Ronald Vizzoni Garcia: ‘Escândalo e
direitos humanos em Brasília’
Os três ministérios
mais diretamente ligados aos direitos humanos seguem como atores secundários na
Esplanada dos Ministérios. Quando ganham repercussão, não é pelo que fazem de
melho
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A crise no Ministério
dos Direitos Humanos, com a saída de Silvio Almeida, é uma situação que exige
atenção. Podemos extrair dela, interpretações sobre como os ativistas de
direitos humanos e movimentos sociais reagiram, bem como sobre a situação das
três pastas ministeriais relacionadas ao tema. Para tanto, inicialmente,
entendamos as reações na sociedade, que se dividiu entre apoiar a narrativa de
uma ou outra liderança do mesmo campo. Depois, discutiremos a tomada de
decisões sobre a crise. E, por fim, falaremos sobre a condição atual das pastas
ministeriais relacionadas ao tema.
A sensação
predominante em muitos grupos de ativistas de direitos humanos é de surpresa,
quando não de perplexidade. Diante da incerteza, as pessoas começam a construir
suas próprias deduções. É esperado que militantes de longa data dos movimentos
sociais, frequentemente acostumados a serem retratados pejorativamente pela
mídia corporativa, relutem em “abandonar um companheiro” à mercê de
cancelamentos.
A primeira reação foi
duvidar das fontes (mídia golpista), questionar as intenções: pacto da
branquitude; “ele se opõe à privatização de presídios; ONG estrangeira e assim
por diante. Além disso, há algum tempo, diversos movimentos sociais vêm
insistindo na importância de “raça” e “gênero” na nomeação de pessoas para
cargos importantes. A nomeação de ministros e ministras negras para o STF é o
ponto alto dessa reivindicação. Fora a radical disparidade material e
simbólica, não há nada que justifique, positivamente, o corte de gênero e raça
nos postos de elite.
As “decisões
pragmáticas” “sem considerar” cor e gênero apenas reforçam as estruturas e
valores vigentes. Quando já existem pessoas qualificadas para os mesmos cargos,
com a singela diferença de terem nascido sem serem homens brancos, a “urgência”
do cálculo político imediato tende a favorecer a estrutura social, simbólica e
política dada. A mudança é uma escolha deliberada. Para que ela persista, deve
ter apoio na sociedade, que se traduza em votos.
Como negar o
tratamento diferenciado dado a ministros dos quais o governo depende, como, por
exemplo, Juscelino Filho (Comunicações), indiciado pela Polícia Federal, em
2024, por fraude em licitações e organização criminosa? Ou a falta de
alinhamento político do ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, que defendeu
abertamente o Marco Temporal, enquanto o governo e o STF caminhavam na direção
oposta?
O próprio governo
optou por deixar de lado a questão dos mortos e desaparecidos durante a
ditadura, mais um dos inúmeros acenos de boa vontade para com os militares.
Esse ponto, inclusive, foi retomado por Silvio Almeida em uma linha de ação
oposta à do governo. Não se trata de criar um ranking de transgressões “mais
aceitáveis” ou equiparar falta de alinhamento político ao cometimento de
crimes. O ponto é: o cálculo difere, seja pela pessoa, pasta ou meios de
sustentação política.
Um falso dilema é que
a simples presença de homens negros e mulheres negras acarrete obrigações
morais maiores do que as dos demais em cargos de comando. Não há argumento
meritocrático que explique o branqueamento dos cargos de elite. Esse argumento,
por si só, é suficiente para rediscutirmos os processos de seleção para esses
cargos. Não significa que os “não brancos” ascendentes tenham que ser “santos”
com um grau de exigência maior ou menor do que os demais.
Certamente, há mais
tristeza nos movimentos sociais em relação às denúncias contra Silvio Almeida
do que contra Juscelino Filho. As expectativas eram outras. A decepção também.
Essa alta expectativa vale também para Anielle Franco, à frente da Secretaria
de Igualdade Racial. É uma situação dilacerante para aqueles que julgam ter
sofrido violência e, em outro nível, para aqueles que precisam entender o que
está ocorrendo.
Num segundo momento de
reflexão, pode-se lembrar que a pessoa em questão já apresentava sinais que
apontavam para esse desfecho, nós é que não queríamos aceitar. A nota da
Coalizão Negra por Direitos oferece um bom exemplo dessa leitura da situação:
“Nos bastidores do movimento negro, porém, já há algum tempo, é visto com
reservas por várias lideranças”.
