sábado, 12 de abril de 2025

Valerio Arcary: A “bomba atômica” do tarifaço de Donald Trump

Os EUA estão impondo um choque na economia mundial sem paralelo nos últimos quarenta anos. Trata-se de uma contra-ofensiva em toda a linha para defender a supremacia de Washington no mercado e sistema de Estados mundial. Quem o subestimar estará cometendo um erro imperdoável.

O impacto só pode ser comparado ao “momento Nixon” em 1971, quando Washington subverteu o acordo de Bretton Woods, e acabou com a convertibilidade fixa do dólar em ouro, desvalorizando a moeda de reserva para enfrentar o crescimento alemão e japonês, o crescente déficit comercial norte-americano, e a necessidade de financiar a guerra no Vietnam.

Ou o “momento Reagan”, quando o Federal Reserve elevou a taxa básica de juros até 21,5% para combater a inflação acima de 13,5%, a disparada da dívida pública que então atingia, pela primeira vez, US$1 trilhão, a necessidade de financiar a corrida armamentista contra a URSS, depois da vitória das vitórias da revolução na Nicarágua, ameaçando a expansão de uma onda para a América central, no Irã, ameaçando uma onda de radicalização islâmica contra Israel, e a queda das ditaduras no cone sul da América Latina.

Não é possível compreender o “momento Trump” do tarifaço sem considerar a pressão de mais de quarenta anos dos déficits comercial e fiscal gigantescos e crônicos. São o calcanhar de Aquiles dos EUA. Não impediram um mini-boom com Ronald Reagan nos oitenta, Bill Clinton nos noventa, e Georges Bush filho na primeira década do XXI. Qualquer outro país, mesmo entre os centrais, teria mergulhado numa espiral de inflação, desinvestimento, recessão e desgoverno. São uma distorção, “excepcionalidade” ou “anomalia”.

Uma nação não pode manter, indefinidamente, uma disfuncionalidade, ou padrão de consumo que depende de endividamento “infinito” que repousa em estoques de capital de outros Estados, e frações burguesas estrangeiras que compram os títulos do Tesouro yankee. Só foi possível porque os EUA, a maior potência mundial, tem um quase monopólio de emissão da moeda de reserva, porque o papel do euro, da libra, ou do franco suíço é muito menor.

Paradoxalmente, ela opera como um “aspirador” da acumulação capitalista, mas mantém o dólar sobrevalorizado, diminuindo a competitividade da economia norte-americana. O desafio estratégico veio nos últimos dez anos: o contraste entre a estagnação nos centros imperialistas pós crise de 2007/08, e o salto de qualidade do fortalecimento da China fez soar o sinal de alerta para uma fração da burguesia norte-americana.

O déficit comercial dos EUA em 2024 foi de cerca de US$ 918,4 bilhões. Já o déficit fiscal alcançou US$ 1,8 trilhões. A dívida pública é de US$ 36 trilhões e, só o pagamento de juros consumirá US$ 1 trilhão, mais do que o orçamento militar do Pentágono. O Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos foi de US$ 29,16 trilhões, ainda uma participação de 26,5% no total global, mas decrescente.

Em tese, estes déficits gêmeos não deveriam ser possíveis. Mas é assim. A ordem de Bretton Woods, erguida em função da catástrofe de duas guerras mundiais, criou o FMI (Fundo Monetário Internacional) para, justamente, evitar que estes desequilíbrios fossem somente transitórios e contornáveis, e não o gatilho de um novo crack mundial como em 1929. Mas os EUA romperam com Bretton Woods, em 1971, para preservar seu estatuto de potência intacto e, de novo em 1981, para encurralar a URSS e impor a restauração capitalista.

Entre 2001/2005 a América Latina foi convulsionada por uma onda revolucionária incendiada por uma década de ajustes neoliberais.  A crise mundial de 2007/08 foi uma sinalização de que a financeirização tinha limites incontornáveis, e seu custo era, politicamente, insustentável. A onda revolucionária no Magreb se estendeu da Tunísia ao Egito até a Síria.

 O que explica esta “excepcionalidade” norte-americana? O fato de que os EUA emitem, sem lastro e sem regras, a moeda de entesouramento mundial. O direito de senhoriagem do dólar tinha limites até 1971, porque Bretton Woods tinha condicionado o papel de moeda de reserva à paridade fixa da conversibilidade com o ouro. Mas esta regra caducou há mais de meio século.

