Privatização: falta água, jorram lucros
Quatro anos após a aprovação
da Lei 14.026 de 2020, que alterou o marco legal do saneamento de 2007 (Lei
11.445 de 2007) ao facilitar a entrada do setor privado por meio do
enfraquecimento das empresas públicas, o Brasil já registra 321 iniciativas de
concessões, privatizações e parcerias público-privadas no setor. A nova lei,
aprovada sob a promessa de acelerar a universalização do saneamento com maior
participação de empresas privadas, foi justificada pela suposta incapacidade
das empresas públicas de atingir essa meta até 2030. No entanto, ao completar
quatro anos em julho, os resultados práticos ainda estão longe do esperado.
Apesar do aumento da
presença de empresas privadas no setor, os avanços na universalização dos
serviços permanecem insignificantes. Dados do Sistema Nacional de Informações
sobre Saneamento (SNIS) revelam que a promessa de melhorar substancialmente o
acesso à água e ao esgotamento sanitário não se concretizou para a maioria dos
brasileiros. Desde 2019, o atendimento de água no país cresceu apenas 1,3%,
enquanto a coleta de esgoto aumentou 2,8%, e o tratamento de esgoto, 5,9%.
Mesmo o indicador com a maior evolução, o tratamento de esgoto, ainda está
muito distante da meta de universalização prevista para 2033. Mantendo-se o
ritmo atual, a universalização completa só seria alcançada em 2070, o que seria
37 anos após o prazo estipulado pela nova lei. Enquanto isso, a população
continua aguardando as tão esperadas melhorias, que, até o momento, têm se
mostrado mais discurso do que realidade.
• Impactos na População e Lucros para
Corporativismo
Embora a promessa de
universalização ainda esteja distante, os grandes grupos empresariais do setor
foram os que mais se beneficiaram com as mudanças. Entre as quatro principais
empresas de saneamento no Brasil — Aegea, BRK, Equatorial e Iguá Saneamento —
todas registraram faturamentos recordes. A BRK, por exemplo, destacou-se com um
aumento superior a 15% de receita operacional, enquanto a Iguá Saneamento
praticamente dobrou sua receita operacional, alcançando um crescimento de 20%
nos lucros. Com lucros bilionários estão a Aegea e a Equatorial, que
recentemente arrematou a oferta de 18% ações da Sabesp, tornando-se investidor
preferencial na empresa paulista.
Os resultados
financeiros das cinco gigantes do setor são impressionantes; no entanto, não
refletem melhorias proporcionais nos serviços oferecidos à população. Dentre as
estratégias adotadas pelas empresas, esses lucros são atribuídos ao aumento das
tarifas, com alguns reajustes superiores a 10%, além da incorporação de
percentuais relativos à inflação acumulada de anos anteriores. O impacto disso
é sentido diretamente pelos consumidores, especialmente aqueles das camadas
mais vulneráveis, que enfrentam dificuldade crescente para pagar por um serviço
que deveria ser acessível e de qualidade.
• O Contexto Global e o Neoextrativismo
O processo de
privatização do saneamento no Brasil não é um fenômeno isolado, mas parte de
uma tendência regional que Maristella Svampa, socióloga argentina, descreve
como “neoextrativismo”1. Este conceito refere-se a um modelo sociopolítico
contemporâneo caracterizado pela intensa acumulação de capital, baseada na
superexploração de recursos naturais em países do Sul Global, destinada à
exportação para os países do Norte. No caso do saneamento, não é a água em si
que é exportada, mas os lucros gerados por seu uso intensivo e exaustivo — o
verdadeiro produto exportado sob essa lógica.
Um exemplo claro dessa
dinâmica é o caso da Equatorial, uma empresa de saneamento cuja estrutura
acionária inclui 35% de investidores estrangeiros. Apesar de ter registrado
lucros de 2,8 bilhões de reais em 2023, a Equatorial é a concessionária
responsável pelo saneamento no Amapá, a capital com os piores índices de
saneamento do Brasil. Isso evidencia o paradoxo do neoextrativismo: altos
lucros para investidores, mas serviços de baixa qualidade para a população
local.
