O complexo debate sobre a decisão de
condenar os pais quando filhos são responsáveis por um tiroteio nos EUA
A acusação de
homicídio contra o pai do adolescente suspeito de matar quatro pessoas com uma
espingarda numa escola dos Estados Unidos representa mais um passo na discussão
sobre a responsabilidade parental nesse tipo de crime.
Colin Gray comprou
para seu filho Colt, de 14 anos, um rifle semiautomático AR-15 no Natal de
2023, apesar de o adolescente ter sido interrogado pela polícia sete meses
antes por causa de ameaças que ele fez sobre um tiroteio na escola.
Os investigadores do
tiroteio que deixou quatro pessoas mortas — incluindo dois menores — numa
escola secundária no Estado da Geórgia, na quarta-feira (4/9), estão
convencidos de que essa é a mesma arma que Colt usou no tiroteio.
O menor foi acusado de
homicídio e, numa decisão inusitada, o pai também foi.
Colin Gray, de 54
anos, enfrenta agora duas acusações de homicídio em segundo grau, quatro
acusações de homicídio culposo e oito acusações de prática de atos de crueldade
contra menores.
Se for considerado
culpado, ele enfrentará uma sentença de 180 anos de prisão.
• O caso
As acusações contra
Colin baseiam-se no fato de ele ter “permitido conscientemente o uso de uma
arma por seu filho”, de acordo com Chris Hosey, diretor do Departamento de
Investigações da Georgia.
As duas principais
acusações contra ele — homicídio em segundo grau — correspondem aos dois
menores mortos no ataque: Christian Angulo e Mason Schermerhorn, ambos de 14
anos.
Dois professores
também foram mortos no tiroteio: Richard Aspinwall, de 39 anos, e Cristina
Irimie, 53.
As acusações de
homicídio em segundo grau devem-se em parte à forma como as leis são redigidas
na Geórgia.
De acordo com o código
penal do Estado, uma pessoa comete homicídio de segundo grau quando “ao
perpetrar atos de crueldade contra menores de idade, ele ou ela causam a morte
de outro ser humano, independentemente da intenção”.
Com os promotores
fazendo essas acusações apenas 24 horas após o tiroteio, os especialistas
alertam que os fatos só agora se tornam conhecidos e que muitas coisas ainda
precisam ser esclarecidas, principalmente na questão jurídica.
“Há uma ligação entre
as mortes e o ‘cometimento de atos de crueldade contra menores’”, disse Evan
Bernick, professor de direito da Northern Illinois University, à BBC.
“Mas a crueldade está
relacionada com o tiroteio ou é a crueldade com o filho que talvez o tenha
levado a cometer o tiroteio? Ainda não sabemos”, acrescenta.
O filho dele será
julgado como adulto, o que significa que o sistema de justiça tratará este caso
como alguém totalmente responsável por seus atos.
Mas isso não significa
que o pai dele evitará a punição, ressalta Bernick.
A base do argumento
jurídico não será que Colin Gray queria que o tiroteio acontecesse, mas sim que
ele “falhou na hora de intervir e que essa falha foi negligente num sentido que
justifica torná-lo parte do homicídio”.
• Um pai pode ser acusado mesmo sem
disparar?
Nos Estados Unidos,
existem leis que punem os pais ou responsáveis por todos os tipos de condutas,
desde evasão escolar e direção por menores até furtos em lojas e vandalismo.
Mas os promotores do
Estado de Michigan ampliaram o alcance de tais estatutos legais no início deste
ano, quando apresentaram acusações contra os pais de outro adolescente autor de
um tiroteio.
James e Jennifer
Crumbley foram considerados culpados por homicídio culposo e condenados a 10
anos de prisão porque “sua negligência como pais contribuiu para que seu filho
de 14 anos, Ethan, matasse quatro de seus colegas de classe” em 2018.
A decisão de acusar o
pai de Colt de homicídio em segundo grau — que é uma acusação muito mais grave
— pode desafiar os limites legais da responsabilidade parental.
Eve Brank, psicóloga e
professora da Universidade de Nebraska-Lincoln, pesquisa como as leis intervêm
e às vezes interferem nas decisões tomadas em uma família.
Em sua opinião, esse
conceito emergente de punir os pais após um tiroteio reflete a frustração nos
EUA com a violência armada. E, na ausência de reformas que a regulem, demonstra
a incapacidade do país para acabar com os tiroteios que estão se tornando mais
frequentes e mortais.
“Não é que estamos
criando uma série de novas leis para resolver este problema. O que estamos
fazendo é usar as leis existentes para lidar com esta questão de uma forma
criativa”, explica Brank à BBC.
“E em termos do que o
estudo mostra, mais pessoas concordam que existem muitas influências no
comportamento das crianças, não apenas dos pais”, acrescenta.
Mas Brank admite que
os procuradores na Geórgia têm informações que ainda não são públicas sobre o
caso e acredita que podem argumentar com sucesso que, assim como no caso
Crumbley, as ações de Colin Gray foram particularmente negligentes.
Tim Carey, consultor
jurídico do Centro Johns Hopkins para Solução da Violência Armada, argumenta
que cobrar dos pais também é um reflexo das políticas de segurança com armas.
O estado da Geórgia
tem se mostrado "muito preocupado com as políticas de prevenção da
violência armada", diz ele.
Carey afirma ainda que
os promotores têm demonstrado "que só podem tentar gerar um senso de
justiça ou retaliação após o fato, em parte porque não conseguiram evitar"
tal tragédia.
• As consequências de acusar os pais
Alguns juristas temem
que a expansão do conjunto de ferramentas que os promotores podem usar após um
tiroteio possa ter consequências indesejadas.
“Sabemos que temos um
problema de violência e armas na nossa sociedade”, disse Ekow Yankah, professor
de direito e filosofia na Universidade de Michigan, à BBC.
“E em vez de abordar o
assunto com poderes sistêmicos e regulamentares, nos tranquilizamos com esse
tipo de processo extraordinário.”
Mas Yankah adverte que
os procuradores estão armados com “um martelo” com o qual podem atingir outras
pessoas, incluindo famílias pobres de grupos minoritários ou monoparentais.
“Os tiroteios em
escolas são muito visíveis... mas me preocupo com os casos que não apareceram
na imprensa”, diz.
E embora os pais
corram agora maior risco de serem penalizados pelas ações violentas dos seus
filhos, tem havido menos progresso no acesso generalizado a armas de fogo ou na
disponibilidade de recursos de saúde mental para crianças com dificuldades.
“Nossa resposta padrão
aos problemas sociais muito profundos nos Estados Unidos é incorporar o aparato
do direito penal”, conclui Bernick.
Fonte: BBC News
Nenhum comentário:
Postar um comentário