Destaca, em
particular, “o assassinato de João Alberto Freitas, dentro de um supermercado
Carrefour em Porto Alegre, em novembro de 2020” (…) “Enquanto vozes do
movimento negro choravam publicamente seu luto, Silvio Almeida aceitou assumir
a condução do Comitê de Diversidade do Carrefour”. Isso antes de ser ministro.
A nota também cita o relato publicado pela revista Veja de alunas que teriam
sofrido assédio sexual em uma faculdade privada de São Paulo.
Infelizmente, os
prejulgamentos e tomadas de posição ocorrem de maneira mais ou menos emotiva e
direta. Nunca partimos do zero, mas de inclinações já presentes em nossas
mentes. Não adianta pedir calma em prol da presunção de inocência e do devido
processo legal. O tempo da política, acelerado pelas redes sociais, é o das
conclusões “muito evidentes”, que dividem “os bons” dos “maus”.
Independentemente do resultado legal daqui a alguns meses ou anos, o impacto
dos fatos (verídicos ou não) já é uma realidade no mundo político. Não é com
base na produção de provas em um processo legal que decisões políticas são
tomadas sobre este caso.
Inexiste fórmula
mágica que transforme pessoas de direita ou de esquerda em pessoas moralmente
superiores, a priori. São as ações práticas que definirão o que há de sombrio,
ou não, na conduta de cada um de nós. A recusa pública de valores machistas,
racistas e xenófobos é um bom começo (para direita, centro e esquerda), mas
também pode servir como fachada pública para agir de outra forma no privado.
É o que muitas
empresas fazem em relação ao meio ambiente; como tratam seus empregados e as
populações atingidas por suas atividades. Em governos, algo semelhante pode
ocorrer, especialmente por sua composição nunca ser monolítica. Existem sempre
lideranças e grupos disputando mais recursos, mais poder e visibilidade. Isso é
positivo, pois, nessas disputas, os “excessos” e “pecados” dos diferentes lados
acabam surgindo, independentemente do governo.
A dor das vítimas é
real e não deve ser menosprezada. Nossa inteira solidariedade e compromisso
para com elas. Por sua vez, a veracidade dos fatos, premeditados ou não, não
muda o cálculo político. O momento é de melhora na economia, eclipse político
do Sete de Setembro bolsonarista e esvaziamento do Congresso devido às eleições
municipais.
A crise é uma
antecipação da reforma ministerial prevista para depois das eleições, que pode
“ajudar” a reposicionar o governo frente à sua base parlamentar, sem falar na
sucessão das presidências no Congresso. O antigo ministro não tinha muito a
oferecer nesse campo, nem a pasta é alvo de grandes cobiças. Silvio Almeida
mantinha certa independência de partidos e de alinhamentos automáticos, típico
do intelectual que valoriza mais a biografia e a ética da convicção do que a
ética da responsabilidade política.
Passando aos
ministérios/secretarias, há um paradoxo nas políticas públicas de direitos
humanos. Por se tratar de uma agenda transversal, que passa por políticas
públicas de diversos ministérios, pode-se fazer muito por essa pauta sem,
necessariamente, avançar nas políticas específicas. O governo Lula vem
melhorando as condições sociais da população e se mostra mais “civilizado” do
que o anterior (para dizer o mínimo) em suas posições sobre a efetividade de
direitos.
Os ministérios mais
específicos (Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos) trabalham com
orçamentos menores, tendem a fazer alianças entre si e a “sensibilizar” os
demais ministérios para suas pautas (matricialidade). Desenvolvem políticas
públicas mais específicas para públicos importantes. Além desse cenário geral,
há a péssima imagem deixada pela antecessora. Ela soube usar o cargo para
ganhar visibilidade, muitas vezes propagando fake news e políticas absurdas.
Ficou a impressão de que qualquer um poderia ser ministro dos Direitos Humanos
e dizer qualquer banalidade (meninas de rosa, meninos de azul), dependendo do
governo que assumisse.
Os três ministérios
mais diretamente ligados aos direitos humanos seguem como atores secundários na
Esplanada dos Ministérios. Quando ganham grande repercussão, não é pelo que
fazem de melhor. Um fato lamentável. Direitos humanos permanecem um desafio ao
“reformismo fraco” do governo Lula 3.
A agenda de direitos
humanos é composta por compromissos civilizatórios, pela proteção de indivíduos
e pela efetividade de direitos. Representa o pacto por uma sociedade melhor, na
qual cada pessoa possa expandir suas potencialidades, sem prejuízo à diversidade
e aos grupos minoritários. Há muito a ser feito, e podemos começar pelas
escolhas de quem confiar e pelas razões para isso. Que a mudança traga novas
perspectivas!
