Território
Ribeirinho, criado para reparar Belo Monte, é alvo da extrema direita
Passados
sete anos de sua expulsão das margens e das ilhas do rio Xingu para dar lugar
ao reservatório da hidrelétrica de Belo
Monte,
cerca de 300 famílias ribeirinhas da região de Altamira, no Pará, ainda esperam
pelo território no qual pretendem recuperar seus modos de sustento e de vida. A
criação do chamado Território Ribeirinho, aprovada em 2019 pelo Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) como
maneira de reparação a essa comunidade tradicional, é uma das condições do
órgão ambiental no processo em que, neste momento, se examina a
renovação da licença de operação da usina. No entanto, a falta de
providências efetivas da Norte Energia, empresa concessionária da hidrelétrica,
para a criação do Território Ribeirinho, por um lado, e de cobranças efetivas
do Ibama para que ela cumpra essa condicionante, por outro, está alimentando
uma nova ofensiva dos ruralistas locais e de seus aliados em Brasília contra o
projeto, que exige a desapropriação de terras.
Em
junho de 2022, quando emitiu seu primeiro parecer sobre os requisitos para a
renovação da licença, o Ibama já apontava uma “postura ambígua” da Norte
Energia em relação ao Território Ribeirinho. Naquela ocasião, embora nem sequer
tivesse começado a implementar o projeto, a empresa chamava as famílias
potencialmente beneficiadas para confirmar seu interesse em ser assentadas. O
Ibama afirmou, então, que a posição da operadora de Belo Monte “exige por parte
das famílias atingidas uma resiliência desproporcional e pouco comum”.
Eduardo
Camillo, diretor de Relações Institucionais da Norte Energia, não dissipou essa
ambiguidade ao receber uma comitiva liderada pelos senadores Zequinha Marinho
(PL-PA) e Damares Alves (Republicanos-DF) no aeroporto de Altamira, no dia 23 de
março passado. Os dois políticos bolsonaristas haviam convocado uma reunião
aberta na cidade para discutir meios de impedir a criação do Território
Ribeirinho. Eles tentam formar no Senado uma comissão externa sobre o assunto,
que seria composta também por Hamilton Mourão (Republicanos-RS), general da
reserva que foi vice-presidente de Jair Bolsonaro, e Tereza Cristina (PP-MS),
ministra da Agricultura do governo de extrema direita.
O
encontro, em muitos aspectos, repetiu outro que havia sido realizado apenas 14
dias antes, em 9 de março, também em Altamira, e fora convocado pela própria
Norte Energia a pedido do Sindicato dos Produtores Rurais de Altamira, o
Siralta. Nesse encontro, o Siralta sugeriu que o tamanho do Território
Ribeirinho fosse drasticamente reduzido e que ficasse restrito à Área de
Preservação Permanente (APP) do reservatório da usina – faixa variável de até
500 metros de largura na beira da água pela qual os fazendeiros já haviam sido
indenizados durante o licenciamento de Belo Monte. Na proposta, em troca de
abrir mão de terras para uma roça de subsistência e a criação de animais como
galinhas, com a desapropriação de 8.400 hectares, as famílias ribeirinhas
receberiam pagamento por serviços ambientais – ou seja, uma remuneração para
conservar ou recuperar as APPs, coisa que nunca foi cogitada por elas no
projeto, que busca recompor seu modo de vida.
Em
resposta à proposta do Siralta, o analista do Ibama Henrique Marques Ribeiro da
Silva – que participava, por vídeo, da reunião de 9 de março – disse que os
questionamentos feitos pelo sindicato dos ruralistas eram antigos e tinham sido
superados pela aprovação, há quatro anos, do plano para o Território Ribeirinho
(TR) em seu atual formato. Ele mais uma vez cobrou a Norte Energia pelo atraso
na implementação do TR – a empresa não comprou, até agora, nenhuma das áreas
necessárias para fazer o reassentamento dos ribeirinhos, embora parte dos
fazendeiros tenha expressado a intenção de vendê-las.
