quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Emergency em Gaza: “Aqui na área humanitária no meio de uma multidão acostumada à dor”

O acordo sobre a trégua entre Israel e o Hamas foi alcançado em 90%. E os 10% ainda em discussão não dizem respeito ao “corredor Filadélfia”, a faixa de 14 quilômetros entre Gaza e o Egito sobre a qual Tel Aviv gostaria de manter o controle militar. No dia seguinte ao aparente fechamento do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que descartou a retirada da zona-tampão, como o grupo armado gostaria, o governo dos EUA tentou corrigir o rumo.

O embaixador em Tel Aviv, Jack Lew, reiterou que as negociações “continuam a progredir, mesmo em questões fundamentais”. Ele acrescentou: as conversações “abordaram as questões mais difíceis, algumas das quais não são objeto da maioria dos debates públicos”. Um dos dossiês pendentes seria o dos presos palestinos a serem libertados em troca dos reféns israelenses. Os milicianos gostariam que fossem 800 em vez dos 150 iniciais, entre os quais alguns condenados à prisão perpétua por matar civis. Suas exigências teriam se enrijecido nos últimos dias, afirma Washington, sem esconder uma certa preocupação. No entanto, o “nó relativo ao corredor Filadélfia” continua voltando ao centro do debate. Ontem, o exército do Cairo realizou uma inspeção surpresa, ao final da qual garantiu a eliminação dos túneis. Netanyahu, no entanto, parece não estar convencido: ontem mesmo ele definiu a área de “porta de entrada do Irã para a Faixa”.

A intransigência do Netanyahu seria devida, na verdade, a um fator muito distante do corredor em torno de Rafah: a votação nos EUA. Essa é a tese defendida pelo New York Times que, citando altos funcionários em Washington, acusa o primeiro-ministro israelense de protelar na espera de conhecer o novo inquilino da Casa Branca. Este último, por sua vez, coloca a responsabilidade no Hamas. “É culpa dele que o acordo não esteja próximo”, reiterou em uma entrevista à Fox News. Enquanto isso, o número de mortos continua a aumentar. Atualmente, são quase 41.000 os mortos na Faixa, de acordo com o Ministério da Saúde local, controlado pelo Hamas. E a esperança de que os sequestrados voltem para casa – sobre os quais o grupo armado não se cansa de divulgar vídeos para manter alta a pressão – diminui mais a cada dia.

A sede que compartilham com outra ONG é um prédio de um andar com pátio. De um lado, o portão de entrada. Nos três lados restantes, tendas. “Se eu olhar da varanda, vejo deslocados. Aqui havia campos e terras não cultivadas, o solo é semidesértico. Agora é uma extensão de tendas leves ou estruturas improvisadas: duas tábuas de madeira e uma lona. Ainda faz mais de 30 graus e a umidade está entre 60 e 70%. Imagino o que acontecerá quando as chuvas chegarem”. Stefano Sozza, chefe de missão da Emergency na Faixa de Gaza, fala de al-Zawayda, ao norte de Deir al-Balah, na “área humanitária”. Ao chegar em 15 de agosto, ele e seu colega especialista em logística identificaram o terreno onde construir a clínica de campo.

<><> Eis a entrevista. 

·        Essa é a primeira vez que a Emergency está em Gaza. Você já havia trabalhado lá com outra ONG. O que encontrou?

Em 2017, tínhamos um escritório na Cidade de Gaza. Para chegar a Rafah pela estrada costeira, a Rashid Road, levava meia hora. Era tranquilo. Agora, para chegar a Khan Yunis, pouco mais da metade do caminho pela mesma estrada, levamos no mínimo duas horas. Uma infinidade de pessoas. Milhares de crianças. Não adianta buzinar, as pessoas não se afastam. Tomadas por um cansaço latente.

·        Não vai dizer que há trânsito...

Há trânsito de carroças puxadas por burro, bicicletas e pedestres. Nos 46 quilômetros quadrados da área humanitária, quase 2 milhões de pessoas estão amontoadas. Que perderam tudo. O barbeiro corta os cabelos sob duas tábuas e um pedaço de lona. O padeiro faz o mesmo. Eles inventam pequenos negócios ao longo do caminho. Até porque não há espaço em outro lugar. Há poucos carros, com o diesel custando 15 euros por litro no mercado negro. Antes de 7 de outubro, custava menos de um euro. É uma economia de guerra.

