quarta-feira, 3 de maio de 2023

Ronaldo Lima Lins: Lição de política

Qual o propósito da política?

Na atual conjuntura da vida social brasileira, por força do crescimento das hordas do extremismo direitista, fomos perdendo a noção de como e por que se constitui a atuação política. Ela se transformou, a partir do governo Bolsonaro e agora com seus seguidores, em manifestações de agressividade e ódio que nos deixam a léguas de distância do que os gregos, com sua visão de democracia, pretendiam comunicar como a razão de ser da convivência humana. Uma visita aos debates no Congresso Nacional transmite uma tristeza que apenas cresce, sessão por sessão. No entanto, não se deve esquecer que a participação política é uma coisa boa, indispensável para o avanço de qualquer país, se considerarmos que o mundo pretende melhorar e se aprimorar. 

Na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, com a presença do Ministro Silvio Almeida e parlamentares de expressão de várias colorações, assistimos a um embate que separa o que vale a pena, o que é bom, do que não se deve fazer nas discussões que se travam. Isto se considerarmos que há maneiras boas e más de ‘fazer política’. Em determinado instante, o senador Eduardo Girão, aparentemente esquecido das reais definições de seu cargo, levantou-se, a partir de uma pequena conspiração com a também senadora Damares Alves (mas esta já por demais conhecida por seus exemplos de conduta bizarra), para levar “um presentinho” à autoridade que discorria na mesa. Tratava-se de uma réplica de um bebezinho, um feto, de 12 semanas. Silvio Almeida botou um freio na representação. Não aceitaria, disse, a encenação espúria de algo que representava tanto entre as mulheres e homens na sociedade brasileira. Brincar com o assunto infringiria, sem dúvida, os ditames da política. E acrescentou: “Em nome da minha filha, que vai nascer, eu me recuso a receber isso”. Girão realizou um giro de 180 graus, surpreendido com a reação da autoridade, pôs o rabo entre as pernas e retrocedeu. Voltou ao assento ao lado da comparsa, Damares Alves. Foi uma lição! É possível que nunca mais torne a desfraldar daquela maneira vil a má qualidade das suas atuações. O público aplaudiu de pé. Flávio Dino saudou o colega de ministério. Janja, de onde se encontrava, não pôde deixar de aclamar. 

É preciso frisar que política e ódio, ao contrário do que virou moda, não se misturam. O bom político é aquele que ama os seus contemporâneos, que luta para lhes melhorar as condições de vida. Exibir socos, coices e bofetadas, tirando os esportes em que se organiza a atividade dentro de regras específicas, não cabe nas assembleias de gente votada como representante da população. Infelizmente, o que assistimos com uma frequência de doer o coração tem mais a ver com rancor do que com o espírito de humanidade. Ionesco, se testemunhasse as cenas do nosso Congresso, com Girão, Damares e companhia, ficaria perplexo. Com eles, a realidade supera a paródia. Ali se encenam até o esgotamento situações da peça A lição, na qual comenta e se diverte com as nossas incapacidades de comunicação. Por outro lado, vendo Silvio Almeida... -, que conforto experimentamos na alma! Ficamos com a sensação de que chegamos lá.

 

Ø  Quarentena da cegueira nacional. Por Marcio Pochmann

 

A passagem da segunda para a terceira década do século 21 atendeu a uma espécie de viagem às trevas. Força disso tem sido a quarentena da cegueira nacional que parece aprisionar o Brasil à mediocridade das superficialidades e de inconsistências dos discursos e práticas dominantes.

Pela obra-prima de José Saramago (1922-2010), Ensaio sobre a cegueira (1995), nota-se o quanto as pessoas podem se tornar cegas no mundo contemporâneo quando o colapso geral da sociedade sedimenta a atomização dos interesses próprios e a centralização dos projetos pessoais. Em 2019, ao completar o primeiro ano do governo Bolsonaro, o país consolidaria as consequências da primeira década econômica perdida do século 21.

