrícola. A conversão do solo para a agricultura em Juruena não alcança 5%.

Ali a presença de terras indígenas e unidades de conservação serviu como um freio ante o desmatamento, que começou em Mato Grosso por Cuiabá em direção ao norte. “A ocupação da região noroeste de Mato Grosso é bem mais recente, data do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, incentivada pela ditadura”, explica o biólogo Eduardo Darvin, coordenador do programa de Economias Sociais do Instituto Centro de Vida (ICV). “Como toda a ocupação na Amazônia, ocorreu de forma desordenada, incentivando o desmatamento e teve vários ciclos, entre eles o da madeira e o do garimpo”, detalha.

Nos últimos anos, as áreas de pecuária estão sendo substituídas pela plantação da soja. Com a commodity, veio toda uma cadeia que antes não existia, como máquinas agrícolas e aviões usados na pulverização aérea de pesticidas. “Está ocorrendo muito arrendamento e concentração de terras para expansão das lavouras, uma mudança na economia regional que começa a trazer desemprego e agrotóxicos”, preocupa-se Darvin.

A pulverização aérea de agrotóxicos já chegou a abalar a rede de produtores agroecológicos coordenada pelo ICV na região. “Alguns agricultores perderam toda a produção e tiveram problemas de saúde”, disse. “Outros não conseguem ingressar na rede porque estão cercados de lavouras que usam esses produtos”. O projeto do ICV foi criado para fortalecer a agricultura familiar e fazer frente ao avanço do desmatamento da região norte e noroeste, ocasionado primeiro pela pecuária e, agora, pela soja.

<><> Efeito sobre as crianças

Embora as pesquisas científicas apontem uma relação entre os agrotóxicos e o desenvolvimento de doenças, ainda é um desafio quantificar a exata influência dos pesticidas. “Mas o fato de ser complexo não significa que não haja impacto, isto é, que os riscos não existam”, disse a geneticista Lavinia Schuler-Faccini, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Eles (os riscos) existem e estão sendo cada vez mais demonstrados por estudos ecológicos, que comparam populações diretamente expostas com as não expostas, por pesquisas em animais e com células in vitro”.

Uma das maiores autoridades em anomalias congênitas, Schuler-Faccini lidera um serviço de vigilância no sul do Brasil, outra região agrícola importante. O grupo trabalha para identificar as causas evitáveis de defeitos físicos e neurológicos em bebês – e os pesticidas, é claro, entram na mira. Alguns deles funcionam como desreguladores endócrinos, resultando em problemas de fertilidade; outros modificam a expressão de genes, um efeito que vem sendo estudado pela epigenética.

“A presença do pesticida no organismo, até mesmo em pequenas doses, pode alterar o funcionamento das sinalizações produzidas por genes. Desligam a expressão de determinado gene, ou o acende de modo fraco, ou muito forte. É um efeito a longo prazo, que ocorre muito antes de uma gestação”, explica.

Orientando de doutorado de Schuler-Faccini, o bioquímico Ricardo Rohweder assina um estudo de revisão que avaliou 80 pesquisas observacionais realizadas em 13 países da América Latina e do Caribe sobre os efeitos da exposição pré-natal a pesticidas na saúde de gestantes e seus filhos. Publicada no Journal Health and Pollution, a pesquisa identificou uma associação dos agrotóxicos a uma série de efeitos adversos à saúde dos bebês. “Além de anomalia congênita, encontramos outros desfechos obstétricos, como prematuridade, perda gestacional, baixo peso, leucemia infantil, alergias e problemas de neurodesenvolvimento”, detalhou. Chamou a atenção de Rohweder a pouca quantidade de estudos sobre o glifosato, o mais usado no Brasil e no mundo.

Uma das pesquisadoras do Núcleo de Estudos Ambientais e em Saúde do Trabalhador (Neast), coordenado por Pignati, da UFMT, a enfermeira Mariana Soares também identificou uma associação entre a exposição parental aos agrotóxicos e risco de câncer em crianças e adolescentes no mundo.

