sexta-feira, 26 de maio de 2023

João Filho: Afastamento do juiz Appio era tudo que o partido da Lava Jato queria para tentar ressuscitar

DEPOIS DE SOFRER DURAS derrotas nos últimos dias, entre elas a cassação do mandato de um dos seus principais representantes, uma chama de esperança fez o lavajatismo se levantar do seu leito de morte. O juiz Eduardo Appio, que estava à frente dos casos da Lava Jato e vinha sendo a pedra no sapato do lavajatismo, foi afastado cautelarmente da 13ª Vara de Curitiba pelo TRF-4. 

A história que motivou a decisão do TRF-4 é ridícula, sendo ela verdadeira ou não. Marcelo Malucelli, que é um dos desembargadores do tribunal, entrou com uma representação contra Appio, acusando-o de fazer uma ameaça contra seu filho, João Eduardo Barreto Malucelli. Appio teria fingido ser um servidor da área da saúde da Justiça Federal para fazer questionamentos sobre a declaração de imposto de renda de Marcelo Malucelli. A ligação foi registrada em vídeo. A voz, de fato, é bastante parecida com a de Appio. Uma perícia da Polícia Federal fez a comparação das vozes e, apesar de não confirmar que a voz é do juiz, apontou que essa hipótese é bastante provável. Isso foi o suficiente para o TRF-4 imediatamente afastar Appio.

Nada nesse episódio é crível. Quem vê essa história e não desconfia de mais uma armação da Lava Jato enlouqueceu ou estava morando em Nárnia nos últimos anos. A operação se especializou em tramóias jurídicas para atingir objetivos políticos. Presenciamos de tudo: desde intimidação de delatores e conluio com juízes a grampos ilegais. Lembremos que o filho de Marcelo Malucelli é sócio dos lavajatistas Sergio Moro e de Rosângela Moro, além de ser o “conje” da filha do casal. Lembremos também que Malucelli pai mandou prender ilegalmente Tacla Duran, o homem que acusa Moro e Dallagnol de extorsão. Lembremos ainda que foi comprovado que o TRF-4 participou de um conluio com o então juiz Moro e com o então procurador Deltan Dallagnol. Nos diálogos revelados pelas reportagens da Vaza Jato, os procuradores usavam códigos para se referir a Moro e ao TRF-4. O juiz era chamado de “russo”, enquanto o tribunal era chamado de “Kremelin”. O que não falta é motivo para se desconfiar dessa história que levou ao afastamento de Appio, que hoje, junto com Tacla Duran, é um dos inimigos mortal do lavajatismo.

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Apesar da desconfiança ser legítima, não é possível afirmar que estamos diante de mais uma armação da turma da Lava Jato. Existe a possibilidade de que a ligação seja realmente de Appio. Além da perícia indicar que muito provavelmente a voz é dele, o silêncio do juiz está ensurdecedor. Por que Appio se cala diante de uma acusação tão grave? É no mínimo estranho adotar o silêncio depois de passar os últimos dias dando entrevistas e falando fora dos autos. A discrição, aliás, não é um requisito da magistratura que Appio tem cumprido –  o que é lamentável. O homem que tem a faca e o queijo na mão para enquadrar os crimes lavajatistas parece mimetizar alguns traços repudiáveis da Lava Jato. Portanto, desconfiar de Appio também me parece legítimo. A possibilidade dele ter sido um aloprado e ligado para o filho de Malucelli, mesmo que isso não lhe rendesse benefício algum, não me parece tão remota. 

Além do afastamento, o juiz teve notebook, desktop e celulares apreendidos e encaminhados para perícia. Ele também está proibido de entrar nas dependências da Justiça Federal e teve o acesso eletrônico ao sistema do tribunal suspenso. Tudo isso aconteceu instantaneamente e sem que haja provas definitivas de que a ligação teria sido feita por Malucelli. A condenação veio antes da apuração. O tribunal que ficou conhecido pela conivência com as irregularidades no sistema de Justiça de repente ficou implacável com elas. O padrão lavajatista segue firme dentro do TRF-4. 

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A punição de Appio vem dentro de um contexto de guerra jurídica entre os tribunais de Curitiba. Recentemente, o TRF-4 suspendeu uma decisão de Appio que anulou uma das condenações de Sérgio Cabral e impediu que ele realizasse uma audiência em que Palocci pediria a revisão dos termos do acordo de delação premiada. O próprio desembargador Malucelli travou batalhas particulares com Appio ao atropelar duas decisões suas: revogou a prisão do doleiro Alberto Youssef e restabeleceu a prisão de Tacla Duran

Colocar Appio sob suspeita era tudo o que o lavajatismo queria. Agora, o inimigo número 1 de Moro e Dallagnol carrega sobre si uma nuvem de dúvidas. O homem que abriu espaço para as acusações de Tacla Duran foi afastado e em seu lugar entra Gabriela Hardt— a lavajatista de quatro costados que copiava sentenças de Moro para condenar Lula. O desfecho desse episódio não poderia ter sido mais perfeito para o lavajatismo. Aqueles que não conseguiam dormir com as denúncias de Tacla Duran, podem respirar aliviados ao menos por enquanto.

Imediatamente após a notícia de que Appio havia sido afastado, Moro e Dallagnol festejaram nas redes sociais como se os crimes cometidos pela Lava Jato tivessem sido absolvidos. O telefonema de Appio, sendo verdadeiro ou não, está sendo usado para se tentar emplacar a ideia de que há em curso uma perseguição contra a Lava Jato. É uma tentativa desesperada de tentar recuperar a imagem da operação. O fato é que, se Appio foi mesmo um aloprado, que seja devidamente punido com o rigor da lei. Mas isso não servirá para absolver os inúmeros crimes graves cometidos pela Lava Jato.

