Ronaldo Lima Lins:
Lição de política
Qual
o propósito da política?
Na
atual conjuntura da vida social brasileira, por força do crescimento das hordas
do extremismo direitista, fomos perdendo a noção de como e por que se constitui
a atuação política. Ela se transformou, a partir do governo Bolsonaro e agora
com seus seguidores, em manifestações de agressividade e ódio que nos deixam a
léguas de distância do que os gregos, com sua visão de democracia, pretendiam
comunicar como a razão de ser da convivência humana. Uma visita aos debates no
Congresso Nacional transmite uma tristeza que apenas cresce, sessão por sessão.
No entanto, não se deve esquecer que a participação política é uma coisa boa,
indispensável para o avanço de qualquer país, se considerarmos que o mundo
pretende melhorar e se aprimorar.
Na
Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, com a presença do Ministro
Silvio Almeida e parlamentares de expressão de várias colorações, assistimos a
um embate que separa o que vale a pena, o que é bom, do que não se deve fazer
nas discussões que se travam. Isto se considerarmos que há maneiras boas e más
de ‘fazer política’. Em determinado instante, o senador Eduardo Girão,
aparentemente esquecido das reais definições de seu cargo, levantou-se, a
partir de uma pequena conspiração com a também senadora Damares Alves (mas esta
já por demais conhecida por seus exemplos de conduta bizarra), para levar “um
presentinho” à autoridade que discorria na mesa. Tratava-se de uma réplica de
um bebezinho, um feto, de 12 semanas. Silvio Almeida botou um freio na
representação. Não aceitaria, disse, a encenação espúria de algo que
representava tanto entre as mulheres e homens na sociedade brasileira. Brincar
com o assunto infringiria, sem dúvida, os ditames da política. E acrescentou:
“Em nome da minha filha, que vai nascer, eu me recuso a receber isso”. Girão
realizou um giro de 180 graus, surpreendido com a reação da autoridade, pôs o
rabo entre as pernas e retrocedeu. Voltou ao assento ao lado da comparsa,
Damares Alves. Foi uma lição! É possível que nunca mais torne a desfraldar
daquela maneira vil a má qualidade das suas atuações. O público aplaudiu de pé.
Flávio Dino saudou o colega de ministério. Janja, de onde se encontrava, não
pôde deixar de aclamar.
É
preciso frisar que política e ódio, ao contrário do que virou moda, não se
misturam. O bom político é aquele que ama os seus contemporâneos, que luta para
lhes melhorar as condições de vida. Exibir socos, coices e bofetadas, tirando
os esportes em que se organiza a atividade dentro de regras específicas, não
cabe nas assembleias de gente votada como representante da população.
Infelizmente, o que assistimos com uma frequência de doer o coração tem mais a
ver com rancor do que com o espírito de humanidade. Ionesco, se testemunhasse
as cenas do nosso Congresso, com Girão, Damares e companhia, ficaria perplexo.
Com eles, a realidade supera a paródia. Ali se encenam até o esgotamento
situações da peça A lição, na qual comenta e se diverte com as nossas
incapacidades de comunicação. Por outro lado, vendo Silvio Almeida... -, que
conforto experimentamos na alma! Ficamos com a sensação de que chegamos lá.
Ø
Quarentena
da cegueira nacional. Por Marcio Pochmann
A
passagem da segunda para a terceira década do século 21 atendeu a uma espécie
de viagem às trevas. Força disso tem sido a quarentena da cegueira nacional que
parece aprisionar o Brasil à mediocridade das superficialidades e de
inconsistências dos discursos e práticas dominantes.
Pela
obra-prima de José Saramago (1922-2010), Ensaio sobre a cegueira (1995),
nota-se o quanto as pessoas podem se tornar cegas no mundo contemporâneo quando
o colapso geral da sociedade sedimenta a atomização dos interesses próprios e a
centralização dos projetos pessoais. Em 2019, ao completar o primeiro ano do
governo Bolsonaro, o país consolidaria as consequências da primeira década
econômica perdida do século 21.
