sábado, 27 de maio de 2023

A política indigenista brasileira entre o aldeamento e a commodificação

Nesta última semana, pudemos ver uma série de movimentações em curso na Câmara dos Deputados com potenciais impactos diretos no acesso de povos indígenas aos seus direitos territoriais tradicionais. A aprovação do regimento de urgência na votação do Projeto de Lei 490/2007 (PL 490/2007), simboliza um cenário de retrocessos em relação às conquistas de direitos indígenas. Friso ainda que, em caso de aprovação, o mencionado PL poderá produzir efeitos que atacariam diretamente o bem-viver dos povos que tradicionalmente ocupam tais territórios, bem como da humanidade, que seria impactada futuramente com o desequilíbrio ambiental provocado pela morte da biodiversidade, elemento ainda resguardado por povos indígenas através da gestão ambiental e territorial de suas terras. A votação mencionada também evidencia uma verdadeira “corrida”, encabeçada pela bancada ruralista, para institucionalizar a tese do Marco Temporal, tendo em vista que o RE 1017365 tem previsão para retomada de votação no dia 07 de junho pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Tal cenário, foi ainda composto pela votação, em Comissão Mista, de um relatório que alteraria a MP 1154/2023, sendo um dos pontos mais controversos do documento a retirada da atribuição da função de demarcar Terras Indígenas (TI) do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), atribuindo tal competência novamente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MPSP).

No mês de abril de 2023, pude acompanhar na cidade de Brasília as movimentações e demandas relativas ao chamado Abril Indígena, mês dedicado à mobilização em prol de demandas relativas a Direitos dos Povos Indígenas e também de celebração às suas históricas resistências e conquistas políticas. Tudo parecia muito próspero, digo isso, pois assiduamente acompanhei eventos promovidos pelo MPI para divulgação de suas projeções de trabalho nos meses que se seguiriam, também estive presente na 19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), que neste ano trouxe o mote “O futuro indígena é hoje: sem demarcação, não há democracia”, entre outros eventos ocorridos na Câmara dos Deputados, como reuniões da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais, e o lançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas.

A todo momento, evidenciava-se que os aparentes avanços não estavam dissociados da luta, luta esta que, para além de objetivar direitos, buscava a transformação da política indigenista, feitas por não-indígenas na pretensão de falar por estes povos, em políticas indígenas, realizadas e constituídas por e para povos indígenas desde seu princípio. Contudo, de alguma forma, eu como um mero apoiador e observador das demandas indígenas, pensava que o “aldear a política” estava mais estabelecido do que ele realmente se mostraria com os potenciais desmontes que passam a se desenhar. Pela primeira vez, em 523 anos, temos um Ministério voltado à atender especificamente as demandas dos mais de 300 povos indígenas que vivem no que hoje compreendemos como Brasil, no entanto, devo frisar que tal medida institucional por si só não foi capaz de frear as ofensivas do agronegócio tanto em terras quanto na arena política.

Se por um lado, há um grupo que deseja aldear a política, por outro, existe uma parcela de congressistas que desejam commodificar a política. A ideia de commodificação da natureza, versaria sobre aquilo que os professores Valter Lúcio de Oliveira e Ève Anne Buhler (2016, p. 273) pontuaram como sendo “uma dinâmica de apropriação privada dos recursos naturais, processo que, em regiões de fronteira agrícola, se dá de forma frequentemente fraudulenta e conflitiva. Aspectos da natureza que aparentemente seriam inalienáveis, como o clima, a chuva, o relevo, são incorporados ao mercado fundiário e, nesse processo, se transformam em mercadoria.”, com base no que já expunha Noel Castree. Commodificar a política, portanto, não seria um conceito sobre o movimento que o agronegócio realiza ao ocupar espaços no Congresso Nacional, na realidade, este movimento seria um dos instrumentos utilizados por este grupo para legitimar a dinâmica de commodificação da natureza. Contudo, aqui peço licença aos professores Oliveira e Bühler, para deslocar a expressão e utilizar o “commodificar” a política em oposição ao “aldear”.

Esta commodificação da Política não se consuma apenas nas ações estritas de congressistas que sejam fazendeiros, mas também são cristalizadas nos pronunciamentos de deputados que coadunam com os interesses destes grupos. A sobreposição da exploração econômica em face das cosmovisões indígenas e dos limites socioambientais puderam ser vistas em diversas ocasiões, como foi o caso presenciado na reunião da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais, ocorrida no Plenário 12 do Anexo II da Câmara dos Deputados, no dia 18 de Abril de 2023, que contou com a presença da ministra Sônia Guajajara para apresentação do plano de trabalho do MPI, sendo ela questionada sobre a necessidade de “tornar terras indígenas produtivas” por um dos deputados que compunham a comissão, conforme transcrito a seguir

“Dar aos povos indígenas o direito de explorar suas terras, de dar o direito aos povos indígenas de fazer com que as suas terras se tornem terras produtivas. Nós sabemos muito bem do potencial econômico que tem Roraima, a exemplo, Roraima tem mais de R$3 bilhões de reais embaixo de suas terras, terras indígenas e que não podem ser exploradas e que deveriam ser exploradas. Por que eu estou dizendo isso? Porque esses mesmos indígenas’tão’ passando por situações muito difíceis econômicas, passando por necessidades que só o dinheiro pode comprar, porque tudo é o dinheiro…” (Zé Trovão, Deputado Federal pelo PL/SC)

