quarta-feira, 31 de maio de 2023

Ken Loach: “A esperança é uma questão política. Quando as pessoas a perdem, votam no fascismo”

Ken Loach está há mais de 50 anos dignificando a classe trabalhadora. Mostrando as falhas do sistema, as medidas neoliberais que a esmagam. Já fez isto em seus primeiros filmes para a televisão, e continuou no cinema, desde que, em 1969, estreou com essa maravilha chamada Kes, que mostrava um sistema educacional restrito, que abandonava os filhos dos trabalhadores. Estavam condenados à mina, à fábrica. Não havia futuro para eles que não fosse seguir nisto. Eram demonizados e marcados. Desde então, seu compromisso é incorruptível. Poucas carreiras são mais coerentes e comprometidas do que a do cineasta britânico.

Seus filmes retrataram as consequências das políticas de Thatcher, o problema do IRA sob ângulos que incomodaram os britânicos, a nova crise econômica que afligiu o já destruído sistema de bem-estar social e até a uberização do emprego. Ken Loach olha para o que outros não querem ver e aponta os culpados. Não quer ser ambíguo, e isso incomoda os críticos mais sisudos.

Loach tem clareza de que o sistema é a causa de tudo e não hesita em gritar isso repetidamente. É o que volta a fazer com seu último filme. O último de verdade. Apesar de, anos atrás, ter anunciado sua aposentadoria, o retorno das políticas conservadoras o levou a retornar ao cinema, mas agora é o seu corpo que diz que não pode com outro longa.

Aos 86 anos (e prestes a completar 87), estreou no Festival de Cannes - onde buscava sua terceira Palma de Ouro - sua despedida. Chama-se The old oak e é puro Loach e um belo fechamento para sua filmografia, porque pela primeira vez, em muitos títulos, o cineasta opta pelo otimismo que não havia, por exemplo, em Sorry, we missed you.

Agora, deixa claro que o otimismo é progressista e que a desesperança traz monstros. O nome do filme é o do único bar de um povoado em Durham. Um povoado onde o fechamento da mina destruiu tudo. Com a chegada de alguns refugiados sírios em suas ruas e casas, o racismo dos moradores vem à luz.

Com uma ideia conceitual brilhante e combativa, Loach compara aquela crise dos mineiros com a dos refugiados. Somos iguais, temos os mesmos problemas, diz o filme. “O povo que come junto, permanece junto”, lê-se em uma fotografia pendurada no bar do filme, e é essa a mensagem que Loach deixa para olhar o futuro com esperança. Para ele, a solução para o voto na extrema-direita passa por oferecer esperança e soluções a uma classe trabalhadora que tem muita raiva dentro de si.

Em um pequeno encontro com jornalistas, no Festival de Cannes, Ken Loach confirmou que tudo indica que será o seu último filme, embora horas depois tenha deixado uma janela de esperança. “Enquanto meu nome não estiver no obituário, será um bom dia. Vejamos no dia a dia”, disse misteriosamente.

O que está claro para ele é que, ainda que seja difícil, é necessário ser positivo. “É difícil ser otimista a curto prazo no meu país, porque agora temos um partido conservador e um partido trabalhista que também é de direita. Houve um golpe contra o líder da esquerda, Jeremy Corbyn, quando houve um momento de esperança. Foi um golpe de estado em todas as suas manifestações e perdemos essa oportunidade”, disse com seu eterno e humilde sorriso.

Apesar disso, sim, acredita que o filme aponta que “os instintos das pessoas são generosos, quando se sentem fortes”. “Quando sentem que podem fazer mudanças. A generosidade significa solidariedade e significa ajudar outras pessoas. Agora, há muitas campanhas, movimentos e alguns sindicatos que estão se tornando mais militantes. E há uma grande desilusão com os dois principais partidos, ambos de direita. Há um ressurgimento na determinação de realizar uma mudança que não tem representação política”, acrescenta, destacando “sinais que os radares não captam e que não estão nos meios de comunicação”.

“É uma questão de mobilização, de encontrar uma organização que consiga uma forma de organizar o povo e que as pessoas que lutam contra a mudança climática também apoiem aquelas que exigem condições de trabalho e salário justas. São as grandes corporações que estão destruindo o planeta, e essas são as pessoas que estão reduzindo os salários, e são as mesmas que são donas dos jornais, e são as que dizem que o nosso principal problema são os imigrantes. Servem ao mesmo interesse: preservar o status quo. Penso que as pessoas estão percebendo isso e essa unidade de entendimento pode nos dar esperança”, continua Loach.

