quinta-feira, 4 de maio de 2023

O pensamento liberal é o único antídoto para o fanatismo

Durante a pandemia, refleti sobre como o liberalismo clássico foi deformado: em alguns casos, tornando-se uma espécie de libertarianismo ou forma modesta de social-democracia levando ao neoliberalismo. Mas o termo "liberal" contém uma conotação moral. E os liberais ainda são um grupo bem definido: abertos à discussão, tolerantes, estranhos a dogmas e fanatismos. Portanto, imaginei um uso diferente do termo: não mais substantivo, mas adjetivo. Uma nova maneira de descrever, recuperar e defender uma determinada ideia da política”.

Em um bar no West Village de Nova York, o filósofo Michael Walzer, 87 anos, uma figura de referência da esquerda chamada liberal-americana, deixe o café esfriar para encadear da melhor maneira possível os conceitos do que ele chama de seu "livro-testamento": Che cosa significa essere liberale [O que significa ser liberal], publicado na Itália por Raffaello Cortina Editore.

<<<< Eis a entrevista.

·         O título original do livro é "The Struggle for a Decent Politics", a luta por uma política decente. É um juízo sobre a época atual?

Acredito no conceito expresso pelo meu amigo Avishai Margalit no seu The decent society: uma sociedade justa é uma aspiração muito elevada, então, pelo menos, vamos nos empenhar a viver numa ‘sociedade decente’. E sim, a política hoje é indecente. Imbuída de ódio contra os adversários, caracterizada pelo desejo de pegar tudo e depois mudar as regras para que ninguém mais ganhe.

·         Como chegamos nisso?

Uso minhas duas cidades como parâmetro: a trabalhadora Johnstown, Pensilvânia, onde cresci era um polo siderúrgico democrático que com o declínio industrial foi conquistada por Trump. E a Princeton intelectual onde leciono, cidade universitária de Nova Jersey, amplamente conquistada por Hillary Clinton. Considero-as um símbolo de um país dividido, onde a classe trabalhadora se sentiu abandonada e acabou igualando os liberais à elite.

·         Como o cientista político Mark Lilla, você também acha que a esquerda, muito focada nos direitos das minorias, esqueceu-se dos trabalhadores?

Para as minorias, fizemos o que era certo. Mas as batalhas não deviam ser separadas. Pelo que diz respeito ao trabalho, nos conformamos com vitórias parciais e fracassamos. A culpa também é dos estrategistas de Clinton e Obama convencidos de poder vencer as eleições apostando na classe média e minorias, esqueceram o sindicato e perderam oportunidades.

·         "Liberal como adjetivo" é o subtítulo da edição em inglês.

Era o título que eu tinha em mente. Mas na minha editora disseram que seria entendido com um texto de gramática. Então invertemos os conceitos, mesmo assim próximos.

·         O que envolve a passagem de substantivo a adjetivo?

liberal convive com as diferenças, defende os direitos mesmo de quem pensa diferente. Tem um moral que pressupõe outros empenhos. Portanto, colocar ‘liberal’ ao lado de conceitos políticos significa qualificar seus significados. Democracia, socialismo, nacionalismo, feminismo e outros são assim libertados da rigidez e de dogmatismos. Mas cuidado: não significa ser moderados.

·         Você tem medo de ser mal interpretado?

O New York Times escreveu que estou sempre do lado moderado e imparcial dos debates. Não é assim. Um socialista liberal, por assim dizer, não é um moderado. É um antiautoritário, mas sempre orgulhoso opositor das desigualdades. A abordagem ética não torna ninguém mais moderado.

·         Você dedicou um capítulo ao feminismo liberal.

Estimularam-me a escrevê-lo minha irmã Judith, historiadora e feminista, e todas as mulheres da família: esposa, filhas e minha sobrinha Katya, que forneceu os comentários mais profundos. Parti do trabalho de Susan Moller Okin, que enfatizou a justiça na família e criticou o multiculturalismo a qualquer custo. Um tema que com as revoltas no Irã voltou a ser atual. As feministas estadunidenses ficaram estupidamente silenciosas sobre a questão: haviam defendido políticas da diferença, a necessidade de aceitar o costume islâmico. A revolta iraniana as chocou.

·         No prefácio você cita o italiano Carlo Rosselli e a israelense Yuli Tamir. Figuras diferentes, o que as aproxima?

A atitude. Rosselli, autor do Socialismo Liberale, era um democrata sincero, capaz de antecipar em um século temas que hoje são preponderantes. Tamir em seu a Razão do Nacionalismo argumentou que se pode amar o próprio país mesmo se opondo a degenerações xenófobas e autoritárias.

·         Você enfatiza que toda passagem de poder deve ser pacífica e não vingativa. O que acha da acusação contra Donald Trump?

No livro escrevo que Trump não devia ter sido processado nem mesmo depois dos acontecimentos de 6 de janeiro. Mas aqui estamos em 2023 com tudo o que sabemos e ele está de volta à corrida pela Casa Branca. Ele fez coisas realmente criminosas. Não tanto do que o acusam em Nova York, crimes modestos demais para prender um ex-presidente na prisão. Mas se for provado que ele tentou alterar o resultado eleitoral na Geórgia, não poderá ficar impune. Mesmo que processar um opositor político continue sendo um precedente perigoso.

·         Você define esse ensaio de "testamento".

Poderia ser o meu último livro e decidi contar as minhas experiências políticas. Não a minha vida privada, mas meu ativismo, a história da revista Dissent, os pensadores que me inspiraram, os companheiros com quem me confrontei.

Existe um capítulo mais significativo para você?

O que significa ser um judeu liberal. Sou um judeu secular que vai à sinagoga todos os sábados: para encontrar pessoas que veem em mim coisas que a outros escapam. Existem comunidades dentro das nações e aquela judaica é a minha. Claro que isso significa que também tenho que brigar muito. Mas cada capítulo se parece comigo. Espero que muitos leitores, reconhecendo-se, acrescentem o adjetivo liberal ao seu credo político.

 

Fonte: Entrevista com Michael Walzer, para Anna Lombardi, para la Repubblica - tradução  de Luisa Rabolini, para IHU

 

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