Ainda
que o Ibama considere encerrado o caso apresentado pelo Siralta, Eduardo
Camillo não só recebeu Zequinha e Damares como também acompanhou a reunião
pública do dia 23, no Centro de Convenções e Cursos de Altamira. O diretor da
Norte Energia teve sua presença anunciada no auditório lotado por cerca de 200
participantes e assistiu ao encontro de mais de três horas. Não se pronunciou
nem quando o senador paraense prometeu aos ruralistas que sua primeira
providência seria chamar advogados a fim de tentar embargar o processo que
tramita na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para que os terrenos
necessários à criação do Território Ribeirinho sejam objeto de uma Declaração
de Utilidade Pública (DUP). A DUP apressaria as desapropriações e já conta com
um parecer jurídico favorável da Aneel, publicado em maio do ano passado. Porém
a decisão final não sai porque a operadora de Belo Monte, que protocolou o
pedido da DUP em outubro de 2021, demorou a fornecer informações e até cometeu
erros no preenchimento da solicitação, como mostram os autos do processo no
Ibama, examinados por SUMAÚMA.
A
Norte Energia se recusou a responder a todas as perguntas sobre o Território
Ribeirinho enviadas por SUMAÚMA, como a que questionava qual era o objetivo da
presença de Camillo na reunião comandada pelos senadores bolsonaristas Zequinha
Marinho e Damares Alves. Em vez de responder, limitou-se a dizer que “todas as
questões referentes ao Território Ribeirinho estão sendo tratadas diretamente
com o Ibama e os demais órgãos competentes”. O fato, contudo, é que a demora da
empresa abre caminho para a pressão dos ruralistas de Altamira contra a
conclusão bem-sucedida de um processo de reparação em que a comunidade
tradicional do rio Xingu assumiu o
protagonismo de sua história, numa mobilização que nasceu da destruição
promovida por Belo Monte.
·
A
resistência ribeirinha
Maria
Francineide Ferreira dos Santos acompanha essa mobilização desde o início.
“Ribeirinha nata”, nascida há 53 anos e criada no Paratizinho, uma das ilhas do
Xingu atingidas pelas mudanças no curso do rio, ela mora provisoriamente na ilha
Pedacinho do Céu: “Até sair meu território”. “Nós temos o direito de ter nosso
modelo de vida respeitado, porque antes de Belo Monte a gente já existia. A
nossa força não vem só da gente, vem do nosso direito, vem pela liberdade de
ter o que sempre tivemos e não temos mais”, disse Francineide numa entrevista
na sede do Movimento Xingu Vivo, em Altamira.
A
família dela e as dos demais ribeirinhos da região perderam tudo de que
precisavam para viver, mas não foram levadas em conta no processo de licenciamento
de Belo Monte até 2015. Foi nessa época, pouco antes da emissão da licença de
operação da usina, que muitas pessoas começaram a buscar a Procuradoria da
República em Altamira para contar que haviam recebido da Norte Energia uma
indenização que supostamente deveria compensar sua expulsão dos “beiradões” que
ocupavam no rio, mas era incompatível com a recomposição do seu modo de vida.
Ou então haviam sido intimadas pela concessionária a escolher entre o
reassentamento no campo, longe do Xingu, e nos bairros padronizados construídos
pela empresa nas periferias de Altamira, os Reassentamentos Urbanos Coletivos
(RUCs).
COMITIVA
Diante
das queixas, vistorias nas ilhas e margens do Xingu determinadas pela
procuradora federal Thais Santi – que em Altamira tem a atribuição de zelar
pelos direitos de comunidades tradicionais, indígenas e pelo meio ambiente –
levaram à “descoberta”, fato até então ignorado pela operadora de Belo Monte,
de que os ribeirinhos tradicionais têm duas casas: uma na beira do rio e a outra
na cidade, como ponto de apoio. Muitos deles já haviam sido vítimas de uma
violência anterior à remoção provocada pela usina, quando a consolidação das
fazendas, numa região onde impera a grilagem e poucos têm os títulos
definitivos de suas terras, os empurrou para as beiradas e ilhas do Xingu.