Certamente,
estas são consequências muito mais graves e piores do que as observadas durante
os anos 1980, nos quais a expansão média anual do Produto Interno Bruto (PIB)
foi de 1,5%. Entre os anos 2011 e 2020, por exemplo, a variação média anual do
PIB foi de apenas 0,3%, cinco vezes inferior à verificada na década de 1980,
reconhecida também como economicamente perdida.
Não
bastasse a herança do passado recente, o Brasil retrocedeu mais com o mandato
presidencial bolsonarista, especializado na destruição daquilo que ainda
insistia em existir como espaço público. Essa destruição foi imposta pela
operada desmontagem das políticas públicas e da própria soberania nacional. A
pandemia da Covid-19 ecoaria com eloquência ainda maior o descompromisso
governamental com a vida do seu povo, a essência da consistência existencial de
uma nação.
Com
6,9 milhões de vidas perdidas no mundo pela pandemia viral, o Brasil contribuiu
com 701 mil mortes. Apesar de deter a sétima população do mundo, o país ocupou
o segundo posto na hierarquia de mortos pela Covid-19, somente abaixo dos
Estados Unidos. Com menos de 3% da população mundial, o Brasil respondeu por
10,2% do total das mortes no mundo, ocasionada pela mais grave pandemia desde a
Gripe Espanhola em 1918.
A
diversidade de narrativas sobre o quotidiano de um povo profunda e
continuadamente sofrido decorre do abalo significativo nas estruturas pela
ruína da sociedade industrial, na queda na qualidade de vida, no rebaixamento
nas expectativas de horizonte das pessoas e no colapso moral. Tudo isso
parecendo indicar o espalhamento de uma quarentena da cegueira nacional em
analogia ao romance de José Saramago.
Na
segunda metade do século 19, liberais brasileiros cosmopolitas como Joaquim
Nabuco (1849-1910) e outros também identificaram e se indignaram com uma
espécie de cegueira nacional que tomava conta do país sob o período imperial
(1822-1889). Como se estivessem em quarentena, os cegos da nação daquela época
não percebiam o espalhamento do atraso brasileiro entrelaçado por relações de
trabalho forçado, pela incapacidade das elites de se envergonharem da triste
realidade e permitirem formar maioria política capaz de mudar o rumo do país em
direção à “família de nações civilizadas”.
O
confuso e apavorante atraso que toma conta da nação neste início do século 21
vai muito além do raquítico desempenho econômico e suas consequências funestas
para a sociedade. A pobreza das ideias parece maior que o fosso da escassez
material que compromete a essência do modo de vida geral, sobretudo do andar de
baixo da população brasileira.
O
atraso econômico se combina com a procrastinação das elites em tratar do que é
crucial na definição dos destinos possivelmente alvissareiros da nação. O
Brasil segue se perdendo entre correntes especializadas no aprisionamento do
passado, com a desutilidade marginal do tempo comprometido, por exemplo, com o
tamanho do Estado e a restrição do gasto público num país que tem dívida
pública líquida relativamente reduzida em relação ao PIB e somente em moeda
nacional.
Para
os que não aceitam o calmante da quarentena da cegueira nacional que abunda no
país, cabe lembrar e mencionar o debate que se trava junto à “família de nações
civilizadas”. Temas quase distantes e imperceptíveis na agenda do Brasil seguem
às vezes intactos como a democracia, o autoritarismo e o futuro da governança
diante da inovação e transformação digital, a competição e soberania nacional
em nuvem, a política com robôs auxiliares e as mudanças no equilíbrio de poder,
o sentido da miragem, metaverso e realidade ampliada para a sociedade, a
manipulação proposital dos genomas e seus impactos demográficos, entre muitos
outros.
Em
discordância com a quarentena da cegueira nacional, o blog Terapia Política se
insurgiu há três anos completados agora. Ousando ser diariamente o espaço de
ideias e discussão sobre ameaças ao sistema democrático e alternativas e
possibilidades de construção do desenvolvimento soberano, sustentável e menos
desigual, o blog segue em frente, persistindo na urgência das exigências da
transformação e integração do Brasil ao horizonte da “família de nações
civilizadas”.
Fonte:
Brasil 247/Terapia Política
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