Meta de Pablo Marçal é 'fazer dinheiro com
a política eleitoral'
A arquitetura das
plataformas privilegia o aparecimento de figuras como Pablo Marçal. O
ecossistema das redes é feito para engajar e dar mais visibilidade para
conteúdos de baixa qualidade, polêmicos e teorias que alimentam a extrema
direita. Essas são constatações da antropóloga Letícia Cesarino, que conversou
com o Intercept Brasil sobre o papel das redes sociais nesta eleição.
Existem vieses
técnicos embutidos no design dessas tecnologias, dos algoritmos, que nos ajudam
a entender porque a política está caminhando para uma certa direção. “A lógica
da economia da atenção leva a promoção de conteúdos de pior qualidade
informacional, de pior qualidade do que seria os critérios de um debate
democrático”, explica Cesarino.
A economia da atenção
é um conceito que descreve como a atenção das pessoas se tornou um recurso
valioso na era digital. Agora os sites, aplicativos e mídias sociais competem
para captar e manter a atenção do usuário. E nesse quesito, Pablo Marçal, candidato
à prefeitura de São Paulo pelo PRTB, já ganhou. “Ele é um empreendedor da
economia da atenção e todo mundo só fala nele”, enfatiza Cesarino.
Diferentemente de 2018
e 2022 – onde o bolsonarismo utilizava muitos robôs, automação, disparos em
massa de fake news, tudo arquitetado pelo chamado gabinete do ódio –, agora
Pablo Marçal utiliza uma comunidade de seguidores que espalham seus conteúdos. O
esquema Cortes do Marçal entrou na mira da Justiça Eleitoral e as contas foram
suspensas. O Intercept mostrou que Marçal chegou a premiar um perfil que
publicou um vídeo com campanha negativa contra Guilherme Boulos, do Psol.
Cesarino é professora
e pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina. Ela é autora do livro
“O mundo do Avesso: a verdade política na era digital”, publicado pela editora
Ubu.
<><> Leia
a entrevista na íntegra:
• Como a arquitetura das redes sociais
favorece o aparecimento de figuras como Pablo Marçal?
Letícia Cesarino – Os
algoritmos de recomendação que promovem a viralização de conteúdos e constroem
essa espécie de arquitetura de pirâmide, que eu acho que é muito o estilo do
Pablo Marçal, da comunidade que ele criou, certamente se beneficiam desse ecossistema.
O caso Marçal é
interessante porque ele condensa várias dimensões que são do contemporâneo,
entre elas, os vieses técnicos que as plataformas têm nas suas arquiteturas
algorítmicas. Mas ele articula isso com outras dimensões que são importantes
também, como a própria lógica da economia da atenção.
Os algoritmos são
parte da economia da atenção, que é um modelo de negócio, baseado na venda da
atenção dos usuários para anunciantes e que acaba criando um espaço, um tipo de
esfera pública de baixa qualidade de conteúdo.
• Privilegia conteúdos polêmicos, é isso?
O conteúdo é menos
importante do que a performance dele, dentro dos critérios da economia da
atenção. Uma das coisas que já está clara a essa altura é que a própria lógica
da economia da atenção leva a promoção de conteúdos de pior qualidade
informacional, de pior qualidade do que seria os critérios de um debate
democrático.
Por exemplo, discutir
programa de governo, discutir questões complexas, discutir política pública. O
tipo de comunicação que seria mais saudável para democracia, a economia da
atenção, como um todo, inclusive os algoritmos, privilegia o oposto. Ou seja, o
conteúdo sensacionalista, que gera revolta, que gera indignação. Mas, pode ser
também um conteúdo de viés mais humorístico, que é uma dimensão que aparece na
comunidade do Marçal também. Não só questão da lacração.
• Isso aparecia no Bolsonaro também,
certo? Pode explicar as diferenças entre Marçal e o Bolsonaro?
Isso estava no
Bolsonaro também e em vários políticos da extrema direita, um certo ceticismo
em relação à política. Mas no caso do Marçal, especificamente, é uma atitude
mais subjetiva, mais no sentido de desistir da política democrática como uma
forma de transformar as coisas.
É uma
instrumentalização da política eleitoral para outros fins. O que revela é um
desprezo pela política eleitoral, pela política democrática. E esse fim, no
caso do Marçal, muito explicitamente, é ganhar dinheiro.
Isso é uma dimensão
que já estava lá atrás no bolsonarismo, só que ela ainda estava submetida a
objetivos de ordem política e ideológica, embora se possa discordar e disputar
a coerência dessa ideologia, ainda havia um pano de fundo ideológico que motivava
aquelas pessoas. No caso do Marçal é
pior. Parece que mesmo essa dimensão ideológica, de uma ideologia conservadora,
não é que ela está ausente, mas ela está claramente submetida a esse imperativo
de ganhar dinheiro e de se projetar dentro da lógica da economia de atenção.