·        Como vocês se deslocam?

Na passagem de Kerem Shalom, entramos com o comboio blindado da ONU. Aqui nos deslocamos com SUVs alugados, sempre dois por prudência. Informamos o exército sobre nossas coordenadas de partida e chegada e os tempos estimados. Ficamos dentro da área humanitária. Fizemos várias inspeções para conhecer o terreno.

·        E o que viram?

Indo para o sul, na área costeira de al-Mawasi, há tendas até na praia. Mal se consegue ver o mar. O mesmo acontece em direção ao interior. Com exceção das áreas urbanas, ou o que restou delas, de Deir al-Balah até Khan Yunis é um acampamento ininterrupto. Também é por isso que não foi fácil encontrar o terreno.

·        Onde o encontraram?

Na província de Khan Yunis, a um quilômetro do mar. Um terreno privado cercado. Iniciaremos a construção nas próximas semanas. Será uma clínica de campo que oferecerá serviços de saúde primária. Uma estrutura leve, fácil de evacuar. Laminados corrugados e painéis isolantes. Três ou quatro ambulatórios, uma sala para doenças infecciosas e uma sala de emergência.

·        Nada de cirurgia de guerra?

Os poucos hospitais em funcionamento o fazem. O que os congestiona é a pressão do atendimento em saúde primária: trauma civil, acidentes, atendimento pós-parto.

·        Não há feridos na área humanitária?

O risco é muito menor do que em Gaza ou Rafah, mas houve bombardeios. Outra noite, por volta das 3h30 da manhã, ouvimos duas fortes explosões. Pela manhã, soubemos que houve um ataque perto do hospital al-Aqsa em Deir-al-Balah. Também costumamos ouvir tiros entre as tendas. Brigas de família. Violência traz violência.

·        Circulam armas entre os deslocados?

Como em todos os países em guerra. Quando eu estava no Afeganistão, muitas vezes me deparei com acertos de contas por motivos triviais. O nível de estresse pós-traumático daqueles que não estão mais no controle de suas vidas exacerba qualquer tensão. E quando oito pessoas vivem em uma tenda, não faltam desentendimentos. Lembra o lockdown da Covid. E lá tínhamos tudo.

·        Que tipo de contato vocês têm com a população?

Durante as inspeções, as pessoas se aproximavam. Primeiro por curiosidade. Depois, eu via um lampejo de esperança em seus olhos. Começavam a pedir. Comida, sabão, Internet. Um sabonete custa 10 euros. Os vendedores de sementes os ofereciam para nós. Não é fácil fazer uma inspeção e entender que não se pode operar naquela área. Eles nos diziam: obrigado por estarem aqui.

·        Quando vocês estarão operando?

O mais rápido possível, estimamos que em meados de outubro. Recebemos a autorização para construir e estamos no processo de seleção da equipe local: cerca de 20 pessoas, entre pessoal da saúde e não. No início de outubro, deveriam chegar quatro ou cinco médicos e um obstetra do exterior. Cada especialidade profissional terá duas pessoas, que serão revezadas a cada seis semanas.

·        Quanto tempo você ficará?

Mais três meses. Até a primeira semana de dezembro.

 

¨      A agonia da Cisjordânia. Por Francesca Mannocchi

Dos campos de refugiados à Jihad: a infância dos milicianos marcada pelos ataques das forças de defesa israelenses. Como Abu Shujaa, 26 anos, celebrado como um herói, que Israel eliminou. Mas entre eles há aqueles que perderam a esperança: “A luta armada está destinada ao fracasso”.

Em abril passado, um jovem com o rosto encovado foi imortalizado andando pelas ruas de Tulkarem. Ele segura um rifle durante um cortejo fúnebre. Nada de novo para uma cidade acostumada com as procissões rituais que seguem a morte de combatentes após os ataques israelenses. Porém, aquele não era um jovem comum, era Abu Shujaa (“o pai da coragem”), líder das Brigadas de Tulkarem desde 2022, grupo afiliado às Brigadas Al-Quds, a ala militar do movimento palestino da Jihad Islâmica.