O estudo de revisão mostrou que herbicidas, como o glifosato, e os inseticidas organofosforados foram os mais relacionados com o câncer infanto-juvenil, especialmente a leucemia infantil. “Estamos cada vez mais demonstrando quais são os fatores que adoecem as pessoas em uma região onde o agronegócio domina”, explicou Soares.

<><> Agrotóxicos e a chegada da soja

No Brasil, os agrotóxicos foram introduzidos com a soja transgênica na década de 1990, e o seu uso só aumentou à medida que essa commodity ganhou espaço. Atualmente, a soja domina a produção agrícola brasileira, atingindo 154,6 milhões de toneladas na safra 2022/23, quase toda geneticamente modificada. Enquanto isso, o Brasil aplicou um recorde de 800,6 mil toneladas de agrotóxicos em 2022, quantidade maior do que em qualquer outro país no mundo.

A tendência é que o uso desses produtos químicos aumente, já que o caminho para os agrotóxicos está cada vez mais livre. Em 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reavaliou o glifosato e considerou não haver evidências científicas que o produto da Monsanto cause danos à saúde humana que tornem proibitivo seu uso.

Em maio deste ano, o pacote de leis chamado PL do Veneno afrouxou ainda mais o controle de novos agrotóxicos no país, apesar de duras críticas da comunidade científica. Entidades e partidos políticos da oposição protocolaram no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação direta de inconstitucionalidade para derrubar a lei, em parte porque viola os direitos das crianças e adolescentes.

Para Larissa Bombardi, autora do livro “Colonialismo e Agrotóxicos” publicado em 2023, um dos principais argumentos que impulsiona os agrotóxicos é o fato que eles aumentam a produção de comida, o que ajuda a acabar com a fome. A pesquisadora do Departamento de Geografia da USP explica, no entanto, que esse raciocínio não funciona, já que as culturas que mais crescem no país não servem para a alimentação, como a soja.

Segundo Bombardi, o debate dos agrotóxicos tem de ocorrer sob outra perspectiva.“Temos que pensar se queremos produzir commodities sem limites ou se queremos preservar nossa biodiversidade e a qualidade da água,” afirma a pesquisadora. “Será que produzir mais é importante para o conjunto da sociedade brasileira?”.

Antes mesmo do PL do Veneno, a legislação já permitia níveis muito elevados de resíduos de agrotóxicos em água potável. A União Europeia aceita, para a maioria dos agrotóxicos comercializados, o valor máximo de 0,1 de microgramas por litro (μg/L). Considerando os produtos mais vendidos no Brasil, o valor tolerado por aqui é 20 vezes maior para a atrazina, 300 vezes maior para o clorpirifós e 2,4-D, 900 vezes maior para o Diuron, 1.800 vezes maior para o mancozebe, e para o acefato sequer existe um limite.

O glifosato, agrotóxico mais vendido do Brasil e no mundo, tem o valor limite de 500 μg/L no Brasil, o que representa 5.000 vezes mais do que os países europeus. O limite nos Estados Unidos é maior: aproximadamente 700 μg/L.

“Temos dois problemas: os limites tolerados da nossa legislação estão desatualizados, e não temos estudos sobre as misturas de agrotóxicos”, disse a farmacêutica Solange Garcia, professora da UFRGS especializada em toxicologia. “Não estamos expostos a uma única substância naquela concentração determinada. Isso não existe.”

Garcia chamou atenção para outro aspecto pouco falado: agrotóxicos contêm metais pesados. “Ninguém fala sobre isso”, observou. O mancozebe, por exemplo, o segundo agrotóxico mais usado no Mato Grosso, conforme dados do Ibama, tem manganês na composição.