Então, me parece que o
Marçal é um passo além do Bolsonaro ainda no sentido desse englobamento da
lógica da democracia, pela lógica da economia da atenção. A materialidade das
plataformas é a base disso, no fim das contas, porque mesmo que tenha uma estratégia
que ele construiu, o elemento humano é muito importante e não só o elemento
algoritmo.
É uma conclusão
lógica, tanto que na política pré-digital eleitoral esse tipo de coisa não
acontecia. Embora você tivesse os candidatos caricatos e anti sistema, vários
chegaram a ser eleitos, inclusive o Tiririca, mas criar uma comunidade inteira,
angariar pessoas em torno disso da forma como que está acontecendo, seria
impossível sem os espaços das redes sociais.
• E a cada eleição notamos que uma
plataforma ganha destaque. Essa é uma eleição Instagram?
É interessante notar
que a cada eleição, a plataforma mais central vai mudando. Quando Jair
Bolsonaro tomou posse o povo estava no Facebook e WhatsApp. Em 2022, essas
ainda se mantiveram, mas na esfera pública digital, outras plataformas foram se
tornando importantes também, o próprio Telegram foi uma novidade, o Instagram e
o Tik Tok, as plataformas de vídeo em geral, elas ganharam nos últimos anos uma
centralidade que não tinham antes.
Isso tem a ver com
várias razões, inclusive capacidade de processamento. O vídeo tá muito mais
acessível para ser consumido e, aqui tem um ponto chave, está mais acessível
para ser produzido. Porque hoje você tem aplicativos desses cortes que os
seguidores dele fazem.
Há cinco anos isso não
era tão simples. Você tinha que fazer no computador, você tinha que pagar pelo
software. Agora você tem esses aplicativos grátis, ou com pelo menos a versão
gratuita já dá para você fazer cortes, fazer legendas. Então, é muito rápido, é
muito mais fácil e muito mais acessível para qualquer um, não exige uma grande
habilidade técnica.
• Em torno do Marçal tem uma comunidade de
seguidores dedicados. Em 2018 vimos a utilização de muito robôs, disparos em
massa. Como você avalia isso?
Chama bastante a minha
atenção o fato de no esquema dele estarem pessoas fazendo a divulgação. Em
2018, 2022 tinha muito bot, muita automatização, era robô para comentar no
Twitter, por exemplo. Agora não, ao que tudo indica, são humanos. Também tem
uma motivação política, mas é uma política mais cética do que no bolsonarismo
ideológico, do que um conservadorismo ideológico. E a meta é fazer dinheiro com
a política, fazer dinheiro com a política eleitoral. Isso está escancarado
agora.
E não é que não
existisse antes, no próprio bolsonarismo tinha a questão econômica. Mas esse
elemento de monetização, seja monetização direta pelas plataformas, seja
monetização indireta, agora no Marçal ganha esse aspecto piramidal. E uma outra
característica, é que ele distribui em praticamente todas as plataformas, a
pessoa que participa do esquema pode escolher em qual plataforma quer atuar.
No Telegram, por
exemplo, tem grupos com pessoas que estão no esquema mais tempo – e isso é uma
característica da pirâmide: quem entrou antes ganha mais – onde ele vende a
membership, a entrada do grupo por R$ 100,
algo assim. E dentro desse grupo fechado ele vai ensinar essas outras
pessoas como ganhar dinheiro com os cortes do Marçal. Tem grupos com 50 mil
pessoas, ou seja, só com esse membership essa pessoa já ganhou muito dinheiro.
Um outro exemplo é um
influenciador de Instagram que mostrou o comprovante do pix que ele recebeu da
empresa do Marçal e naquele mesmo post ele já tava vendendo um curso de como
ganhar dinheiro dentro desse esquema. Então, tem esse esse aspecto de pirâmide
financeira.
É diferente do esquema
do bolsonarismo, porque os intermediários do bolsonarismo tinham esse papel de
estar organizando a comunidade, mas eles se beneficiavam de outras formas.
Claro, sempre tem um que dá curso, como o próprio Nikolas Ferreira, que sempre
tem esse esquema de vender livro, curso. Mas eles, muitas vezes, ganhavam se
alçando a uma plataforma política para eles mesmo serem eleitos, e isso não
parece ser tanto caso aqui. Esses intermediários do Marçal têm o objetivo
realmente de ganhar dinheiro.
E aí de novo você tem
esse descolamento do bolsonarismo, de estar envolvido em política eleitoral
para fazer política, tentar melhorar a política. Nesse caso não me parece que
seja essa a intenção, nem por parte dos seguidores da base da pirâmide, nem dos
intermediários e nem do próprio Pablo Marçal. Não me parece que o objetivo dele
seja ganhar a eleição necessariamente.
Eu nem sei se ele
gostaria de ser eleito, é alguém que realmente não tem plataforma
política, não tem programa de governo.
Mas eu acho que existe a chance de que a candidatura seja impugnada porque ele
está de forma muito explícita cruzando várias linhas regulatórias com relação a
legislação eleitoral.
• E agora ele começou a incomodar a
família Bolsonaro.