A superioridade dos EUA se impôs no mundo porque este privilégio foi decisivo para a manutenção de uma máquina de guerra que funciona como um “guarda-chuva atômico” que protegeu a Tríade. Ao mesmo tempo, o papel do gigantesco mercado interno dos EUA como “importador em última instância” permitiu à Europa e Japão, mas a China, também, entre outros, a acumulação de superávits comerciais que financiaram o déficit fiscal pelo estoque de títulos da dívida norte-americana. Funcionou assim por décadas na etapa pós 1989/91. A estratégia neoliberal da financeirização garantiu a supremacia unipolar depois da restauração capitalista na ex-URSS. Mas uma contradição foi ficando aguda com o tempo.

OS EUA praticaram, desde a crise de 2007/08 e a transição Bush filho/Barack Obama, até o primeiro mandato de Donald Trump, a estratégia do QE (Quantitative Easing) ou relaxamento monetário. O Quantitative Easing foi a adoção de taxas de juros negativas ou inferiores à inflação, para estimular o consumo e produção. Operou como uma “fuga em frente” – combate ao excesso de liquidez com mais liquidez – e contornou uma depressão mundial, como nos anos trinta do século XX, mas não evitou uma década perdida, e depois ainda veio a pandemia.

Nesse processo, a sobrevalorização do dólar foi inevitável, e agudizou o deslocamento industrial para a Ásia. O capitalismo mundial ganhou “tempo histórico”, mas, tanto na Europa como nos EUA, aumentou a pobreza e a desigualdade social. O Black Lives Matter foi o maior movimento de mobilização social nos EUA em décadas, e colocou em movimento uma nova geração. O choque tarifário de Donald Trump tem como objetivo explícito a internalização de cadeias produtivas. Mas persegue, também, o objetivo de pressionar pela desvalorização do dólar, pela redução da taxa básica de juros do FED que subiu com a inflação pós-pandêmica e o alongamento do perfil da dívida pública dos EUA.

A “ironia dialética” da história foi que, na etapa da globalização, ou auge da supremacia dos EUA, o país que mais cresceu, modernizou e industrializou foi a China, que esboça desdolarização pela articulação dos Brics. Já mantém um sistema de pagamentos em moeda própria com a Rússia, desde que as sanções da guerra na Ucrânia levaram à uma ruptura com o sistema SWIFT.

A sobrevalorização do dólar tornou os custos produtivos muito elevados nos EUA, e a estratégia da globalização favoreceu a transferência industrial para a Ásia. A livre circulação de capitais financiou a industrialização acelerada da China. O gigantismo do mercado interno dos EUA garantiu o papel de “importador mundial”. Mas, ao mesmo tempo, a supremacia norte-americana passou a depender da superioridade financeira e militar. Os custos de manter Forças Armadas como “guarda-chuva atômico” passaram a ser desproporcionais. O choque de Trump responde a esta ameaça. O tarifaço é um giro tático que obedece a uma estratégia muito mais ampla. Parece “loucura”, mas tem “método”.

Donald Trump tem um plano e há coerência na estratégia. Na economia aposta que a pressão inflacionária que virá do tarifaço pode ser compensada pela desvalorização do dólar. Richard Nixon rompeu com Bretton Woods para conter Alemanha e Japão, Ronald Reagan com a coexistência pacífica para cercar a URSS, Donald Trump com a OMC, o Tratado de Paris, até OMS (Organização Mundial da Saúde), e está desafiando a OTAN e a ONU.

Defende abertamente uma ofensiva nacional-imperialista neocolonial: ameaça a anexação da Groenlândia e intimida a Dinamarca, retomou o controle do canal do Panamá, humilha o Canadá e abraçou a linha da extrema-direita sionista em Israel que defende a limpeza étnica na Faixa de Gaza. Exige da União Europeia alinhamento incondicional contra a China, e manobra para separar Moscou de Pequim.

Esses foram somente os primeiros passos, ainda antes dos cem dias. Irã e Venezuela serão ameaçados. Cuba estará na mira.  Mexico será, relativamente, poupado, porque é uma semicolônia com estatuto privilegiado. Aposta na recuperação de uma maior coesão social interna nos EUA com uma industrialização em setores estratégicos. Apoia a intensificação da exploração de petróleo para garantir soberania energética. Mas sabe que precisa manter superioridade em nanotecnologias, em biomedicina, no complexo militar industrial, e nos serviços, a começar pelas bigtechs.

O “momento Trump” será muito grave, talvez pior que as contraofensivas de Richard Nixon e Ronald Reagan, por três razões. A primeira é que se trata de uma liderança neofascista dentro da Casa Branca. A segunda é que estamos diante de uma crise ambiental incontornável, e Donald Trump é um negacionista. A terceira é que a China não parece disposta a recuar, e ceder a chantagens.

A ofensiva de Donald Trump é sustentada, internamente, por uma corrente de supremacia branca, misógina e homofóbica que abraça uma ideologia nacionalista exaltada, e tem força social de choque como ficou explícito no assalto ao Capitólio. A resposta ao aquecimento global depende de uma articulação global que não é possível sem os EUA, e já ficou claro que o Tratado de Paris caducou.

A resposta da China será decisiva, diante de uma corrida armamentista na Europa contra a Rússia que já começou, diante de um cerco iminente ao Irã, e da perspectiva de uma ameaça à soberania da Venezuela. A turbulência mudou de patamar, e o mundo ficou mais imprevisível. O declínio histórico dos EUA gerou um monstro.

¨      Trump inaugura a era das incertezas. Por Henrique Pizzolato

A história política recente nos oferece figuras que, por sua imprevisibilidade e excesso de vaidade, acabam se tornando mais personagens do que estadistas. Donald Trump é, sem dúvida, uma dessas figuras. Desde sua volta à presidência dos Estados Unidos em 2025, temos assistido, não a uma condução serena da maior economia do mundo, mas a uma série de decisões desastrosas que revelam um líder preso à ilusão de grandeza, guiado por impulsos e slogans vazios.

O que mais choca é que essas decisões, travestidas de patriotismo e protecionismo, acabam, na prática, penalizando os próprios trabalhadores e aposentados norte-americanos, corroendo sua dignidade com a mesma intensidade com que desvalorizam a moeda do país e reduzem seu poder de compra.

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Trump, com a pompa de quem acha que comanda um império comercial do século XIX, impôs uma tarifa universal de 10% sobre todas as importações, chegando a absurdos como 46% sobre produtos do Vietnã e mais de 30% sobre mercadorias chinesas. O pretexto? "Defender empregos americanos".

Mas a realidade é mais amarga do que seu discurso. Ao taxar produtos essenciais, Trump aumentou o custo de vida da classe média e dos mais pobres, que dependem justamente dos itens mais baratos, muitas vezes importados, para viver com o mínimo de dignidade.

O supermercado ficou mais caro. O celular, a geladeira, o tênis do filho, o medicamento da mãe. A tarifa não protege o povo. Ela protege o mito, o mito de um Trump industrialista que só existe em seus delírios de campanha.

Como se as tarifas não bastassem, Trump causou em determinado momento a desvalorização do dólar por incertezas, acreditando que isso aumentaria a competitividade das exportações americanas.

Mas a moeda de um país é como o reflexo da confiança que o mundo deposita nele. Ao atacar o próprio dólar, Trump semeia incertezas nos mercados, afugenta investidores e transforma os aposentados em vítimas silenciosas de uma inflação teimosa.

Aposentados americanos, que planejaram sua velhice com base em um dólar forte, agora se veem obrigados a voltar ao trabalho para pagar a conta da insensatez de um homem que brinca com o sistema financeiro global como se estivesse jogando Banco Imobiliário na cobertura da Trump Tower.

Trump se apresenta como o salvador da classe trabalhadora, mas governa como um magnata vingativo. Em nome de uma "América Forte", ele enfraquece justamente os alicerces que sustentam o povo americano: estabilidade, previsibilidade e bem-estar.

Ele diz combater a China, mas com suas tarifas e desvalorização cambial por incertezas empurra os americanos para uma inflação que corrói salários e liquida aposentadorias. Ele promete proteger os empregos, mas suas medidas geram instabilidade econômica, desaceleram investimentos e aumentam a chance de demissões. Ele se proclama patriota, mas governa para o próprio ego, e não para o bem comum.

Quando o império tropeça, outros povos se erguem. As trapalhadas econômicas de Trump, no entanto, têm um efeito colateral curioso: abrem oportunidades para outras nações.

Ao fechar portas, ele força o mundo a abrir janelas. Países latino-americanos, africanos e asiáticos buscam novas alianças comerciais, fortalecem suas moedas locais e constroem relações mais equilibradas, sem a dependência histórica do dólar.

A desvalorização por incertezas da moeda americana pode até parecer má notícia para o mundo à primeira vista, mas num olhar mais profundo, ela oferece ao Sul Global uma chance rara de reconstruir sua soberania econômica. O que Trump faz, sem querer, é permitir que outras nações ganhem espaço enquanto os EUA se perdem em seu próprio labirinto de retrocessos.

Nós, brasileiros, temos o dever de aprender com os erros dos outros. A política econômica de Trump é um alerta: protecionismo sem estratégia é como um remédio amargo dado ao paciente errado — agrava a doença ao invés de curá-la.

Aqui no Brasil, devemos buscar integração internacional com inteligência, proteger nossos trabalhadores com políticas públicas duradouras, não com bravatas, e fortalecer nossa moeda com responsabilidade fiscal e visão de futuro — não com populismo cambial.

Precisamos de líderes que pensem grande sem desprezar o povo, que falem a verdade sem esconder os números, que atuem com coragem, mas não com impulsividade.

Trump, em sua cruzada egocêntrica, não está apenas prejudicando os americanos. Ele está minando a credibilidade de um país que sempre foi símbolo de força econômica — ainda que controversa. Mas talvez, no fim das contas, sua vaidade seja o empurrão de que o mundo precisava para deixar de olhar para os EUA como o farol único do progresso.

Que os trabalhadores americanos resistam. Que os aposentados sejam ouvidos. E que os povos do mundo saibam que o autoritarismo econômico, disfarçado de patriotismo, é sempre o caminho mais curto entre a promessa vazia e o desastre anunciado.

¨      Marcia Tiburi: O fim do império americano será também o fim do patriarcado capitalista?

Alguns teóricos marxistas importantes disseram que é mais fácil acabar o mundo do que o capitalismo. Não estavam errados, afinal o capitalismo vem destruindo a vida desde sempre. Porém, tais teóricos perdem de vista que o sistema de exploração e acumulação que é o capitalismo - e que vem a ser um sistema de destruição e aniquilação em sua fase colonial neoliberal - deriva da pulsão patriarcal de morte que erigiu essa cultura. 

Trump e sua agonia por dinheiro e poder é um emblema do fim do império americano, mas também do fim dos tempos patriarcais. A forma social do homem branco capitalista que ele representa está em seus estertores. É um homem que já não pode viver de novo e, assim como seu país, não será grande novamente. 

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O discurso de ódio que Trump emite contra todos é também sinal de desespero, assim como a misoginia histórica sempre sinalizou para o desespero do patriarcado diante do avanço das mulheres em termos de liberdade e cidadania. 

Trump é um sinal de que precisamos inventar outro mundo, um mundo em que as pessoas vivam bem suas vidas de forma plena em termos econômicos, espirituais, estéticos, éticos e políticos. 

Uma transição histórica se faz necessária e o feminismo como ético política é a chave dessa transição para uma sociedade livre do jugo patriarcal capitalista (racista, capacitista, etarista e antiecológico como infelizmente estamos experimentando em nossos corpos e vidas). 

Contra a miséria espiritual e intelectual patriarcal, contra a violência sobre os corpos mulherificados, LGBTQIA+, sobre os corpos racializados e animalizados, precisamos de um projeto de mundo dirigido à proteção e ao cuidado com a vida, cernes da experiência das mulheres e marca do feminismo em todos os tempos. 

À sentença derrotista dos homens teóricos marxistas, contrapropomos o avanço da luta feminista que é luta pela vida para superar a sentença de morte capitalista e patriarcal. Um governo das feministas é tão urgente quando possível. Vamos à luta!

 

Fonte: A Terra é Redonda/Brasil 247

 

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