Essa abordagem reflete
o imaginário neocolonial dos países ricos, em que o binômio “menos Estado, mais
mercado” é apresentado como uma solução universal para os problemas de
infraestrutura. A estratégia não é nova no Brasil; desde os anos 1990,
políticas neoliberais vêm sendo implementadas sob a justificativa de manter as
contas públicas sob controle. Com o tempo, o investimento em serviços públicos
é reduzido, levando ao sucateamento da infraestrutura e das companhias
estatais, o que, por fim, justifica a transferência desses ativos para a
iniciativa privada.
Outro ponto em comum
entre as quatro gigantes do saneamento no Brasil, é a inserção de todas elas em
redes financeiras globais. Entre os sócios e acionistas dessas corporações
estão grandes grupos financeiros transnacionais, fundos de pensão e de investimento,
como a canadense Brookfield Asset Management e o fundo de pensão GIC, de
Singapura. Essa internacionalização do capital faz com que o saneamento, um
serviço essencial, passe a ser visto como uma oportunidade de investimento
altamente rentável, em detrimento das necessidades sociais da população
brasileira.
Investidores enxergam
no setor de saneamento uma oportunidade para garantir retornos consistentes a
longo prazo. Em relatório recente, a Brookfield Asset Management destacou que o
déficit orçamentário enfrentado por governos locais, que dificulta o financiamento
necessário para a expansão e melhoria da infraestrutura, torna o setor ainda
mais atraente para o capital privado. Além disso, a grande demanda não atendida
por serviços de água e esgoto sugere um mercado em expansão com considerável
potencial de crescimento. Para a gestora de fundos, o saneamento é associado a
fluxos de caixa estáveis e seguros, proteção contra quedas de mercado,
diversificação de outras classes de ativos, proteção contra a inflação e uma
estratégia eficaz para o equilíbrio das contas a longo prazo. Enquanto isso, a
função essencial do serviço, que é garantir o acesso à água e ao saneamento
para todos, fica em segundo plano.
A presença dessas
grandes corporações financeiras globais significa que o foco dessas empresas
tende a ser na maximização dos lucros e na geração de dividendos para os
acionistas, muitas vezes priorizando o retorno financeiro sobre o investimento
em infraestrutura e na melhoria dos serviços. Esse fenômeno levanta
preocupações sobre a capacidade de tais empresas atenderem adequadamente às
necessidades de saneamento da população brasileira, especialmente nas regiões
mais vulneráveis, onde os serviços ainda são precários.
A experiência
internacional demonstra os perigos potenciais da privatização do saneamento,
como exemplificado pela Thames Water, no Reino Unido. Privatizada em 2001 e
posteriormente adquirida por um consórcio liderado pela Macquarie Capital Funds
em 2006, a empresa tem sido associada a uma série de controvérsias ao longo da
última década. Problemas como despejos ilegais de esgoto, deterioração da
qualidade da água e aumentos significativos nas tarifas cobradas dos
consumidores têm marcado sua gestão.
Simultaneamente, a
Thames Water tem se destacado por distribuir elevados dividendos a seus
acionistas, que receberam, apenas este ano, um montante próximo a 1 bilhão de
reais. Esse cenário ilustra os desafios que surgem quando a busca pelo lucro se
sobrepõe à prestação de serviços essenciais de qualidade.
• O Futuro do Saneamento no Brasil
A trajetória dos
últimos quatro anos deixa claro que a privatização do saneamento não trouxe os
benefícios prometidos à população. Pelo contrário, os resultados indicam um
cenário em que as grandes corporações se fortalecem financeiramente, enquanto a
universalização do acesso ao saneamento segue distante. A situação exige uma
reflexão profunda sobre as políticas públicas adotadas e a necessidade de um
modelo mais inclusivo e voltado para o bem-estar social.
Alternativas à
privatização devem ser consideradas, como o fortalecimento das empresas
públicas por meio de uma gestão mais eficiente e a promoção de políticas
públicas que priorizem o interesse da população em vez dos lucros corporativos.
A crise do saneamento no Brasil não é apenas uma questão de eficiência
econômica, mas também de justiça social e direitos humanos. O futuro desse
setor crucial depende de decisões políticas que coloquem o bem-estar da
população acima dos interesses de mercado.
Fonte: Por Tamara
Zambiasi, em Outra Saúde
Nenhum comentário:
Postar um comentário