Ele está ameaçando
políticos do establishment, como o próprio [Ricardo] Nunes. Então, se interessa
a classe política parar o Pablo Marçal, a chance de isso acontecer obviamente é
muito maior. O pano de fundo desse caso do Marçal é essa tensão entre a política
e a lógica da economia da atenção, da qual os algoritmos fazem parte.
• Pablo Marçal já ganhou, mesmo ele não
ganhando a eleição, tendo a candidatura impugnada?
Sim, porque ele é um
empreendedor da economia da atenção e todo mundo só fala nele.
Esse modo como ele usa
essa ecologia de plataformas de uma forma mais complexa, mais extensiva que o
próprio bolsonarismo é algo interessante de acompanhar. E tem essa novidade do
Discord como uma plataforma de organização. O Discord é conhecido por conta do
extremismo e da radicalização. Começamos a ouvir falar dele, por exemplo, no
ano passado quando o Ministério da Justiça, por conta daquela onda de ataques
em escolas, passou a investigar as comunidades nessa rede. Essa é uma
plataforma voltada para os mais jovens.
E o Discord em si não
é usado tanto para replicar os cortes, ele é uma base de organização desse
esquema, assim como o Telegram também é importante do ponto de vista da
organização.
Os caminhos de
distribuição do conteúdo do Marçal são vários. É claro que nos concursos ele
define quais plataformas as visualizações vão ser contabilizadas. Mas não são
só os concursos, têm outras formas de ganhar dinheiro promovendo a imagem do
Pablo Marçal. É quase uma coisa do ‘corpo digital’ lá que eu falava do
Bolsonaro, existe esse corpo digital do Pablo Marçal, onde essas pessoas de
certa forma querem ser o Pablo Marçal. Ele tem esse discurso muito explícito de
que qualquer um poderia ser o que ele é, essa coisa do empreendedorismo, da
técnica de desbloquear a prosperidade.
E isso é um elemento
que também não tinha não tinha no bolsonarismo, a questão do desbloqueio da
prosperidade, de novo nessa chave mais ideológica da extrema direita, esse tema
vinha mais nessa figura do inimigo. Se você tirar os políticos corruptos, você
faz uma intervenção militar para limpar o Brasil. Aí o Brasil vai prosperar.
Era aquele populismo mais clássico.
Agora não seria
populismo, é puramente econômico mesmo e muito individualista. Não tem essa
coisa do povo, do coletivo que o bolsonarismo trabalhava. E não é que não tem
um coletivo, mas é esse coletivo de uma espécie de ecossistema, onde as pessoas
aprendem juntas como prosperar por conta própria. É mais individualista o
esquema.
• E como o estado tem que atuar para
responsabilizar as plataformas?
Não, a questão da
regulação no Brasil não avança. Se você pensar que PL 2630 tinha o apoio do
Arthur Lira, da Globo, e nem assim ele andou. E agora a gente vê algo muito
parecido acontecendo com o PL 2338 sobre
Inteligência Artificial, que é um projeto do presidente do Senado
[Rodrigo Pacheco] e ele também não está andando. Então, eu acho que não vai ter
regulação em um curto prazo.
O que pode ser uma
oportunidade que esse caso do Marçal coloca, já que ele está pisando no pé de
tanta gente, é tentar estabelecer um limite mais claro entre a economia da
atenção e a política eleitoral.
O Pablo tem uns vídeos
que são mais agressivos contra o Boulos, com difamação, mas não é uma campanha
de discurso de ódio de fato como era ali o bolsonarismo com o conhecido
gabinete do ódio. Então, ele nem recai tanto nessa linha nessa demanda de
regulação de plataforma por conta dessa produção em massa de mentiras, de ódio
,de discurso conspiratório.
Seria mais um caso de
estabelecer uma linha clara de até onde os incentivos e padrões de atuação da
economia da atenção podem estar entrando na política eleitoral. Seria o caso de uma regulação que delimite
essa fronteira de forma muito mais clara e muito mais rigorosa. E isso eu já
acho mais viável de acontecer.
Tem uma promiscuidade
completa entre pessoa pública e pessoa privada. Então, o pastor que sai
candidato, o delegado que sai candidato e usa o seu chapéu de delegado para ser
eleito. Tem policiais militares com canais no YouTube, essas pessoas se
projetam nessas plataformas e, eventualmente, saem candidatos depois.
Talvez a partir desse
caso do Marçal seja possível traçar uma linha regulatória mais clara entre
essas duas realidades: a política eleitoral e a lógica própria da internet.
O ideal seria avançar
um pouco mais no caso desses parlamentares que são eleitos pela internet, pode
ser do executivo também, mas uma vez com seus mandatos eles continuam atuando
através da lógica da economia da atenção.
Mas aí talvez eu esteja sendo otimista demais. Se conseguir só traçar
essa linha mais clara em termos de a forma como alguém como Pablo Marçal atua e
impedir que ele seja eleito nesses termos, já vai ter sido um grande avanço.
Fonte: Por Bianca Pyl,
em The Intercept
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