Certamente, estas são consequências muito mais graves e piores do que as observadas durante os anos 1980, nos quais a expansão média anual do Produto Interno Bruto (PIB) foi de 1,5%. Entre os anos 2011 e 2020, por exemplo, a variação média anual do PIB foi de apenas 0,3%, cinco vezes inferior à verificada na década de 1980, reconhecida também como economicamente perdida.

Não bastasse a herança do passado recente, o Brasil retrocedeu mais com o mandato presidencial bolsonarista, especializado na destruição daquilo que ainda insistia em existir como espaço público. Essa destruição foi imposta pela operada desmontagem das políticas públicas e da própria soberania nacional. A pandemia da Covid-19 ecoaria com eloquência ainda maior o descompromisso governamental com a vida do seu povo, a essência da consistência existencial de uma nação.

Com 6,9 milhões de vidas perdidas no mundo pela pandemia viral, o Brasil contribuiu com 701 mil mortes. Apesar de deter a sétima população do mundo, o país ocupou o segundo posto na hierarquia de mortos pela Covid-19, somente abaixo dos Estados Unidos. Com menos de 3% da população mundial, o Brasil respondeu por 10,2% do total das mortes no mundo, ocasionada pela mais grave pandemia desde a Gripe Espanhola em 1918.

A diversidade de narrativas sobre o quotidiano de um povo profunda e continuadamente sofrido decorre do abalo significativo nas estruturas pela ruína da sociedade industrial, na queda na qualidade de vida, no rebaixamento nas expectativas de horizonte das pessoas e no colapso moral. Tudo isso parecendo indicar o espalhamento de uma quarentena da cegueira nacional em analogia ao romance de José Saramago.

Na segunda metade do século 19, liberais brasileiros cosmopolitas como Joaquim Nabuco (1849-1910) e outros também identificaram e se indignaram com uma espécie de cegueira nacional que tomava conta do país sob o período imperial (1822-1889). Como se estivessem em quarentena, os cegos da nação daquela época não percebiam o espalhamento do atraso brasileiro entrelaçado por relações de trabalho forçado, pela incapacidade das elites de se envergonharem da triste realidade e permitirem formar maioria política capaz de mudar o rumo do país em direção à “família de nações civilizadas”.

O confuso e apavorante atraso que toma conta da nação neste início do século 21 vai muito além do raquítico desempenho econômico e suas consequências funestas para a sociedade. A pobreza das ideias parece maior que o fosso da escassez material que compromete a essência do modo de vida geral, sobretudo do andar de baixo da população brasileira.

O atraso econômico se combina com a procrastinação das elites em tratar do que é crucial na definição dos destinos possivelmente alvissareiros da nação. O Brasil segue se perdendo entre correntes especializadas no aprisionamento do passado, com a desutilidade marginal do tempo comprometido, por exemplo, com o tamanho do Estado e a restrição do gasto público num país que tem dívida pública líquida relativamente reduzida em relação ao PIB e somente em moeda nacional.

Para os que não aceitam o calmante da quarentena da cegueira nacional que abunda no país, cabe lembrar e mencionar o debate que se trava junto à “família de nações civilizadas”. Temas quase distantes e imperceptíveis na agenda do Brasil seguem às vezes intactos como a democracia, o autoritarismo e o futuro da governança diante da inovação e transformação digital, a competição e soberania nacional em nuvem, a política com robôs auxiliares e as mudanças no equilíbrio de poder, o sentido da miragem, metaverso e realidade ampliada para a sociedade, a manipulação proposital dos genomas e seus impactos demográficos, entre muitos outros.

Em discordância com a quarentena da cegueira nacional, o blog Terapia Política se insurgiu há três anos completados agora. Ousando ser diariamente o espaço de ideias e discussão sobre ameaças ao sistema democrático e alternativas e possibilidades de construção do desenvolvimento soberano, sustentável e menos desigual, o blog segue em frente, persistindo na urgência das exigências da transformação e integração do Brasil ao horizonte da “família de nações civilizadas”.

 

Fonte: Brasil 247/Terapia Política

 

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