Como
'julgamento do macaco' marcou confronto entre ciência e religião nos EUA há 100
anos
Cem
anos atrás, as atenções dos Estados Unidos e do mundo se
voltavam para Dayton, uma cidadezinha de menos de 2 mil habitantes no interior
do Estado do Tennessee.
Foi lá
que, em 1925, o professor John T. Scopes foi acusado de violar uma lei
recém-aprovada que proibia o ensino da teoria da evolução em escolas públicas.
Seu
julgamento, acompanhado pela imprensa mundial e o primeiro a ter transmissão
nacional ao vivo por rádio, transformaria-se em algo muito maior do que uma
simples disputa legal.
Ao
longo de pouco mais de uma semana, o chamado "julgamento do macaco"
expôs as profundas divisões na sociedade americana.
O caso
ilustrou o confronto entre fundamentalismo religioso e ciência, entre fé e razão e
entre valores tradicionais e modernos.
Estavam
em debate não apenas a evolução e a interpretação literal da Bíblia ou
a separação entre Igreja e Estado, mas também visões políticas distintas sobre
como o país deveria ser governado.
- Incômodo
crescente com a teoria da evolução
O
ensino da obra do naturalista britânico Charles Darwin não era novo na
época.
A
Origem das Espécies,
livro em que Darwin explicou sua teoria da evolução por meio da seleção natural, foi publicado mais de meio século antes, em
1859.
No
entanto, no período após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
ganhou força nas denominações protestantes dos Estados Unidos uma disputa entre
os chamados fundamentalistas e os modernistas sobre como interpretar a Bíblia
(e a história da criação) e sobre rejeitar ou abraçar a teoria de Darwin.
Os
primeiros se atinham a uma leitura mais literal e tradicional da Bíblia, além
de refutar a teoria da evolução, enquanto os modernistas eram mais flexíveis
com tudo isso.
"Os
fundamentalistas também estavam preocupados com outros aspectos da
modernidade", diz à BBC News Brasil o diretor adjunto do National Center
for Science Education (Centro Nacional para Educação em Ciências, ou NCSE, na
sigla em inglês), Glenn Branch.
Segundo
Branch, também ganhou destaque nesse período a noção de que ideias
evolucionistas eram responsáveis pelo militarismo alemão, que havia levado à devastação
da Primeira Guerra. Na época, havia um debate sobre como líderes militares
alemães usavam o conceito da "sobrevivência do mais apto", presente
na teoria da evolução, para justificar agressão militar.
A
ampliação da educação científica nos Estados Unidos nesse período também
alarmou os fundamentalistas.
"Houve
uma grande expansão das escolas secundárias, e os alunos passaram a ser
expostos a mais do que apenas leitura, escrita e aritmética. Passaram a
estudar, entre outras disciplinas, Biologia", explica Branch, cuja
organização monitora leis que ameaçam o ensino da evolução ou sobre as mudanças
climáticas no país.
Foi
nesse contexto que surgiu o movimento para proibir o ensino da teoria da
evolução nas escolas públicas.
Na
década de 1920, pelo menos 20 Estados americanos consideravam adotar
proibições.
Uma
proposta apresentada em 1922 no Kentucky já havia ganhado atenção nacional, mas
acabou não sendo aprovada. Três anos depois, o Tennessee se tornou o primeiro
Estado do país a aprovar uma lei do tipo.
A lei
Butler, promulgada em 21 de março de 1925, proibia professores de universidades
e escolas públicas no Tennessee "de ensinar qualquer teoria que negue a
história da Criação Divina do homem como ensinada na Bíblia, e de ensinar, em
vez disso, que o homem descende de uma ordem inferior de animais".
O autor
da lei, o deputado estadual John Washington Butler, era um fazendeiro de milho
e fumo do interior do Estado que, mais tarde, admitiu que "não sabia nada
sobre evolução" quando apresentou a proposta.