Esta apropriação da natureza sob a ótica da mercadoria tem sido uma premissa comum a diversas movimentações políticas que objetivam autorizar a entrada e exploração de riquezas em terras indígenas, a exemplo do PL 191/2020. O que os defensores destas proposições trazem em comum é o discurso de mercantilização da natureza e uma espécie de salvacionismo barato ancorado na ideia de “produtividade”, mas o que ignoram é a escuta às demandas dos movimentos indígenas organizados e as respectivas cosmovisões destes povos, além disso, ignoram o alerta já trazido pelos indígenas, como posso exemplificar ao citar a potência discursiva de Davi Kopenawa Yanomami e Ailton Krenak, sobre a impossibilidade de se vislumbrar um futuro sem que os limites da terra sejam respeitados.

Os trabalhos do MPI se projetam de maneira transversal, isto é, dialogando também com outros ministérios, como por exemplo, o Ministério do Meio Ambiente, atualmente sob comando da ministra Marina Silva, e que também foi atingido pelo relatório que altera a MP 1154/2023. Durante o mês de Abril, os eventos promovidos pelo MPI enfatizaram a necessidade de demarcação de Terras Indígenas para a garantia do bem-viver destas pessoas, bem como para a garantia de prerrogativas ambientais e climáticas em níveis nacional e internacional.

Em diálogo com a Secretária de Gestão Ambiental e Territorial Indígena do MPI, Maria da Conceição Alves Feitosa Pitaguary, perguntei sobre os desafios inerentes à retomada da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena (PNGATI) e a demarcação de TI no atual cenário. Maria da Conceição me respondeu que não devemos observar tais pontos como questões apartadas. Ela disse,

“São desafios que continuam, por isso nós atrelamos a demarcação à gestão ambiental, para elas trabalharem juntas. Não é ‘primeiro demarca e depois faz gestão’, ou então ‘faz gestão e depois demarca’, não, é para caminhar junto. A gestão ambiental dá força para a demarcação e a demarcação dá força para a gestão ambiental. […] Outro grande desafio também consiste em fazermos a discussão da Gestão Ambiental atrelada às mudanças climáticas, também pensar nos biomas como um complementando o outro para promover o equilíbrio ambiental, fazer com que os gestores e os governantes entendam isso, entendam essa contribuição que as terras indígenas já deram ao longo do tempo e recompensá-las por isso.” (Maria da Conceição Alves Feitosa Pitaguary, Secretária de Gestão Ambiental e Territorial Indígena do MPI)

Deste modo, as questões ambientais e climáticas perpassam não apenas as cosmovisões indígenas e os diálogos interministeriais sobre a pauta, mas não se deve obstar a contribuição das Terras Indígenas para o equilíbrio ambiental nos âmbitos local, regional e mundial, conforme elucida Maria da Conceição em sua fala.

De acordo com o informativo publicado no ano de 2021, Los pueblos indígenas y tribales y la gobernanza de los bosques – Una oportunidad para la acción climática en Latina América y el Caribe, produzido pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e pelo Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (FILAC), as florestas localizadas em territórios indígenas possuem papel crucial na estabilização do clima, pois elas armazenariam, aproximadamente 34 bilhões de toneladas métricas de carbono (o equivalente a quase 30% do carbono em florestas tropicais da América Latina e 14% do carbono em florestas tropicais em escala mundial). Tais índices correm sério risco de decréscimo em um cenário onde políticas que visam flexibilizar o acesso do agronegócio e da mineração, por exemplo, a áreas compreendidas como Terras Indígenas sejam aprovadas, o que impactaria diretamente na qualidade de vida da população mundial.

A batalha entre o “aldear” e o “commodificar” revela, em primeiro plano, um confronto direto entre um projeto de diálogo com a natureza, no sentido de compreensão e identificação de seus limites e possibilidades, e um projeto de exploração indiscriminada de seu potencial mercadológico. O que se obscurece, em um segundo plano, talvez seja a dimensão ainda mais nociva intrínseca a esta batalha, a tentativa de se passar um projeto de reprodução de ditames coloniais que extrapolam temporalmente o período do colonialismo, isto é, a commodificação também traz consigo a reprodução de um projeto moderno de descredibilização de saberes, subjetividades e modos de vida. Todavia, esquece-se que sem a manutenção da vida não há futuro possível.

Portanto, assegurar os modos de vida e o direito tradicional ao território dos povos indígenas não se mostra como uma questão unicamente política, mas sim, como uma questão humanitária. Para além do devido reconhecimento da vinculação dos povos indígenas para com o lugar onde nasceram, cresceram, exercem sua fé e enterram seus ancestrais, devemos nos atentar à segurança que estes povos oferecem à humanidade através da preservação e respeito à biodiversidade, pilar fundamental para a existência da vida em sentido amplo.

Até que se prove o contrário, a vida precede qualquer criação humana e enquanto ela estiver ameaçada, todo e qualquer anseio de futuro também estará.

 

Fonte: Por Marcello Amorim Vieira, no Le Monde

 

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