Então, Ken Loach é otimista ou não? “Eu tenho que ser, poxa. Isso é como o futebol. Há uma nova partida todos os sábados. Pode ser que tenhamos perdido as últimas três, mas voltaremos a jogar no sábado e pode ser que vençamos. A esperança é uma questão política, porque se as pessoas têm esperança e se diz a elas que têm força para mudar as coisas, poderemos avançar. Se não têm esperança, se estão desesperadas, votarão na extrema-direita, nos fascistas. Então, a esperança é um assunto político, a esperança dá forças e dá a capacidade de mudar as coisas. As pessoas que são fortes têm confiança em suas próprias capacidades. As pessoas que não têm esperança são cínicas e encolhem os ombros. A anarquia alimenta a direita, a esperança alimenta a esquerda. Por esquerda, refiro-me às pessoas que imaginam que outro mundo é possível. Acredito que a esperança é essencial”.

No filme, os jovens crescem em um ambiente em que foram ensinados a apontar o dedo para o migrante, mas Loach deixa claro que são a raiva e a falta de esperança que os fizeram buscar um culpado e comprar os argumentos da extrema-direita.

“A esperança para eles é ter um emprego estável, poder ter um salário que permita uma vida decente para eles e seus filhos. Desfrutar das coisas. Estão em um mundo em que não possuem nada. Veem que seus pais não têm nada. Veem gente rica na TV e levam uma vida de merda. O que trará mudanças e ativará sua generosidade para com os outros está em que não sejam explorados. Que não tenham um emprego precário, que não sintam insegurança, que não sejam vulneráveis... Uma boa sociedade ao seu redor, um governo que se comporte com generosidade. E para isso você precisa mudar todo o entorno. Todo o mundo. Não é fácil, infelizmente, porque significa mudar os proprietários, mudar os políticos, e transferir o poder para a classe trabalhadora e afastá-lo das grandes corporações. É isso o que podemos fazer”, afirma com contundência, mas sem levantar um decibel sua voz, denunciando um sistema “que gera pobreza porque seu único interesse é lucrar”.

Ken Loach é claro a esse respeito, mas o cinema fica órfão sem seus filmes com essa aposentadoria. A partir de agora, faltará uma voz essencial na defesa da luta de classes, uma das poucas que se atreve a denunciar os poderosos com suas histórias.

•        Mensagem de Ken Loach à esquerda: ela perde porque “deixou de representar necessidades da classe trabalhadora”

Convidado em videoconferência com o Cinema Troisi em Roma para comemorar o primeiro ano de vida do lugar, o diretor, roteirista e ativista britânico Ken Loach usou palavras muito duras em relação à centro-esquerda, lutando com uma crise de consenso de uma década em diferentes partes do mundo.

"As pessoas votam na direita quando estão com medo, inseguras e sem confiança e isso é uma consequência direta do fracasso da centro-esquerda, dos social-democratas", disse o diretor. A esquerda "é responsável porque negou e não representa as necessidades da classe trabalhadora", acrescentou.

A lição que devemos aprender é que devemos criar uma nova esquerda unida, cujo programa seja dedicado aos bens comuns, ao controle democrático, à proteção do meio ambiente e à defesa dos serviços públicos".

 

       “Bolsonaro não é perigoso apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro”, diz Ken Loach

 

Ken Loach é um dos mais diretores de cinema mais engajados politicamente da atualidade. Fez filmes memoráveis sobre a guerra civil espanhola (Terra e Liberdade) e sobre a revolução sandinista (Uma canção para Carla). Em 2006, recebeu a Palma de Ouro do 59º Festival de Cannes, na França, por Ventos da Liberdade. Em 2016, voltou a ganhar, dessa vez por Eu, Daniel Blake, que fez verter muitas lágrimas nas salas de cinema do Brasil.

Loach segue absolutamente firme no front em sua nova obra. O cineasta acredita que os “pesadelos” representados por Boris Johnson, Donald Trump e Jair Bolsonaro são parte de um mesmo fenômeno global. “É muito perigoso. Está na Índia, com Nahendra Modi. Na Itália, com Salvini. Em Israel, com Netanyahu. Na Polônia, na Espanha, com o partido Vox. Eles são inúteis, não apontam para nada. Mas são perigosos, especialmente agora, porque há a emergência climática. Jair Bolsonaro, por exemplo, não é perigoso apenas para vocês, brasileiros. Ele é perigoso para o mundo todo. Mudar essa situação é uma emergência política mundial”.

