quinta-feira, 4 de maio de 2023

POLÊMICA: Shein e as reflexões sobre o desenvolvimento

Recentemente, um episódio levou ao debate público o problema da arrecadação. O cenário deixado por gestões anteriores apresenta diversas empresas gozando de generosas desonerações fiscais e outras fraudando papelada para escapar dos impostos que deveriam estar pagando aos cofres públicos. No meio desses casos, destacou-se o da Shein, empresa varejista chinesa que conquistou o consumidor brasileiro com preços muito competitivos no mercado nacional. Ocorre que a empresa alcançou tanta competitividade, impactando na arrecadação, ponto nodal do novo arcabouço fiscal do governo.

O ministro Fernando Haddad anunciou o fim da “farra” e gerou diversas reações entre o público, que não hesitou em reclamar diante da iminente perda de suas vantajosas compras. Um sentimento compreensível vindo de extratos sociais (médios e baixos) que passam por dificuldades econômicas nos últimos anos, com deterioração de sua condição social e perda de poder de compra.

Não obstante a inquestionável importância do interesse material imediato do consumidor brasileiro, o problema central que habita essa celeuma, e que está no cerne da argumentação do governo, consiste num problema ainda mais relevante, de interesse público: a intrínseca relação entre mercado interno e desenvolvimento nacional. 

Historicamente, não é nada difícil demonstrar o quanto as duas coisas caminham juntas. Além da importância da questão da arrecadação, o ponto central é mais crítico: o desenvolvimento do Brasil em direção ao país que todos (ou quase todos) queremos passa necessariamente pela proteção à indústria nacional.

Para dar conta de demonstrar isso, revisitemos alguns dos mais notórios formuladores do tema, todos associados a bem-sucedidos projetos de desenvolvimento nacional.

·         “A Defesa é mais importante que a opulência”

A frase acima foi escrita por Adam Smith no seu clássico “A riqueza das nações” (2017). O autor (um dos fundadores do liberalismo econômico), em que pese ter tido notórias reservas com o mercantilismo, foi capaz de reconhecer as virtudes das engrenagens protecionistas na promoção do desenvolvimento britânico. O primeiro ato desse processo foi a constituição de um mercado interno capaz de atender às demandas da indústria, o que Smith analisa na relação entre a expansão das marinhas mercante e de guerra: “Nosso comércio é a mãe e ama-seca de nossos marinheiros; eles são a alma de nossa Armada; e nossa Armada é a Segurança e a proteção de nosso comércio: e os dois juntos são a riqueza, a força, a segurança e a proteção e a glória da Inglaterra.” (SMITH, 2017, p. 472)

Era crucial que a Inglaterra mantivesse o controle das rotas de comércio. Toda a estrutura da indústria, finanças e comércio do Império estava nos mercados e fontes de matérias-primas ultramarinos – uma vez que a ilha carece de alguns recursos necessários à indústria. A marinha mercante era tanto um ativo econômico quanto um elemento indispensável de segurança. Enquanto ativo econômico, gerava demanda para a indústria naval, primeiro eixo da expansão da economia.

Essa história nos interessa para pensarmos do que é feita uma grande potência. O desenvolvimento de forças produtivas não está circunscrito à prosperidade: é parte de um plano maior voltado para promover um Estado capaz de resistir às fricções do sistema internacional, afinal, o primeiro dever do soberano é a defesa nacional. Sendo assim, de que adiantaria ter prosperidade e não ter meios de defendê-la?

·         “A liberdade deve subordinar-se aos interesses da Segurança Nacional” 

Ato contínuo, lembremos de Alexander Hamilton, autor da frase acima e um dos “pais fundadores” dos EUA, que considerava o problema da “ameaça externa” uma dimensão fundamental do desenvolvimento econômico de uma nação. Afinal, nenhum país paira no éter: todas as sociedades estão sujeitas às contingências do processo histórico, marcado por conflitos. Daí a necessidade de pensar a política nacional (e, indissociável dela, a economia) dentro do âmbito de uma estratégia.

É essa dimensão estratégica que pauta em primeiro lugar as relações entre os Estados, obrigados a dividir/disputar entre si espaços/recursos limitados num contexto em que contam exclusivamente com suas próprias, respectivas e relativas capacidades. Por isso, é necessário considerar as economias nacionais não apenas em termos de crescimento econômico, mas também como um instrumento para a independência política, a soberania e a segurança nacional.

Com efeito, Hamilton entendia que um país jovem como os EUA não poderia competir com uma nação poderosa e já bem estabelecida como a Inglaterra. Foi por esse motivo que defendeu alíquotas de importação (até a proibição, se necessário) para produtos ingleses ou de outros mercados altamente competitivos, determinou restrições à exportação de matérias-primas sensíveis estrategicamente, além de subvenções e incentivos para produtores americanos. “Se o sistema de perfeita liberdade de produção e comércio fosse prevalente entre as nações, indubitavelmente, teriam grande relevância os argumentos que dissuadem da árdua empresa manufatureira um país com as condições dos Estados Unidos… Entretanto, o Sistema que acabo de mencionar está muito distante de caracterizar a política geral das nações.” (HAMILTON, 1995, pp. 57-58)

Outro ponto discutido por Hamilton (e presente na argumentação de Haddad, no caso em tela) é a prática de subsídios ao setor manufatureiro. Apesar de eficiente, este tipo de medida pode gerar penosas perdas fiscais ao Estado. Hamilton julga mais adequada a adoção de subsídios indiretos através de uma política tributária sobre bens concorrentes provenientes do exterior, e que utilizem matéria-prima nacional como forma de conciliar os interesses dos setores público e privado (similar ao que propõe Haddad, que já conseguiu da Shein o anúncio da transferência de parte de sua produção para o Brasil). “A verdadeira forma de conciliar esses dois interesses é impor uma tarifa sobre as manufaturas estrangeiras feitas com as matérias primas cuja exploração deseja-se fomentar e investir os recursos provenientes desta tarifa em subsídios, seja para produzir a própria matéria prima ou para sua manufatura nacional.” (HAMILTON, 1995, p. 100)

Hamilton defendia uma economia diversificada para o fortalecimento dos EUA, e projetava o país como grande potência mundial no futuro. Mas tudo isso teve um começo modesto: o incentivo do Estado aos produtores americanos, tornando-os capazes de sedimentar as fundações de uma poderosa indústria nacional. A chave desse projeto era a constituição de uma burguesia capaz de articular seus interesses com o desenvolvimento nacional. Esse compromisso, na prática, era com a projeção de um Estado forte que, no limite, recompensaria (e muito!) essa mesma burguesia.

Portanto, ainda que fosse um liberal, Hamilton entendia, assim como Smith, que “a defesa é mais importante que a opulência”, pois: “De outra forma, estaremos colocando nossas propriedades e liberdade à mercê de invasores estrangeiros.” (HAMILTON, 1995, p. 87)

Em outro trecho do seu “Relatório sobre as manufaturas”, Hamilton defendia que: “[…] não apenas a riqueza, mas a independência e a segurança de um país estavam materialmente conectadas à prosperidade das manufaturas. Qualquer nação, com vistas a esses grandes objetivos, tem que se esforçar para encontrar dentro de si mesma tudo o que for essencial ao suprimento nacional. E isso abarca os meios de subsistência, habitação, vestuário e defesa. A posse de tais meios é necessária para o aperfeiçoamento do corpo político, para a segurança e também bem-estar da sociedade.” (HAMILTON, 1995, p. 98)

Outro importante autor correlato à discussão, Friedrich List, um dos mentores do desenvolvimento alemão e admirador de Hamilton, defendia que: “Os indivíduos podem ser muito ricos, mas se a nação não possuir poder para defendê-los, tanto eles como ela poderão perder, em um só dia, toda a riqueza amealhada por eras, como também seus direitos, liberdade e independência.” (LIST, 1983, p. 75)

Portanto, há sinergia entre poder e riqueza. Na ausência dessa harmonia, uma nação jamais se tornará poderosa, porque o poder produtivo é a chave para a segurança nacional. Esse poder demanda alto investimento estatal no fomento da industrialização, de modo a articular a iniciativa privada com a soberania nacional. Foi esse o modelo de todas as grandes potências, capitalistas ou não. Seja através de uma burguesia nacional ou de um partido comunista, é fundamental que o país tenha uma inteligência política dotada de interesse público para, entre erros e acertos comuns ao processo histórico, conduzir o processo de desenvolvimento.

·         “Chutando a escada”

Essas ideias resultaram em poderosas nações industriais, como Inglaterra, EUA e Alemanha, cujas trajetórias desmentem os modelos liberais ventilados pelo Consenso de Washington. Tais modelos estão verdadeiramente comprometidos com a consolidação da assimetria entre as nações centrais e periféricas, onde o “centro” é ocupado pelos países dominantes na fronteira tecnológica e detentores de instrumentos de poder para conter o acesso das nações aspirantes ao desenvolvimento. “É estratagema muito comum dos que atingiram o ápice da grandeza, chutar a escada que permitiu a chegada ao ponto mais alto para evitar que outros a utilizem para subir também. Nisso está o segredo da doutrina cosmopolita de Adam Smith […] como também o de todos os seus sucessores nas administrações dos governos britânicos. Uma nação que, por meio de tarifas protetoras e de restrições à navegação, conseguiu que seu poder manufatureiro e sua navegação atingissem um grau de desenvolvimento tal que impede que qualquer outra nação possa sustentar uma competição com ela, não tem nada mais inteligente a fazer do que chutar as escadas que permitiram sua escalada ao topo, louvar os benefícios do livre comércio para as outras nações e declarar, em tons penitentes, que, até então, vinha trilhando os caminhos do erro e que agora, pela primeira vez, havia descoberto a verdade.” (LIST apud PARET, 2001, p. 306)

Pelo exposto acima, esse ardil – dos países dominantes proporem o livre comércio como estratégia de contenção ao desenvolvimento dos demais – é antigo. A estratégia consiste na promoção do modelo liberal como incontestável junto à opinião pública, direcionada para buscar interesses cada vez mais privados – mais renda, mais consumo, crescimento pessoal etc. – segundo uma lógica de responsabilização individual total e dissonante de qualquer sentido de solidariedade que possa nuclear um projeto de desenvolvimento nacional. Isso é especialmente desastroso no Brasil, porque se combina a uma formação social já pautada pelo domínio do privado sobre o público.

·          “Farinha pouca, meu pirão primeiro”

Por trás da polêmica aparentemente trivial da Shein há muito o que refletir sobre o Brasil, cuja formação sujeitou o público ao privado constituindo aquilo que alguns autores chamaram de “o problema institucional brasileiro”.

Seguindo o fio dessa literatura (que abriga nomes como Raymundo Faoro, Oliveira Vianna e Sérgio Buarque de Holanda), o Brasil seria marcado por uma singularidade, uma espécie de “pecado original”: uma organização social em que a constituição de um espaço de sociabilidade não propiciou as condições para gerar laços de solidariedade. Temos apenas latifúndio, monocultura e escravismo como eixos civilizatórios, que produziram uma sociedade pautada em um isolacionismo: as unidades produtivas não dependiam umas das outras, o que dificultou a formação dos laços de dependência social. 

A reprodução dessa vida material e a organização das instituições resultaram numa sociabilidade que se estabelecia numa dimensão exclusivamente privada da vida e carente das condições para a afirmação de uma individualidade socialmente definida. Esse processo originou forças oligárquicas (centrífugas) desinteressadas de qualquer projeto nacional, pautadas por uma organização essencialmente privada: a família patriarcal, constituída a partir dos laços de intimidade. Essa dinâmica produziu uma tensão, fecunda até hoje, entre a esfera privada e a esfera pública (MORAIS, 2022).