 

Ø  Em marcha fúnebre, sepultura da Lava Jato se mantém como altar de disputas políticas. Por  Bruno Boghossian

 

O afastamento do juiz Eduardo Appio deu à Lava Jato mais um atestado de óbito para sua coleção. O conflito entre o magistrado responsável pelos processos em Curitiba e os desembargadores do TRF-4 contribui para a autópsia de uma operação que nasceu e morreu como joguete de vontades políticas.

A Lava Jato já estava morta quando Appio assumiu a função, em fevereiro. Os excessos cometidos pela força-tarefa desde as etapas iniciais, os arranjos revelados pela Vaza Jato, as sentenças anuladas, os acertos do mundo político para frear investigações e a aliança com o bolsonarismo cavaram esse túmulo.

A longa marcha fúnebre começou na origem de uma operação que se alimentava do voluntarismo e aceitava exibir uma indisfarçável motivação política. No artigo em que lançou as bases da Lava Jato, Sergio Moro descrevia a tarefa de corrigir a máquina do poder de fora para dentro.

O raciocínio se refletiu nas ferramentas usadas por investigadores, nos métodos para obter provas e na escolha dos alvos da operação. Os abusos praticados a partir dessa doutrina deram fôlego à Lava Jato, mas logo provocaram sua asfixia.

Num golpe do destino, a operação definhou porque perdeu sustentação política. As infrações cometidas pela força-tarefa fortaleceram uma coalizão interessada em reagir à Lava Jato, e a situação piorou de vez quando seus protagonistas buscaram abrigo partidário e eleitoral com o grupo que se beneficiou de suas ações.

Desde então, a sepultura da Lava Jato se mantém como uma espécie de altar político frequentado tanto por guardiães como por detratores.

Ao assumir os casos remanescentes, Appio exibiu simpatias partidárias, se lançou numa cruzada para rever atos passados e decidiu investigar integrantes da Lava Jato —o que seria legítimo, não fossem as suspeitas de que ele buscou atalhos nesse caminho.

A reação partiu do consórcio que, por anos, se dispôs a preservar até as ilegalidades da operação: antes mesmo de uma apuração conclusiva, o TRF-4 afastou o juiz.

 

Ø  O vale tudo contra a Lava Jato. Por Andrei Meireles

 

Desde sempre, a Justiça no Brasil parece reproduzir a gangorra na política. Há muitas e muitas décadas prevalece no país a máxima de “aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei”. No antológico Quincas Borba, Machado de Assis foi no ponto: “O melhor modo de ter o chicote é ter-lhe o cabo na mão”. A avidez pelo desmonte da Operação Lava Jato reproduz os defeitos a ela atribuído.

O parecer do ministro do Benedito Gonçalves propondo a cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol, endossado por todos seus colegas no Tribunal Superior Eleitoral, é a negação de toda a pregação da advocacia criminalista em favor de uma justiça  “garantista” dos direitos dos réus. Essa turma simplesmente fingiu que não viu.

Pelo prognósticos de advogados e repórteres que cobrem o STF, os garantistas do STF, como Gilmar Mendes, vão referendar a decisão do TSE. É o avesso do discurso que adotaram para enterrar a Lava Jato.

O que está em questão nem é mais se Sérgio Moro e Deltan Dallagnol extrapolaram suas atribuições legais. Depois de endossar uma penca de decisões de Moro e seus parceiros, inclusive a prisão de Lula, o STF fez uma revisão e anulou as sentenças de Moro, classificadas como parcial.

Na esteira dessa virada da ventania, a Procuradoria-Geral da República, sob a batuta de Augusto Aras, detonou a força tarefa do ministério público. Alvejada por todos os lados, a Lava Jato parecia ter morrido. Além de seus escombros, o que ainda restava começou a ser removido pelo juiz Eduardo Appio, escalado para a famosa 13 Vara Criminal de Curitiba. Lá, suas seguidas canetadas anulavam condenações e delações sobre megas esquemas de corrupção.

Estava virando celebridade quando foi afastado do cargo pelo Tribunal Regional Federal da 4 Região, acusado de ter ameaçado um dos desembargadores que investigava sua conduta em outros procedimentos. Pela denúncia, Appio tentou constranger o desembargador Marcelo Marucelli em um telefonema em que teria usado nome falso para ameaçar seu filho, o advogado João Eduardo Barreto Marucelli, sócio e genro de Sérgio Moro.

A conversa constrangedora, em que revelou ter acesso a dados confidenciais de João Eduardo, terminou com uma ameaça velada. “E o senhor tem certeza de que não tá  aprontado nada?”. Pela investigação do TRF, com o auxílio da Polícia Federal, além da probabilidade da voz no telefonema gravado ser do juiz Eduardo Appio, há digitais dele no acesso a dados confidenciais de João Eduardo.

O que se espera diante dessas evidências é um mínimo de cautela. Não foi a reação do advogado Antônio Carlos Almeida Castro, o Kakkay, a mais estridente voz do movimento de parte dos criminalistas contra a Lava Jato: “Afastar o juiz de sua jurisdição por um ato que, ao que tudo indica, não tenha gravidade suficiente para tal, é um abuso inominável. É o judiciário desdenhando do judiciário”.

Como assim? Quando a Vaza Jato revelou conversas em que juiz e procuradores da Lava Jato acertavam procedimentos  nas investigações, Kakkay e outros advogados defenderam a prisão de Sérgio Moro. Agora, diante a acusação de tentativa de chantagem de um juiz a um desembargador, antes mesmo de concluída a apuração, é definido por Kakkay como um ato de menor gravidade.

O problema é que esses dois pesos e duas medidas parece valer também em julgamentos em última instância em Brasília.

 

Fonte: The Intercept/Folha/Os Divergentes

 

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