• O ministro e a luta das mulheres. Por
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Em artigo publicado na
Revista Language & Law, Lana Lage da Gama Lima analisa a “cultura do
estupro”, um conceito desenvolvido nos anos 1970 pelo movimento feminista
norte-americano para descrever como leis, normas e práticas naturalizam a
violência sexual contra mulheres devido às desigualdades de gênero.
A autora explora como
essa cultura tem raízes na tradição judaico-cristã, que retrata a mulher de
forma dicotômica – Eva, a pecadora, e Maria, a virgem pura. Essa dualidade
moldou representações sociais misóginas e o controle da sexualidade feminina,
consolidando a desconfiança e a desvalorização da mulher, especialmente em
casos de violência sexual.
Lana Lage da Gama
também analisa como a legislação ocidental, especialmente no Brasil, tem
refletido e reforçado essa submissão feminina através de códigos penais que
diferenciavam o tratamento legal com base na moralidade da vítima.
Mesmo após a retirada
do termo “honesta” do Código Penal em 2003, a cultura do estupro persiste, como
evidenciado pelo tratamento de casos recentes. A autora conclui que a superação
dessa cultura exige a desconstrução de normas e representações sociais que
culpabilizam as mulheres, buscando a igualdade de direitos entre os gêneros.
O movimento Me Too,
fundado em 2006 pela ativista Tarana Burke para apoiar mulheres negras vítimas
de violência sexual, ganhou notoriedade global em 2017 quando a atriz Alyssa
Milano popularizou a hashtag #MeToo, desencadeando uma onda de denúncias públicas
contra agressores, especialmente em Hollywood. Esse momento trouxe à luz a
dimensão sistêmica da violência de gênero, incentivando milhares de mulheres a
exporem suas experiências de abuso, agressão e assédio sexual.
No Brasil, o Me Too se
organiza através de coletivos feministas, ONGs e ativistas, promovendo ações de
conscientização e campanhas de apoio às vítimas. O movimento enfatiza a
importância da visibilidade das agressões e do acolhimento às vítimas, criando redes
de solidariedade e apoio emocional, jurídico e psicológico.
A estratégia inclui a
quebra do silêncio, a denúncia coletiva e a conscientização sobre a magnitude
do problema. Fortalecer essas redes e pressionar por políticas públicas
eficazes é crucial para responsabilizar agressores e construir uma cultura de
enfrentamento à violência de gênero, desafiando a normalização do assédio e da
violência sexual.
A adoção de ações
rápidas e eficazes para proteger mulheres vítimas de assédio e importunação no
ambiente de trabalho é fundamental, especialmente em esferas como a política e
a academia, onde há relações de poder assimétricas. Nessas esferas, a hierarquia
e a influência de figuras públicas podem tornar as vítimas mais vulneráveis e
inibir a denúncia por medo de retaliação. Medidas ágeis são essenciais para
garantir a integridade física, emocional e profissional das mulheres e para
assegurar que o ambiente de trabalho se mantenha seguro e livre de pressões.
Além disso, o
afastamento de figuras que ocupam cargos políticos importantes diante de
acusações graves e contextualizadas feitas por várias vítimas é essencial para
garantir a integridade do processo investigativo e a proteção das denunciantes,
sem comprometer o princípio da presunção de inocência.
Embora não viole os
direitos de defesa do acusado, que pode buscar seus direitos nas vias judiciais
adequadas, impede que ele use sua posição de poder para influenciar as
investigações ou intimidar a vítima e testemunhas. O objetivo é garantir que
cargos de poder não confiram imunidade ou privilégios em relação à
responsabilização por comportamentos inadequados.
É crucial que, no
âmbito penal, o devido processo e a presunção de inocência sejam respeitados,
garantindo que todos os acusados tenham a oportunidade de se defender
adequadamente. No entanto, é igualmente essencial que decisões judiciais sejam
tomadas com uma perspectiva de gênero, especialmente em casos de assédio e
abuso sexual onde podem não existir provas materiais ou testemunhas diretas.
No âmbito judicial,
decisões com perspectiva de gênero, que têm sido estimuladas pelo Conselho
Nacional de Justiça, são essenciais para valorizar a palavra das vítimas em
casos de assédio e abuso sexual, especialmente na ausência de provas materiais
ou testemunhas. Essas decisões reconhecem as dinâmicas de poder e controle
envolvidas nesses crimes, permitindo uma avaliação mais justa das denúncias.
Muitas vezes, as
vítimas enfrentam dificuldades para apresentar evidências concretas devido à
natureza íntima e oculta dos abusos. A perspectiva de gênero ajuda a entender
essas circunstâncias e a tratar as denúncias com seriedade, combatendo a
descredibilidade frequentemente associada a tais relatos.