Uma pesquisa orientada por Garcia descobriu doses elevadas de manganês no sangue de crianças em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul – os estudantes desenvolveram alterações endócrinas e cognitivas em função da contaminação. “Os metais se acumulam no organismo, na planta, no solo. É muito grave”.

No exterior, o glifosato e outros produtos considerados perigosos também seguem sem grandes restrições. No ano passado, a Comissão Europeia autorizou o uso do herbicida por mais 10 anos, apesar de permitir que cada país-membro possa controlar o uso por conta própria.

Nas cortes norte-americanas, porém, a Monsanto-Bayer, fabricante do Roundup, marca que tem o glifosato como principal ativo, tem contabilizado derrotas. Vítimas de câncer têm conseguido provar na Justiça a associação entre as suas doenças e a exposição ao produto.

Até agora, 154 mil ações judiciais já chegaram às cortes americanas, e a multinacional pagou cerca de US$ 11 bilhões de dólares (62 bilhões de reais) em indenizações para as vítimas. Como resultado da ofensiva judicial, a Bayer também retirou glifosato dos produtos para uso residencial nos Estados Unidos, incluindo grama caseira – este uso segue autorizado no Brasil.

No Mato Grosso, o Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso (MPT-MT) lidera uma das frentes contra o uso intensivo dos pesticidas. Em 2019, uma ação civil pública movida pelo MPT pediu a proibição do uso de glifosato nas lavouras do estado, incluindo a difundida pulverização aérea, para proteger a saúde dos trabalhadores rurais. A ação não prosperou, mas foi encaminhada para o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), órgão mediador da justiça. A estratégia agora é tentar a redução do uso do herbicida com a conscientização junto a entidades como a Aprosoja, que representa sojicultores.

Mais recentemente o MPT-MT entrou com uma outra ação, ainda em curso, pedindo o cancelamento do registro da atrazina, o terceiro agrotóxico mais usado no Mato Grosso. A atrazina é proibida na Europa há mais de duas décadas, após estudos mostraram sua ação sobre hormônios sexuais dos animais. Segundo o procurador do trabalho Bruno Choary Cunha de Lima, a ação observa o princípio da precaução: não se pode expor um trabalhador a um produto reconhecidamente perigoso.

Na Câmara dos Deputados, um projeto de lei do deputado Padre João (PT-MG) também pede o banimento da atrazina. No texto do PL, o deputado destaca que a substância pode trazer danos à saúde em doses muito pequenas e de não haver controle sobre a quantidade usada nas lavouras.

Além de ameaçar espécies de plantas e animais em extinção por desregular a ação hormonal, a atrazina também está relacionada a anomalias genitais congênitas em meninos. Seus efeitos sobre as crianças se assemelham ao que ocorre nos animais, como redução da produção da testosterona, hipospádia (abertura anormal da uretra) e micropênis.

COMO ANALISAMOS O IMPACTO DOS AGROTÓXICOS NA SAÚDE DA POPULAÇÃO DO MATO GROSSO?

Nesta reportagem, utilizamos as taxas anuais de óbitos fetais do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) e de anomalias congênitas no Sistema Nacional de Nascidos Vivos (Sinasc), disponibilizada pelo DATASUS. Estimamos as taxas de doenças por 1 mil habitantes para os municípios, considerando a população estimada pelo Censo Demográfico 2022, organizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Posteriormente, calculamos a área municipal dedicada à produção agrícola a partir dos dados do Projeto MapBiomas – Coleção 08 da Série Anual de Mapas de Cobertura e Uso da Terra do Brasil, considerando apenas a subclasse Agricultura. Criamos variáveis categóricas para identificar os municípios brasileiros com 5%, 30% e 50% do território com produção agrícola.

A partir do cruzamento desses dados, foi mensurado o risco da ocorrência dessas condições por município, conforme a área agrícola.

Para reforçar nosso compromisso com a transparência e garantir a replicabilidade das análises, a InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.

 

Fonte: Página do MST/Infoamazônia

 

Nenhum comentário: