O
que está por trás do aumento de casos de HIV entre idosos brasileiros
Todas as quintas-feiras, a infectologista Gisele
Cristina Gosuen organiza um café da tarde para reunir idosos portadores do
vírus HIV. Familiares, amigos e até vizinhos também são convidados a
participar.
"Nós temos uma equipe de residentes em Medicina
que faz o atendimento ali, mas, se eu não passo na sala, mesmo que seja para
dar um 'oi', eles não ficam felizes", brinca ela.
Há 15 anos, Gosuen coordena o Ambulatório de HIV e o
Envelhecer da Escola Paulista de Medicina/Universidade de São Paulo
(EPM-Unifesp).
No serviço, ela acompanha e dá suporte a pacientes
que convivem com o vírus causador da aids há décadas — e recebe cada vez mais
indivíduos que foram infectados após a sexta década de vida.
Esse trabalho, aliás, reflete um fenômeno que fica
cada vez mais aparente no Brasil: nos últimos dez anos, o número de indivíduos
com 60 anos ou mais que testaram positivo para o HIV subiu mais de quatro
vezes.
"E as causas desse crescimento estão
relacionadas a muitos fatores", aponta Gosuen, que também coordena o
Comitê de Comorbidades da Sociedade Brasileira de Infectologia.
·
O que dizem os números
Todos os anos, o Ministério da Saúde publica o
Boletim Epidemiológico HIV/Aids, que compila todas as estatísticas sobre essa
epidemia no país.
O documento é fundamental para guiar as políticas
públicas do setor e saber em quais áreas ou problemas o governo deve concentrar
os esforços.
A última edição, divulgada em dezembro de 2022,
reforça a tendência de subida nos casos de HIV entre idosos — apesar da queda
geral nos diagnósticos em 2020 e 2021, por causa da pandemia de covid-19.
Para se ter ideia, 360 brasileiros com mais de 60
anos testaram positivo para o HIV em 2011. Essa taxa subiu ano após ano e
chegou a 1.738 em 2019.
Mesmo com toda a crise pandêmica dos últimos anos,
foram 1.517 diagnósticos de HIV entre os brasileiros mais velhos em 2021. Isso
representa um salto de quatro vezes em uma década.
A participação relativa dos idosos na porcentagem
total de novos casos também cresceu. Em 2011, 2,6% de todos os diagnósticos
ocorreram no grupo com mais de 60 anos. Atualmente, eles representam 3,7% dos
testes positivos para esse vírus.
A infectologista Marília Bordignon, do Serviço de
Extensão ao Atendimento de Pacientes HIV/Aids do Hospital das Clínicas de São
Paulo, chama a atenção para outro indício que mostra o impacto desse vírus na
população mais velha: ao longo da última década, a taxa de casos por 100 mil
habitantes caiu menos nessa faixa etária.
"Entre pessoas com 60 anos ou mais, até tivemos
uma redução na taxa de diagnósticos de aids. Mas essa queda é muito menor do
que o observado com os demais grupos", destaca.
E esse fenômeno pode ser observado tanto em homens
quanto em mulheres.
·
Um fenômeno de múltiplas causas
O médico Marco Túlio Cintra, vice-presidente da
Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, acredita que, "assim
como tudo o que envolve os idosos, o aumento da detecção de HIV não tem uma
explicação única".
"O primeiro fator está relacionado ao baixo uso
de preservativos nessa faixa etária, pois não há mais a preocupação com a
gravidez", aponta.
As mulheres que já passaram da menopausa, que ocorre
por volta da quinta década de vida, deixam de ovular. Com isso, não há mais
como elas gerarem um bebê.
Vale ressaltar, claro, que o uso de preservativos
não serve apenas como um método contraceptivo, para evitar uma gestação
indesejada: eles também são alternativas eficazes para evitar muitas das
infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), como o próprio HIV.
O segundo ingrediente da lista é a popularização de
remédios contra a disfunção erétil, como o Viagra e o Cialis. Graças a esses
fármacos, os homens mais velhos — que costumam apresentar mais problemas para
iniciar ou manter uma ereção — encontraram uma saída para prolongar a vida
sexual.
"Muitos indivíduos mais velhos também passam
pela experiência do divórcio ou da viuvez. Com isso, eles se sentem mais livres
para ter outras relações", acrescenta Gosuen.
Nessa seara, os aplicativos de relacionamento —
alguns deles criados especificamente para quem tem mais de 60 anos —
facilitaram os contatos e as novas experiências.
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também
pontuam que várias pessoas dessa faixa etária constituíram famílias
heterossexuais quando jovens, mas agora se descobrem homossexuais ou bissexuais
— e alguns também se sentem mais à vontade para ter experiências com parceiros
do mesmo sexo nessa fase da vida.
Em quarto lugar, Bordignon explica que há uma razão
fisiológica que amplia os riscos de infecção em idades mais avançadas.
"Temos questões biológicas que levam a uma maior fragilidade da mucosa [da
vagina ou do ânus] e a uma redução do sistema de defesa nesses locais",
diz.
A pouca lubrificação e a fragilidade das barreiras
do organismo, que se tornam mais comuns com o envelhecimento, portanto,
facilitam a entrada do HIV — caso o parceiro tenha o vírus e não sejam usadas
as estratégias preventivas, claro.
Um quinto aspecto levantado pelos pesquisadores é o
aumento nos esforços de testagem. Ou seja, será que um aumento nos pedidos de
exames para flagrar o vírus gerou uma subida nos diagnósticos?
As informações são um pouco difusas nessa seara. Por
um lado, há sim um crescimento nos testes de HIV em todo o país, o que
contribui para a subida nos boletins epidemiológicos. Por outro, os idosos nem
sempre são contemplados nesses esforços de rastreamento e detecção precoce.
"Mesmo quando a pessoa idosa já apresenta
sintomas, como um emagrecimento acentuado, os médicos sempre vão suspeitar de
câncer, mas nunca do vírus HIV", lamenta Cintra, que também é professor da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
"Esse assunto ainda é um tabu dentro dos
consultórios, como se os mais velhos não tivessem vida sexual e libido. Isso é
um mito", admite o geriatra.
"Com isso, perdemos a oportunidade de dar uma
orientação adequada sobre a prevenção ou fazer um diagnóstico precoce",
lamenta.
"A questão é que, há dez anos, era incomum
encontrarmos uma pessoa idosa HIV positivo. Hoje, não é mais tão raro
assim."
O cientista social Alexandre Grangeiro, pesquisador
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), aponta que a
questão geracional também deve entrar nessa equação.
"As gerações que antecederam o início da
epidemia de aids nos anos 1980, ou seja, que começaram a transar antes disso,
nasceram e foram educadas dentro de um processo muito mais liberal do ponto de
vista das relações sexuais e com poucos hábitos de cuidados preventivos",
analisa.
"As gerações posteriores, que começaram a vida
sexual nos anos 1980 ou depois, vão naturalmente pensar mais nesse
autocuidado", compara ele.
Grangeiro também lembra que, com o envelhecimento, é
comum que as pessoas tenham mais contato com os serviços de saúde — o que de
certo modo facilita o diagnóstico de doenças.
Por fim, os especialistas listam um oitavo fator que
aglutina todos os anteriores: a falta de campanhas de conscientização
específicas para esse público.
"A comunicação sempre foi voltada a grupos específicos,
como os mais jovens, ou aos eventos, como o carnaval. Com isso, os idosos nem
sempre se veem representados nas campanhas de prevenção do HIV", aponta
Cintra.
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O primeiro impacto
Gosuen relata que, em linhas gerais, a reação diante
de um teste positivo para o HIV pode variar conforme o sexo.
"As mulheres mais velhas costumam ser
infectadas pelo marido, que tiveram alguma relação extraconjugal e trouxeram o
vírus para casa. Há também aquelas que se separaram ou ficaram viúvas e
começaram a sair com uma outra pessoa", observa ela.
"A reação é de susto e tristeza profunda, pois
elas não enxergavam qualquer risco", complementa.
Já entre os homens, Gosuen relata que testemunha com
mais frequência sentimentos de vergonha.
"Isso ocorre principalmente quando o paciente
está junto de algum familiar ou precisa compartilhar a notícia com parentes
próximos."
A infectologista destaca que, não raro, o círculo
social descarta automaticamente qualquer possibilidade de a pessoa mais velha
ter uma vida sexual ativa.
"Alguns familiares questionam: mas como o meu
pai está com HIV se ele ficou viúvo há 20 ou 30 anos?"
"Em ambos os sexos, persiste aquele pensamento
do 'comigo isso nunca vai acontecer'."
A boa notícia é que hoje existem tratamentos
bastante eficazes: as chamadas terapias antirretrovirais permitem controlar a
carga de vírus, embora ainda não sejam capazes de eliminá-lo de vez do
organismo.
Mas o uso desses remédios tem algumas
particularidades nessa faixa etária. "É comum que a pessoa idosa tenha
comorbidades e doenças crônicas", detalha Cintra. Com isso, os médicos
adaptam o tratamento e escolhem certas drogas que não prejudicam o
funcionamento dos rins, do coração ou dos ossos.
Às vezes, também é necessário ajustar as dosagens ou
os princípios ativos usados para controlar outras enfermidades, como
hipertensão, colesterol alto, diabetes…
"O objetivo disso é não afetar a efetividade da
terapia antirretroviral, o que faria o paciente voltar a ter uma carga viral
maior", complementa o geriatra.
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A mandala de prevenção do HIV
Foi-se o tempo em que a camisinha era o único foco
para evitar o HIV ou outras ISTs. A forma mais moderna de lidar com o assunto é
a "mandala da prevenção combinada".
O método, que tem o
aval do próprio Ministério da Saúde, aponta que existem várias
estratégias para prevenir a infecção por esse vírus — e pode ser que uma pessoa
se adapte melhor a um método ou outro (eventualmente, é necessário fazer uma
combinação de vários deles).
Os componentes dessa mandala incluem:
- Usar preservativo masculino, feminino ou gel lubrificante;
- Profilaxia pré-exposição (PrEP);
- Profilaxia pós-exposição (PEP);
- Testagem regular para o HIV e outras ISTs;
- Tratar todas as pessoas vivendo com HIV/aids;
- Redução de danos;
- Prevenir a transmissão vertical (da mãe para o filho durante a
gestação ou parto).
Mas e para os idosos? Nos últimos anos, um time de
pesquisadores brasileiros criou uma mandala de prevenção específica para os
mais velhos — o estudo que fundamentou a iniciativa foi publicado em setembro
de 2021 no periódico acadêmico The Lancet
Healthy Longevity.
Além de chamar a atenção para os métodos que servem
a todas as idades — como a camisinha, a PrEP, a PEP e a disponibilidade de
testes — os pesquisadores deram bastante ênfase a dois aspectos que se tornam
mais preponderantes a partir da sexta década de vida.
"O acesso aos lubrificantes é fundamental para
contrapor aquela fragilidade da mucosa", cita Bordignon.
"O outro ponto é a síndrome genitourinária da
menopausa, que deixa a região genital da mulher mais ressecada e com
microfragilidades que facilitam a transmissão", complementa a infectologista.
Portanto, quando falamos nos mais velhos, o uso de
lubrificantes durante as relações sexuais é algo indispensável — não só do
ponto de vista do prazer, mas também da prevenção das ISTs.
Além dos cuidados individuais, Grangeiro reforça a
necessidade de campanhas mais inclusivas. "Elas precisam ter esse caráter
geracional, porque falamos de públicos muito diferentes", considera.
O especialista também acredita na importância de
ajustar certos aspectos dos aplicativos de relacionamento.
"Eles se tornaram uma grande praça pública para
o encontro de parceiros. E esses sistemas precisam cumprir a responsabilidade e
o papel social que têm por cuidar da saúde das pessoas e trazer informações
mais claras sobre as ISTs", opina.
"Também deveríamos ter políticas mais claras e
que ofereçam o melhor método preventivo a cada pessoa de acordo com as
necessidades delas", avalia Grangeiro.
"Ou seja, precisamos dizer com mais clareza que
as pessoas que não conseguem ou não querem usar preservativo adequadamente
deveriam procurar a PrEP, por exemplo. Isso não é feito da forma mais adequada
e deveria incluir todos os públicos, independentemente da faixa etária",
conclui.
Fonte:BBC News Brasil
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