A criminalização do
assédio e da importunação sexual é crucial para a interdição social desses
comportamentos. Ela define claramente o que é inaceitável e estabelece
mecanismos legais para responsabilizar os infratores e proteger as vítimas. A
criminalização contribui para a conscientização pública e a mudança cultural,
transformando uma cultura permissiva em relação ao comportamento masculino
abusivo e promovendo um ambiente mais seguro e respeitoso.
Além disso, oferece
uma via legal para que as vítimas busquem justiça e proteção, servindo como um
mecanismo de dissuasão contra comportamentos abusivos. Em resumo, a
criminalização dessas condutas é sim necessária para a promoção da mudança
cultural, fortalecendo a proteção e a justiça para as vítimas, capacitando as
autoridades a lidarem com esses crimes de maneira adequada e atuando como uma
barreira contra práticas abusivas.
O caso das acusações
de assédio e importunação sexual contra o ministro Silvio Almeida destaca a
importância do papel de liderança do presidente Lula, em um contexto
frequentemente marcado por misoginia e “broderagem”, onde denúncias são
minimizadas e as vítimas são desqualificadas, muitas vezes sob o pretexto de
que estariam motivadas por disputas políticas.
Nesse cenário, a
intervenção de Lula no arbitramento da questão e no afastamento do ministro
acusado foi crucial para garantir que as alegações sejam tratadas com a
seriedade que merecem e para assegurar o devido tratamento, pelo governo
federal, das questões de violência de gênero.
Na perspectiva
weberiana, o papel do líder carismático é crucial para romper estruturas de
poder tradicional, caracterizadas por lealdades pessoais e compadrios. Max
Weber descreve o carisma como uma forma de autoridade baseada na habilidade
pessoal e na capacidade de inspirar devoção, ao contrário da autoridade
tradicional, que se fundamenta em normas e práticas estabelecidas.
Em um contexto onde as
estruturas de poder são marcadas por relações de lealdade e compadrio, o líder
carismático pode desafiar essas normas e práticas ao oferecer uma visão
inovadora e um compromisso com princípios éticos que transcendem os interesses
pessoais e as tradições estabelecidas.
O líder carismático
tem a capacidade de transformar e modernizar instituições ao contar com uma
legitimidade que desafia as estruturas de poder existentes. Ao adotar uma
postura ética firme e voltada para a proteção das vítimas, o líder carismático
pode enfraquecer as relações de lealdade e os arranjos de compadrio que muitas
vezes perpetuam práticas injustas e abusivas. Esse tipo de liderança não só
desestabiliza o status quo, mas também cria novas possibilidades para a
construção de instituições mais transparentes e responsáveis, baseadas em
princípios de mérito e justiça, em vez de redes de favores e lealdades
pessoais.
A decisão de afastar o
ministro foi, portanto, uma medida necessária para proteger as vítimas e
garantir que o processo judicial seja conduzido de forma imparcial, sem
interferências que possam comprometer a apuração dos fatos. Este afastamento é
essencial para mitigar a influência da misoginia e das práticas de “broderagem”
e lealdade pessoal e política que podem estar presentes, criando um ambiente
mais seguro e respeitoso para as denunciantes. A postura firme e clara do
presidente Lula foi, neste sentido, fundamental para reforçar o compromisso do
governo com a justiça e a igualdade de gênero.
Além disso, o
Ministério dos Direitos Humanos deve continuar comprometido com a proteção das
mulheres vítimas de violência, mantendo sua missão de apoio e defesa dos
direitos das vítimas, mesmo diante de controvérsias políticas.
O ministério deve
garantir que sua função de proteger e acolher as vítimas não seja comprometida
pelo caso, mantendo a ênfase na promoção da igualdade de gênero e na justiça
social. Dessa forma, a resposta institucional estará pautada pelo compromisso
com a ética e os direitos humanos.
Lembrando que recusar
práticas de assédio – seja moral, sexual ou psicológico – não é uma pauta
exclusiva das mulheres, mas uma questão de direitos humanos universais. A
recusa a avanços indesejados, cantadas ou sugestões que condicionam o avanço na
carreira a concessões pessoais e favores sexuais deve ser entendida como uma
pauta humanitária e universal, e não apenas como uma reivindicação identitária.
Essas ações são
expressões de relações de poder que, independentemente de seu caráter machista,
devem ser rejeitadas para promover um ambiente de respeito e igualdade para
todos.
Fonte: A Terra é
Redonda
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