Abu Shujaa havia sido declarado morto dois dias antes. O exército israelense havia anunciado sua morte no final de uma operação no campo de Nur Sham: morto em uma casa onde estava escondido com seus homens. Uma operação, a israelense, que envolveu o serviço de segurança interna, Shabak, e a guarda de fronteira. Um ataque que durou dias e causou morte e destruição no campo de Nur Sham.

Mas Abu Shujaa não apenas sobreviveu, mas se mostrava nas ruas, entre as pessoas, que já o consideravam um herói, porque não era a primeira vez que as forças armadas israelenses tentavam eliminá-lo. Somente nos últimos meses, houve pelo menos três ataques contra ele. Além de um da Autoridade Palestina, que também o tinha em sua lista de procurados.

No final de julho, ele se feriu em uma explosão enquanto fabricava uma bomba, sua família o levou para o Hospital Governamental Thabet Thabet, em Tulkarem, a Autoridade Nacional Palestina ficou sabendo e tentou invadir o hospital, mas quando a notícia se espalhou pelo campo, os grupos armados palestinos declararam nafir, uma palavra que indica a mobilização popular. Enquanto as pessoas gritavam “traidores imundos”, os combatentes das Brigadas Tulkarem bloquearam o acesso ao prédio e obrigaram os homens da Autoridade Palestina a retirar-se, e depois dispararam contra as forças de segurança na sede local da AP.

Há uma semana, a maciça operação militar israelense que atingiu Jenin e os dois campos de Tulkarem realmente o matou. Abu Shujaa, líder das Brigadas Tulkarem, realmente morreu. Ele tinha 26 anos.

Mohammed Jaber, esse era seu nome, nasceu em 1998 em Nur Sham, um dos dois campos de refugiados de Tulkarem. Sua família, como quase todos os que vivem no campo, chegou lá vinda de Haifa após a nakba, o deslocamento forçado que, em 1948, obrigou 700.000 palestinos a deixar suas terras para nunca mais voltar. Ele nasceu no campo, cresceu no campo, estudou no campo antes de abandonar a escola porque as condições econômicas de sua família eram insustentáveis e os cinco filhos tinham que trabalhar. Aos 17 anos, ele já fazia parte dos grupos armados e, alguns meses depois, já estava na prisão. No total, ele passou cinco de seus 26 anos nas prisões israelenses e alguns meses em prisões da Autoridade Nacional Palestina.

Em 2022, foi cofundador do Batalhão de Tulkarem com seu primeiro comandante, Saif Abu Labdeh, que mais tarde foi morto. Pessoalmente alinhado à Fatah, deixou o partido após o início da ofensiva em Gaza em outubro de 2023 e se juntou à Jihad Islâmica Palestina. Em sua última aparição, uma entrevista em meados de agosto ao canal libanês Al Mayadeen, disse: 'Se o inimigo me assassinar, continuaremos. A luta não termina com uma pessoa, haverá gerações que se levantarão para defender os nossos direitos”. Ele sabia que seus dias estavam contados, procurado há anos porque havia planejado ataques em toda a Cisjordânia, contra soldados israelenses, postos de controle, e até um tiroteio que matou um soldado israelense em Qalqilya em junho. Nos últimos meses, o batalhão que ele comandava havia desenvolvido novas técnicas de fabricação de explosivos e de criação de unidades no território de apoio logístico. Ele era o primeiro na lista de procurados de Tulkarem pelos israelenses e um herói para a maioria das pessoas no campo de Nur Sham.

Os campos após 7 de outubro

Desde o início da guerra em Gaza, Israel realizou 46 operações militares na área de Nur Sham e Tulkarem. A primeira em 19 de outubro e a última - a mais violenta - terminou há menos de uma semana. No total, 90 palestinos foram mortos e 130 casas foram demolidas. Para o exército israelense, as incursões em Tulkarem, assim como em Jenin, são necessárias para erradicar os grupos armados. Para os grupos armados, a violência é a única forma de resistência possível a uma ocupação que vem ocorrendo há décadas. Para os civis, os 12.000 palestinos que vivem nos dois campos de Tulkarem, cada ataque é uma punição coletiva. Foram destruídas as principais estradas, lojas, uma creche, um centro de juventude, escolas, sedes oficiais de organizações locais e três mesquitas foram parcialmente danificadas. As estradas de acesso e saída estão fechadas e são intransitáveis.