"Eu
havia lido nos jornais que meninos e meninas estavam voltando da escola e
dizendo às suas mães que a Bíblia era uma bobagem", disse Butler em
entrevista durante o julgamento.
"Eu
não achava que isso era certo."
- A busca por um
réu 'voluntário'
A União
Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), atualmente uma das
principais organizações de defesa dos direitos civis nos Estados Unidos, havia
sido fundada apenas cinco anos antes da lei Butler, em 1920.
Com a
entrada em vigor da lei, a ACLU e outros ativistas viram uma oportunidade para
testar a constitucionalidade desse tipo de proibição.
A
organização anunciou que iria defender na Justiça qualquer professor acusado de
violar a lei.
O
objetivo era encontrar um professor que estivesse disposto a ser réu em um
processo judicial para desafiar a lei. Se o caso chegasse à Suprema Corte, a mais alta
instância da Justiça americana, poderia estabelecer um precedente importante
sobre a separação entre Estado e religião.
Ao
mesmo tempo, na cidade de Dayton, cuja população de apenas 1,8 mil habitantes
vinha diminuindo, líderes empresariais viram em um possível julgamento sobre um
tema dessa magnitude a oportunidade de gerar publicidade e movimentar a
economia.
Eles
passaram a encorajar professores locais a desafiar a lei e aceitar a proposta
da ACLU.
John T.
Scopes, que na época tinha 24 anos de idade e lecionava em Dayton havia um ano,
aceitou participar.
Ele era
técnico de futebol americano na escola de ensino médio do Condado de Rhea,
subdivisão administrativa da qual Dayton faz parte, mas às vezes também atuava
como professor substituto de ciências.
Nessas
aulas, ele usava o livro didático obrigatório do Estado, A Civic
Biology ("Uma Biologia Cívica", em tradução livre),
publicado em 1914 por George William Hunter e que incluía trechos sobre a
evolução humana.
Após
ter sido sondado pelos líderes locais, Scopes concordou em admitir que ensinava
a teoria da evolução e participar do caso.
Assim,
em maio de 1925, ele foi detido pela polícia e indiciado por um grande júri por
violar a nova lei.
- Estrelas na
acusação e na defesa
A
acusação, em favor de manter a lei e condenar Scopes, foi comandada por William
Jennings Bryan, representando o Estado.
Advogado,
político e orador de renome, Bryan havia servido como Secretário de Estado e
concorrido à Presidência três vezes pelo Partido Democrata.
Em sua
longa carreira, Bryan adotou muitas políticas progressistas e ficou conhecido
por seus esforços em prol dos trabalhadores. Mas ele também tinha opiniões
religiosas conservadoras e defendia o fundamentalismo na leitura da Bíblia.
Bryan
estava envolvido nos esforços ao redor do país para aprovar leis proibindo o
ensino da teoria da evolução.
Ele
rejeitava principalmente a ideia de darwinismo social, a aplicação distorcida
da teoria de Darwin à sociedade, a qual pregava que apenas as pessoas mais
fortes estariam aptas a sobreviver. Para Bryan, isso poderia gerar conflitos e
prejudicar os mais fracos e mais pobres.
"Ele
fez discursos, lobby e escreveu sobre essas leis ao redor do
país", disse em palestra recente na Universidade do Tennessee o
historiador Edward Larson, professor da Universidade Pepperdine.
Larson
é autor de um livro sobre o julgamento, Summer for the gods: The Scopes
trial and America's continuing debate over science and religion ("Verão
para os deuses: O julgamento de Scopes e o debate contínuo da América sobre
ciência e religião", em tradução livre).
Já a
equipe de defesa foi liderada por Clarence Darrow, o advogado mais famoso da
época. Ele havia ganhado destaque nacional inicialmente como defensor de
sindicatos e líderes trabalhistas e, depois, em casos criminais.
Agnóstico,
ele defendia liberdade acadêmica e se ofereceu para defender Scopes de graça.