Frente
ao desafio de entender as necessidades dessa população desassistida, a
procuradora pediu a ajuda da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), que pôs seus especialistas mais renomados para escutar os ribeirinhos e
estudar seu modo de vida. O trabalho, coordenado pelas antropólogas Manuela
Carneiro da Cunha, professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), e
Sônia Magalhães, da Universidade Federal do Pará (UFPA), resultou num relatório
transformado em livro, A Expulsão dos Ribeirinhos de Belo Monte.
No
fim de 2016, na audiência pública em Altamira em que revelaram suas conclusões,
as antropólogas não apresentaram um projeto do Território Ribeirinho nem
definiram quem moraria nele. Disseram que os próprios integrantes da comunidade
tradicional na área de influência de Belo Monte deveriam reconhecer seus pares
e apresentar um plano de reconstituição do seu modo de vida. Foi criado então o
Conselho Ribeirinho, que assumiu a linha de frente do chamado “processo de
reconhecimento social”.
Ali,
consolidaram-se os critérios que definem a comunidade ribeirinha tradicional:
história no rio; fortes relações de vizinhança, que implicam compartilhar
experiências e cuidados com a roça e as casas caso alguma família precise se
ausentar temporariamente; mistura de atividades de pesca, roça de subsistência,
criação, caça e extrativismo; e as duas moradias, uma em que as pessoas vivem e
a outra, “na rua”, usada como ponto de apoio para acesso a saúde, educação e
venda de produtos como peixe ou farinha. A partir desses critérios, o Conselho
Ribeirinho identificou as famílias que deveriam ter seus direitos restaurados e
foi proposto o projeto do Território Ribeirinho, formado por três diferentes
áreas nas duas margens do Xingu, nos arredores da cidade de Altamira.
·
A
comunidade tradicional sob ataque
Na
reunião do dia 23 de março, tanto o modo de vida ribeirinho quanto esse
processo de mobilização comunitária estiveram sob ataque. A senadora Damares
afirmou que “ribeirinho é quem mora na beira do rio”, equiparando os donos de
fazendas junto ao Xingu aos integrantes das comunidades tradicionais. Jorge
Gonçalves, diretor do Siralta que tem uma propriedade sujeita a desapropriação
parcial para a criação do Território Ribeirinho, também disse acreditar que
ribeirinhos e produtores são igualmente “ribeirinhos”. “Alguns evoluíram um
pouco mais nas suas condições financeira, social, formaram seus filhos, os
levaram a outros mundos, mas a origem é a mesma”, argumentou. Depois, atacou os
acadêmicos reunidos pela SBPC: “Nós deixamos que alguém venha de fora, com suas
pastinhas, comandados e pagos por alguém, para que mude a vida social nossa”.
O
Conselho Ribeirinho não foi convidado para o encontro, mas, além dos fazendeiros,
havia ribeirinhos que desistiram de ir para o TR, pescadores, oleiros e pessoas
de outras comunidades que têm reivindicações ainda não atendidas pela Norte
Energia. O foco das intervenções, porém, foram os fazendeiros e posseiros que
podem vir a ser desapropriados para a implementação do Território Ribeirinho.
Durante
o evento, foi exibido um vídeo produzido pelo Siralta no qual apenas pequenos
proprietários que estão nessa lista deram seu depoimento. Uns disseram que
sairiam por “um preço justo”; outros, que não queriam sair por apego à terra,
como Ronaldo Rodrigues Vaz, goiano que está em Altamira há 43 anos e disse ter
apenas 43 hectares, onde mora com o filho mais velho. O advogado do Siralta,
Alfredo Bertunes, fez uma apresentação na qual afirmou que, das 94 propriedades
que seriam total ou parcialmente desapropriadas, a “grande maioria” é pequena.