Nas ruas, após cada ataque, os moradores dos campos alternam raiva e desconforto. Alguns gritam contra os veículos israelenses, as crianças mostram os novos pôsteres que apareceram nos muros: há o rosto de Yahya Sinwar, o líder político do Hamas, e embaixo uma inscrição que diz: “você é nosso líder e honrará a memória do mártir”. O mártir é Ismail Haniyeh, morto em Teerã, supostamente por uma bomba israelense. Os rostos dos outros combatentes estão desenhados nos muros de todas as casas.

Alguns, mais afastados, falam de uma desolação diferente. Como Abu Omar, que mora no topo da colina em frente ao campo de Nur Sham, de onde vê tudo o que acontece durante os ataques. Ele foi um combatente na época da segunda intifada e passou quatro anos na prisão. Hoje ele diz: “Perdemos. A luta armada está fadada ao fracasso”. Ele diz isso para si mesmo e para os jovens de hoje.

Como era Abu Shujaa. Ele costumava lhe dizer que plantar artefatos explosivos no meio da estrada talvez explodisse um carro blindado israelense, mas, a longo prazo, faria com que as pessoas se voltassem contra ele, porque não importa o quanto os mártires sejam celebrados nos cortejos fúnebres, todos preferem um filho vivo a um morto.

“E, eu lhe dizia, um dos objetivos de Israel é nos dividir internamente. Fazer com que os primeiros a se rebelarem contra os grupos armados sejam os habitantes do campo”.

Em uma coisa, porém, todos no campo concordam: os grupos armados crescem quando todas as outras soluções fracassam. “A Autoridade Palestina fracassou há muito tempo”, diz Abu Omar, ”e é também por isso que os garotos sempre escolhem as armas primeiro. Aqueles que lutam hoje cresceram nos últimos 15, 16, 17 anos. Vejo esses garotos pegando fuzis, movendo dispositivos explosivos, e isso me deixa desesperado”. Suas palavras refletem um sentimento comum, não apenas nos campos, mas em toda a Cisjordânia. Ninguém mais confia nas soluções políticas, ninguém mais confia na Autoridade Palestina, que é vista por todos como uma entidade de colaboracionistas.

“O nível de apoio à luta armada na Cisjordânia antes de 7 de outubro era de cerca de 54%. Hoje, ele é de quase 70%. Portanto, vimos um aumento de cerca de 14 a 15 pontos percentuais, enquanto 62% apoiam a dissolução da Autoridade Palestina”, escreve Khalil Shikaki, cientista político do Palestinian Center for Policy & Survey Research. ”A percepção é de que hoje não existe opção política ou diplomática disponível para os palestinos. Se os palestinos estão insatisfeitos com o status quo, a única maneira de mudá-lo é a violência, a luta armada, a formação de grupos armados.

Esse é um raciocínio fundamental que a grande maioria dos palestinos de hoje apoia plenamente”. A cada incursão do exército, cresce o ressentimento entre a população local, especialmente entre os jovens. E os grupos armados, em vez de se enfraquecerem, se fortalecem em número e raiva.

Armed Conflict Location and Event Data Project, um projeto de coleta, análise e mapeamento de dados desagregados sobre conflitos, também estuda os grupos armados e os batalhões que surgiram ou se reuniram nos últimos anos. A organização mapeou os grupos armados ativos na Cisjordânia ocupada, verificando que o número dessas brigadas aumentou exponencialmente entre outubro de 2022 e setembro de 2023, e muito mais depois de outubro de 2023, período que corresponde à intensificação da presença das tropas israelenses na região e aos ataques quase diários posteriores. Em seu estudo, o Acled observou que “muitos membros desses grupos locais são jovens, muitas vezes sem qualquer treinamento prévio no uso de armas, nem com um background político ou uma estratégia além da resistência armada, operando por iniciativa própria sem uma hierarquia de comando”.

Uma forma articulada de dizer o que Abu Omar, de sua colina em frente a Nur Sham, diz de forma mais simples: “Tento dizer aos mais jovens que acreditem que podem ser úteis à causa palestina e que não pensar em quem os substituirá quando morrerem. Mas muitos deles já perderam a esperança. Eles só pegam em armas para dizer 'estamos vivos, nós também temos o direito de existir'”.

 

Fonte: Entrevista com Stefano Sozza, para Anna Maria Brogi, no Avvenire - tradução de Luisa Rabolini, em IHU

 

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