O Estado – esfera pública – se desenvolveu em torno dos interesses privados, articulado pelo privatismo com a ausência de um sentido público. De acordo com Vianna (1974, p. 127), a formação do povo brasileiro “se processou dentro do mais extremado individualismo familiar”, sendo o indivíduo brasileiro “fundamentalmente individualista, muito mais do que os outros povos latino-americanos. […] No Brasil, só o indivíduo vale e, o que é pior, vale sem precisar da sociedade – da comunidade”.

A cultura institucional é característica seminal da modernidade. A ausência dessa cultura – que, por definição, se traduz na prevalência do público sobre o privado – pode significar um obstáculo ao bom desempenho das instituições. Segundo D’Araújo (2010, p. 15), “a cultura cívica […] traduz-se em um recurso fundamental de poder para os indivíduos e para as sociedades […]”.

Comentando as diferenças entre o Norte e o Sul da Itália, a partir de um famoso estudo de caso de Robert Putnam (1996), D’Araújo fez as seguintes observações (2010, p. 16): “Os ditados populares são paradigmáticos para exemplificar essa cultura individualista […]. Trazendo para similares brasileiros, no Sul predominam ditados como: ‘Se a barba do teu vizinho pegou fogo, põe a tua de molho’ (quer dizer, não o ajuda a apagar o fogo, cuida da tua); ‘Quem empresta não melhora’; ‘Farinha pouca, meu pirão primeiro’, e assim por diante. São ditos que expressam uma ‘sabedoria’ popular em ser egoísta, em não ajudar os outros, em desconfiar […].”

A cooperação social não se limita à racionalidade dos atores e suas relações bilaterais. A racionalidade pode levar à dificuldade de cooperação a partir de cálculos auto interessados (egoístas). É preciso, para garantir a cooperação social, confiança e instrumentos que garantam o cumprimento do acordo pelas partes. Esses instrumentos são as instituições. Na ausência de boas instituições, “pessoas racionais não produzem espontaneamente bens coletivos. Ou, dito de outra forma, o uso da razão não é suficiente para produzir bem-estar” (ibidem, p. 17). É papel das instituições formatar regras e previsibilidade para dar segurança e confiança para as relações sociais.

Segundo Putnam (1996), é a consciência que cada ator social tem do seu papel na comunidade que irá constituir a cultura cívica. Em uma sociedade constituída por poucos laços de solidariedade, tende a predominar um “familismo amoral” (D’ARAÚJO, 2010, p. 32), termo que define “uma incapacidade de cooperar, agir conjuntamente”, situação típica de sociedades compostas por sujeitos “prisioneiros de uma cultura que os impede de ir além dos interesses imediatos da família nuclear”. Tais circunstâncias produzem instituições frágeis, o que “inviabiliza não só a democracia, como também o desenvolvimento econômico” (ibidem, p. 32).

·         Construindo a escada

No Brasil, tem sido latente a carência de visão desenvolvimentista na classe dominante. Isso se reflete em governos que fracassam em entregar um projeto de desenvolvimento por estarem, em grande medida, comprometidos com a preservação do status quo. É nesse sentido que lembramos de Darcy Ribeiro, quando disse que o problema da educação no Brasil não era um problema, mas um projeto. É a falta de uma “burguesia nacional” que explica a dificuldade em promover o desenvolvimento e avançar em direção à soberania real, para além da formalidade jurídica.

É daí que uma política econômica precisa dar conta do complexo cenário internacional onde Estados se relacionam sob hierarquias de poder. A força das nações mais poderosas se sustenta em mercados internos protegidos que garantem a musculatura industrial capaz de projetar os seus interesses de forma competitiva ou até dominante. Tudo isso demanda, sobretudo, altíssimos investimentos no povo, o maior recurso de uma nação, questão atavicamente ligada ao desenvolvimento de um sistema produtivo robusto.

A industrialização é uma tarefa histórica, uma etapa imprescindível do desenvolvimento de uma nação que aspire à soberania. Por isso, há uma correlação também entre industrialização e estratégia, o que significa que esta não é uma tarefa que possa ser conduzida pelas forças do mercado: requer inteligência política determinada e longo prazo. É esse o debate que a polêmica da Shein precisa levantar.

 

Fonte: Por João Rafael Gualberto de Souza Morais, no Le Monde

 

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