"Foi
a única vez em sua vida que ele se ofereceu para atuar de graça", salienta
Larson. "Ele viu uma oportunidade de ficar sob os holofotes e de
desmascarar a moralidade fundamentalista, duas coisas que gostava de
fazer."
Bryan e
Darrow, antigos amigos, tornaram-se adversários no caso.
"Eram
dois dos oradores mais populares do país", ressalta Larson.
"Bryan
e Darrow, litigando as questões profundas da ciência versus religião e da
liberdade acadêmica versus controle público sobre a educação, transformaram o
julgamento em uma sensação na mídia."
- Lotação máxima
no tribunal
Quando
o julgamento começou, em 10 de julho de 1925, o caso já vinha ganhando
manchetes nacionais havia meses.
Mais de
200 jornalistas do país inteiro e do exterior estavam em Dayton.
Um dos
mais famosos, Henry Louis Mencken, do jornal The Baltimore Sun, foi quem cunhou
o apelido de "o julgamento do macaco".
Apesar
de a teoria da evolução não dizer que o
homem descende do macaco — e sim que ambos têm um ancestral comum —, Dayton
foi inundada por suvenires e imagens remetendo a primatas.
Um
chimpanzé, batizado de Joe Mendi, circulava pelas ruas vestido de terno, chapéu
e bengala.
A
cidade foi tomada por visitantes, curiosos para acompanhar o julgamento. Grupos
cristãos organizavam orações ao ar livre, enquanto ambulantes vendiam desde
lanches e limonada até lembrancinhas.
Segundo
a ACLU, mais de mil pessoas se aglomeravam dentro do tribunal a cada dia do
julgamento. Como o local só tinha capacidade para 700 e por conta do calor,
após alguns dias o juiz decidiu transferir as sessões para uma área externa,
com lugar para 5 mil espectadores.
"O
julgamento foi rápido para os padrões de hoje, apenas oito dias", destaca
Branch.
Apesar
de ninguém negar que Scopes realmente havia infringido a lei, o argumento de
Darrow, na defesa, era de que essa lei violava a Constituição.
Bryan,
representando a acusação, argumentava que o ensino da evolução ameaçava os
padrões morais oferecidos pela Bíblia.
"Darrow
queria lutar contra o que acreditava ser uma tentativa de transformar o país em
uma teocracia intolerante", disse em palestra na Universidade Vanderbilt a
escritora Brenda Wineapple, autora do livro Keeping the Faith: God,
Democracy, and the Trial that Riveted a Nation ("Mantendo a fé:
Deus, democracia e o julgamento que cativou uma nação", em tradução
livre).
"Onde
apenas uma versão da Bíblia poderia ser ensinada — a literalista e
fundamentalista — e onde a liberdade acadêmica seria destruída. Onde a ciência
seria então proibida, onde os direitos civis seriam negados, e onde o
preconceito e a ignorância substituiriam o aprendizado e a liberdade."
Os
advogados de defesa queriam incluir o testemunho de cientistas especialistas em
evolução e de teólogos, mas o pedido foi negado pelo juiz, sob o argumento de
que o que estava em julgamento era apenas se Scopes havia ou não violado a lei.
"[A
defesa] queria provar que não havia realmente um propósito legítimo para a lei,
e que a evolução não era intrinsecamente oposta à religião", observa
Branch.
Darrow,
então, anunciou que chamaria o próprio Bryan a testemunhar, como especialista
na Bíblia.
Diante
do público, ele questionou se Bryan acreditava que Jonas havia sido engolido
por uma baleia ou que a terra havia sido criada em seis dias, entre várias
outras perguntas sobre o significado — literal ou não — de passagens bíblicas.
Apesar
de saber a Bíblia de cor e de ter uma oratória poderosa sobre como as
Escrituras poderiam confortar as pessoas, Bryan se mostrou incapaz de debater
esses temas, e suas respostas soaram evasivas.