Sua nova obra é fundada numa observação sobre a mudança no mundo das relações trabalhistas. Na última década, a economia de serviços estabeleceu-se como uma das principais fontes de empregos, e esses empregos, quase todos erguidos sobre uma teia de precariedade, se revelaram inseguros, frágeis, estressantes, desumanos em sua maioria. A consequência disso, que ninguém encara explicitar, é que as famílias estão se desintegrando, as relações humanas entraram em declínio.

O novo filme de Ken Loach, mesmo concentrado no esforço de transmitir essa realidade, o faz com um timing admirável de narrativa, de interpretações, de situações paralelas, de tensões internas dos personagens. Que são, além do motorista Ricky (Kris Hitchen) da cena descrita no início desse texto, sua mulher, a cuidadora de idosos Abby (Debbie Honeywood) e o casal de filhos, Seb (Rhys Stone) e Liza Jane (Katie Proctor).

É um filme bastante superior a Eu, Daniel Blake (2016), sua produção anterior (também realizado em Newcastle), devido à dramaturgia. O ar de estupefação do motorista Ricky encarna o espanto de todo o trabalhador que descobrirá, do dia para a noite, que não tem mais aposentadoria, não tem mais SUS, não tem mais FGTS, não tem mais Justiça do Trabalho, não tem mais nada, nem um País. “Eu escolhi Newcastle porque é uma parte especial da Inglaterra. É cheia de velhas fábricas, minas de carvão, navios, aço. Também é um lugar com fortes cultura e identidade, um povo muito especial. Com o colapso das indústrias, a economia casual cresceu e mudou tudo, colocou a classe trabalhadora em crise. Também é um lugar ótimo para filmar, porque não é tão grande quanto Londres, temos mais controle da produção, é um lugar mais amistoso”, explicou.

O cineasta diz que é difícil encontrar retratada, na imprensa internacional, essa realidade que ele expõe. A mídia, quase num uníssono, tenta fazer com que o custo humano da nova economia uberizada seja aceito pelos trabalhadores como uma decorrência natural de sua falta de especialização ou sua defasagem tecnológica. Ou seja: incute culpa para colher (oportuna) vassalagem. Os estados nacionais, os governos, cooperam com essa situação relacionando a precarização do trabalho a uma inevitável austeridade nas contas públicas. Por conta disso, começam a surgir no cotidiano cenas como a do entregador de iFood com a bolsa térmica nas costas tentando vencer o temporal e a enxurrada numa rua de Belo Horizonte, durante uma inundação, para seguir seu trabalho de entregas. Se ele não o completa, não recebe.

Os trabalhadores do filme de Loach não são idealizados, sem defeitos. Ricky tem uma queda pelo álcool e é inepto para muitas coisas. Abby, sua mulher, é humilde quase ao ponto da servidão (as famílias negligentes de idosos se aproveitam dela). Mas o diretor questiona fundamentalmente a ideia de supremacia social e profissional, o conceito de êxito e de satisfação existencial. Ricky e sua família, embora tolhidos pela violência da nova ordem, mantém uma dignidade e uma doçura nessa tragédia que realçam sua grandeza humana. Há um pouco de Little Miss Sunshine na presença de Liza Jane, a caçula da família, a pessoa mais razoável, quase a mais madura e equilibrada de todo o grupo.

A família de Ricky se vê obrigada a lutar em uma batalha já perdida. É uma tragédia em progresso. Ken Loach, como de hábito, não doura a pílula. Ele estima demais suas personagens comuns, de vidas ordinárias, e vai amá-las até o fim, mesmo após seu colapso, e é exatamente aí que está a grandeza de seu cinema. A diferença entre o Coringa, por exemplo, é que os deserdados de Loach não estouram jamais em fúria. “Paul Laverty (roteirista de Loach) criou a história a partir de muitas entrevistas com trabalhadores em diversos lugares. Ele vive na Escócia. São pessoas normais que levam vidas normais e encaram uma realidade brutal”, conta o diretor. “Muitos motoristas e cuidadoras de idosos que ouvimos para compor os personagens não quiseram que os nomes saíssem nos créditos porque temiam perder seus empregos”.

Apesar da doçura de seus personagens, Ken Loach segue acreditando na revolução. “As pessoas seguem iguais. Há raiva, alienação, desespero. Para que reajam, é preciso mostrar o que perderam, e é aí que costumava entrar as lideranças políticas. O problema que temos agora é que os líderes aceitaram essa situação, e daí aumentou o senso de desesperança, de perda de horizontes. É um problema político, é preciso entender e organizar a oposição. Não é um problema só do Brasil, é grande na Europa toda, por causa do uso da tecnologia em escala maciça”.

 

Fonte: Por Javier Zurro, para El Diario - tradução  do Cepat, em IHU

 

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