“O projeto cria um antagonismo no campo. Esse projeto não é a única forma de se
atender a condicionante, existem outras formas com impacto menor na vida desses
produtores rurais”, criticou o advogado, levantando o fantasma da violência que
povoa a trajetória de Altamira, um centro de constantes conflitos agrários e
ambientais.
No
entanto, o vídeo e a conta de Bertunes são enganosos, pois há também grandes fazendeiros
da região de Altamira no rol de desapropriações que estão pendentes para a
criação do Território Ribeirinho, segundo um documento anexado ao pedido da DUP
feito à Aneel pela Norte Energia. O documento mostra, além disso, que algumas
pessoas acumulam a titularidade de várias propriedades que podem ser
classificadas como pequenas – ou com menos de quatro módulos rurais, segundo os
critérios do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em
Altamira, cada módulo rural tem 75 hectares. É o caso de Ilma de Melo, titular
de seis pequenas propriedades, e de Elisvaldo Menezes de Oliveira, registrado
como dono de cinco delas. Somando-se as propriedades de cada um, eles não podem
mais ser considerados pequenos proprietários. Já os notórios latifundiários da
região que estão na lista incluem o ex-prefeito de Altamira Wanderlan de
Oliveira Cruz (com três propriedades na área do Território Ribeirinho, num
total de 287 hectares, dos quais 218 seriam desapropriados) e a família
Lorenzoni (dona de duas fazendas, num total de 581,5 hectares, dos quais 389,2
seriam desapropriados), além da também ex-prefeita altamirense Odileida Maria
de Souza Sampaio (com uma propriedade de 405,7 hectares, dos quais 232,6 seriam
desapropriados). Há ainda duas empresas, a HD Empreendimentos – que tem, na
área do TR, uma propriedade de 4.130,9 hectares, dos quais 934 seriam
desapropriados – e a Ecopalma Agroindústria Palmiteira, com duas fazendas que
somam 868 hectares, dos quais 101 seriam desapropriados.
·
Ruralistas
e senadores bolsonaristas miram no MPF
Uma
queixa frequente dos fazendeiros é o preço oferecido pela Norte Energia, que
segundo eles apresentou valores de 2013 para as terras, sem reajuste, numa
região em que tudo ficou mais caro por causa de Belo Monte. A SUMAÚMA, Maria
Augusta da Silva Neta, presidenta do Siralta, disse que o sindicato dos
ruralistas contratou uma empresa e apresentou à operadora de Belo Monte “um
caderno de preços real”. “Temos aquelas pessoas que dizem ‘não tenho mais idade
para ir para outro lugar’, mas tem aquela pessoa que quer mudar, a topografia
nas áreas do rio não ajuda muito com maquinário. [Mas] O caderno de preços é
horrível, e, se criar a DUP, adeus”, afirmou ela. Mesmo cobrando um preço
melhor da Norte Energia pelas terras a ser desapropriadas, Maria Augusta
procurou desvincular a empresa do pedido de Declaração de Utilidade Pública
feito à Aneel. “A Norte Energia tem que cumprir as recomendações e
determinações que são impostas. O causador de todo esse problema é quem impõe isso.
É o Ibama, pressionado pelo Ministério Público Federal”, criticou.
A
artilharia contra o MPF, que em todo o processo relativo ao Território
Ribeirinho não entrou com nenhum pedido de ordem judicial, marcou também a
retórica de Zequinha Marinho e de Hamilton Mourão, que mandou uma mensagem por
vídeo para a reunião do dia 23. “O Território Ribeirinho é uma obra de ficção
imposta pelo MPF e encampada pelo Ibama”, disse o general reformado.