Ele
demonstrou ignorância não apenas sobre a teoria da evolução, mas também sobre a
Bíblia.
"Darrow
o submeteu a um exame devastador, que fez Bryan parecer ignorante e complacente
sobre sua ignorância", afirma Branch.
Humilhado,
Bryan acusou Darrow de querer ridicularizar todos os que acreditavam na Bíblia.
O
advogado de defesa retrucou que seu objetivo era impedir que "fanáticos e
ignorantes" controlassem a educação do país.
Cinco
dias após o fim do julgamento, Bryan morreu enquanto dormia.
- Um julgamento
que ainda dá o que falar
O júri
levou menos de dez minutos para tomar a sua decisão. Como era esperado, Scopes
foi considerado culpado de violar a lei Butler e condenado a pagar uma multa de
US$ 100 (cerca de US$ 1,8 mil, ou cerca de R$ 10 mil, em valores atuais).
A
defesa apelou da decisão, e o caso chegou à Suprema Corte do Tennessee. Lá, os
juízes reverteram o veredito e o pagamento da multa devido a uma questão
técnica, mas mantiveram a constitucionalidade da lei.
Apesar
de não ter alcançado o objetivo de levar o caso à Suprema Corte dos EUA nem de
ter a lei declarada inconstitucional, a defesa foi considerada vitoriosa no
debate intelectual, segundo vários pesquisadores que estudaram o julgamento e
sua repercussão.
Após o
julgamento, dezenas de propostas em diferentes Estados que buscavam proibir o
ensino da evolução foram derrotadas, e apenas dois projetos de lei semelhantes
foram adotados nos anos seguintes.
A lei
Butler, porém, só seria revogada 42 anos depois, em 1967.
O
ensino da evolução nas escolas americanas continuou a enfrentar ataques nas
décadas seguintes. Em vez de proibição, diferentes esforços tentaram
"equilibrar" as lições com o ensino de criacionismo ou design
inteligente (crença que contesta a evolução e sugere que o universo e os seres
humanos foram criados por uma inteligência superior), mas foram derrotados nos
tribunais.
Outra
estratégia recente em diversos Estados, segundo Branch, tem sido tentar
enfraquecer o ensino da evolução ao permitir que professores apresentem o tema
como se fosse cientificamente controverso — mas não há evidências de que
professores estejam adotando essa posição.
Branch
diz que, apesar de persistirem algumas tentativas de minar o ensino da evolução
em escolas públicas nos Estados Unidos, pesquisas indicam que esse ensino vem
se ampliando e melhorando.
"[Pesquisas
indicam que] mesmo entre os fundamentalistas, a evolução é cada vez mais
aceita", diz Branch.
"Em
1988, apenas 8% dos fundamentalistas diziam aceitar a evolução. Em 2019, eram
32%", afirma Branch, citando um estudo de 2021 do qual é um
dos autores.
Cem
anos depois, muitas das questões levantadas pelo julgamento de Scopes continuam
atuais, em meio a guerras culturais, profunda polarização nos Estados Unidos e
debates sobre ciência, educação, o papel da religião na política e os valores
que definem a nação.
Ao
longo das décadas, o caso inspirou dezenas de livros e ganhou ainda mais
notoriedade com o filme O Vento Será tua Herança, de 1960, baseado
na peça teatral de mesmo nome.
O
centenário está sendo marcado com eventos ao redor do país, entre eles
seminários em diversas universidades e uma comemoração especial em Dayton.
"A
resposta dividida e divisiva sobre questões [como as do julgamento] continua
até hoje", disse Larson em um desses eventos, na Universidade do
Tennessee, em Knoxville.
"O
julgamento de Scopes se tornou, com suas inúmeras releituras, parte do folclore
americano. Dezenas de processos receberam a designação de 'julgamento do
século', mas apenas Scopes correspondeu plenamente a essa promessa, continuando
a ecoar não apenas no século passado, mas também neste."
Fonte:
BBC News
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