Questionada por SUMAÚMA, a procuradora Thais Santi, lotada em Altamira há dez
anos, disse que a retirada forçada e imposta pela hidrelétrica de Belo Monte
aos moradores ribeirinhos do rio Xingu é uma das mais graves violações de
direitos humanos identificadas em todo o histórico da usina. Segundo Thais, o
processo se orientou pela invisibilidade de uma população tradicional que
historicamente consolidou um modo de vida singular ligado à dinâmica do rio e
da cidade. “O papel do MPF nesse caso está centrado no esforço de evitar novas
violações de direitos humanos, silenciamentos e desrespeito ao modo de vida
ribeirinho, exigindo que o grupo tradicional do rio Xingu seja um sujeito ativo
desse processo”, afirmou a procuradora.
O
Conselho Ribeirinho não está parado. Parte dos 14 conselheiros esteve neste ano
em Brasília para conversas com o Ibama e os ministérios do Meio Ambiente e
Mudança do Clima, do Desenvolvimento Agrário e dos Direitos Humanos e da
Cidadania. Segundo o órgão ribeirinho, seus representantes ouviram do Ibama que
as reuniões dos opositores do projeto não mudam nada porque o território está
aprovado, dentro das condicionantes da renovação da licença de Belo Monte, e a
determinação deve ser cumprida pela Norte Energia. O conselho lembrou que havia
aceitado reduzir o tamanho do Território Ribeirinho em negociações com a
empresa, já que inicialmente a área prevista para desapropriação era de 32 mil
hectares.
Em
sua declaração conjunta, o conselho afirmou que, apesar da demora, a grande
maioria das famílias mantém a intenção de ir para o Território Ribeirinho. É o
caso de algumas famílias que, antes da aprovação do projeto do território,
foram alocadas pela Norte Energia em Áreas de Preservação Permanente (APPs) que
já haviam sido desapropriadas mas não se adaptaram e esperam um terreno maior,
pois nas APPs não são permitidas atividades de roça. Outras famílias assentadas
pela empresa nem sequer pertenciam a comunidades ribeirinhas tradicionais – e o
fato de terem abandonado as APPs é sempre citado pelos ruralistas como suposta
evidência de que o projeto todo está destinado ao fracasso. “Como é que pode no
século 21 você assentar uma família onde ela não pode cavar um poço, não pode
ter uma casa de alvenaria?”, questionou Jorge Gonçalves, o diretor do Siralta,
na reunião do dia 23 de março, talvez sem perceber a evidente contradição entre
sua fala e a proposta do sindicato dos ruralistas de que o Território
Ribeirinho fique restrito às Áreas de Preservação Permanente.
Os
ribeirinhos também receberam o apoio renovado das coordenadoras do relatório da
SBPC. Em carta ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), elas
manifestaram seu “estranhamento” com a comissão externa que Zequinha Marinho
pretende capitanear. A carta lembra mais uma vez que o Ibama aprovou o
Território Ribeirinho e a interlocução do Conselho Ribeirinho, mas “não tem
logrado até hoje o cumprimento de suas determinações por parte do Consórcio
Norte Energia”. “Solicitamos a Vossa Excelência e aos excelentíssimos senadores
que dispensem esforços para que o licenciamento ambiental de Belo Monte siga o
curso da lei e se implemente a reparação dos direitos dos povos tradicionais do
Xingu”, pede o texto de 28 de fevereiro, assinado por Sônia Magalhães e Manuela
Carneiro da Cunha.
·
Jogo
de empurra para vencer pelo cansaço
No
fim de dezembro, numa reunião com a Aneel, os representantes da Norte Energia
puseram seu próprio pedido da DUP em dúvida. Falaram, como mostra a ata da
reunião, das dificuldades nas tratativas com os fazendeiros a ser
desapropriados e disseram que “parte das famílias” ribeirinhas não quer mais ir
para o Território Ribeirinho acordado. A resposta da agência foi muito clara:
não lhe cabe a análise do mérito da condicionante do Ibama para a renovação da
licença de Belo Monte. Além disso, ressaltaram os representantes da Aneel, “a
gestão para aquisição das áreas para o atendimento de suas obrigações é de
responsabilidade do agente [a Norte Energia]”, que deve fazer isso “em
negociação amigável ou na Justiça na falta de acordo”. E mais: lembraram que a
DUP, com validade de cinco anos, “pode ser cumprida em parte ou na sua
totalidade” – a Norte Energia não seria obrigada a comprar todos os terrenos
incluídos na declaração caso parte deles não seja necessária.
No
dia 16 de março, a Aneel informou à Norte Energia que a análise do pedido da
DUP estava paralisada e deu à empresa dez dias de prazo para fazer duas
correções no processo. Os pedidos são prosaicos: a inserção no sistema
validador dos dados vetoriais das áreas que serão objeto da Declaração de
Utilidade Pública e a assinatura, por um responsável legal, do quadro que
resume o levantamento e a situação dessas áreas. Questionada por meio de sua
assessoria de imprensa, a Aneel não respondeu se essas seriam as últimas
pendências antes de uma decisão.
Desde
fevereiro, o Ibama vinha cobrando, em dois ofícios encaminhados à operadora de
Belo Monte, que a empresa respondesse a uma carta enviada no dia 1º daquele mês
por cinco proprietários de terras na área do Território Ribeirinho que não
fazem parte do Siralta, o sindicato dos ruralistas de Altamira. Eles diziam que
tinham sido contatados pela Norte Energia havia dois anos e informados de que
teriam que sair mediante indenização. Abriram suas fazendas para a inspeção das
benfeitorias, mas a empresa parou de dar notícias. “Não recebemos nenhum
retorno da empresa sobre o valor da indenização nem um prazo de quando vamos
receber e poder sair de nossas áreas”, diziam, manifestando sua vontade de
vender as fazendas rapidamente.
A
Norte Energia só respondeu aos ofícios em 10 de abril e não se referiu
diretamente à carta dos cinco proprietários. Disse que tenta comprar as terras
referentes ao Território Ribeirinho desde o ano passado, mas “a maioria dos
consultados se opôs à venda ou propôs valores bem acima da média do mercado”.
Desse modo, continuou a empresa, só lhe restava esperar a emissão da DUP pela
Aneel para “tomar as providências cabíveis”. A operadora ainda alegou que “o
MPF vem se opondo à compra de terras espalhadas, pois defende a criação de um
território único”.
No
entanto, se é verdade que o projeto prevê áreas contínuas para as famílias,
dada a importância das relações de vizinhança no modo de vida tradicional, em
nenhum momento o Ibama ou o Ministério Público disseram que isso exclui a
compra dos terrenos disponíveis desde já. Pelo contrário, no parecer de junho
do ano passado sobre as pendências para a renovação da licença de Belo Monte, o
órgão ambiental afirmou que a “aquisição [de terras] de forma amigável
independe de posicionamento do Ibama ou Aneel”.
A
situação da Norte Energia é, de certa forma, cômoda porque ela pediu a
renovação da licença antes de seu vencimento, em novembro de 2021, e a usina
pode continuar funcionando independentemente do tempo que o Ibama levará para
tomar uma decisão. Indagado se a empresa seria multada pelo atraso na adoção
das medidas exigidas para a implementação do Território Ribeirinho, o instituto
respondeu apenas que “a análise da condicionante está em curso”.
Apesar
de todo esse jogo de empurra e pressões que se estende por anos, com algumas
famílias vivendo em insegurança alimentar, a ribeirinha Francineide afirmou que
não desistirá: “O território vai trazer vida no meio de toda a violência, por
isso a gente luta, às vezes sem nem pensar em nós mesmos. A identidade e a
cultura ribeirinhas têm que ser respeitadas de geração em geração, porque
sempre habitamos as margens do rio, nas ilhas e igarapés, desde que o mundo se
entende por mundo”.
Fonte:
Sumaúma
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