A
crise ecológica e o “Mal da Terra”
A crise ecológica, que continua a se agravar e cujos impactos não
conhecem fronteiras, deveria gerar mobilização e conscientização generalizada e
em todas as áreas, sem exceção. Com a publicação do seu último livro, Mal
de Terre (Payot), o sociólogo dinamarquês Nikolaj Schultz se debruça sobre as implicações antropológicas
desta crise, a relação humana com o mundo ou ainda o conceito de liberdade na era do Antropoceno.
<<<< Eis a entrevista.
·
Nikolaj Schultz, você é sociólogo, e escreveu em
2022 junto com Bruno Latour 'Memorando sobre a nova classe ecológica'. Por que
você escolheu a ficção para seu último livro, Mal da Terra?
Sim, de fato, é um gênero muito diferente – não
apenas do Memorando, mas também da maioria dos outros escritos
acadêmicos clássicos que escrevo. Posso dizer algumas palavras sobre os motivos
dessa escolha. O que acabou virando um livro foi originalmente um pequeno
artigo de poucas páginas que foi publicado em várias línguas, escrito no mesmo
tom ou no mesmo gênero misto, entre o texto pessoal e teórico. Quando o
publiquei, fiquei muito surpreso com o grande número de reações que recebi,
tanto dentro como fora da academia, dizendo-me que o artigo os tinha ao mesmo
tempo comovido e feito refletir. Então eu disse a mim mesmo que esse gênero
híbrido poderia ter algo a oferecer e que deveríamos continuar nessa direção.
Mas a razão pela qual decidi escrevê-lo também está
ligada a um argumento mais metodológico. Como afirmam os teóricos da ecologia,
o Antropoceno está se desenrolando como uma crise de sensibilidades, como uma
situação em que nossos registros emocionais e afetivos não estão à altura da
situação em que nos encontramos. Concordo com isso, e penso que isso significa
que, no contexto das ciências sociais e humanas, devemos propor não apenas
novas abordagens analíticas e teóricas, mas também novas formas de apresentar
essas ideias, novos modos de narração da teoria, se quiser. Como diria Ursula K. Le Guin, precisamos tanto do risco
da estética quanto da curiosidade da ciência. E me perguntei por que não
experimentar essa abordagem em um único e mesmo livro, mesmo que isso
significasse que às vezes eu estava um pouco perdido, não sendo um escritor de
verdade.
Eu também estava tentando captar exatamente os
efeitos desse duplo terremoto simultâneo da Terra e do homem – o que chamo no
livro de “mal da Terra”. O que significa sentir o mundo encolhendo sob seus pés?
Como são vivenciadas a transformação e a fragmentação dos lugares físicos da
vida, onde os humanos destroem cotidianamente suas próprias condições de vida?
Para abordar essa questão, eu precisava de uma forma de escrever diferente do
estilo acadêmico clássico, e também tive que viver minha própria experiência
desse “crash existencial” e conhecer pessoas que também fizeram esta
experiência.
Mais concretamente, parto de uma noite mal dormida
que passei durante a onda de calor de alguns anos atrás, onde de alguma forma
fiquei completamente paralisado, inerte, por falta de sono no calor, bem ciente
de que a própria tecnologia que me permitiu algum descanso – o ventilador – só
aumentou meu consumo de energia e, portanto, agravou os problemas climáticos. É
realmente uma experiência “nauseabunda”, quando se fica preso em tais tomadas
de consciência, é realmente um momento de vertigem existencial.
Mas não dá para fugir: no dia seguinte, tentei fugir
da cidade e do calor indo à ilha de Porquerolles, onde meu amigo havia me
convidado para descansar alguns dias em seu barco – para então perceber que
esta ilha está desaparecendo lentamente devido às mudanças climáticas, e que
meus próprios vestígios como turista estão apenas intensificando esse processo
de desaparecimento. Mais uma vez me senti prisioneiro de um mundo que mudou de
forma, como uma espécie humana que transforma este mundo – e assim se tornou um
outro ser.
Procurei assim descrever este tipo de mudança de
afetos que, para alguns de nós, podem atingir-nos apenas momentaneamente –
muitos tendem a esquecer a onda de calor com a chegada do outono… –, mas que,
creio, só se intensificarão num futuro próximo, e que acho importante entender
se quisermos saber o que nos tornamos, o que somos e o que nos tornaremos cada
vez mais. Um conjunto de afetos com os quais não sabemos o que fazer, mas que
teremos que apreender como um novo drama de estar no mundo de hoje e de amanhã
esgotado pelo clima.
Em síntese, o livro é uma espécie de diário de
viagem “autoetnográfico” numa ilha ecologicamente ameaçada, que questiona
algumas das transformações das condições existenciais e sociais do ser humano e
da sociedade, num momento em que estas são violentamente reconfiguradas.
Funciona? Não sei, talvez. Não recebi muita atenção na França, onde foi
publicado pela primeira vez recentemente, mas agora está traduzido em seis ou
sete idiomas. Então talvez ofereça algo útil mesmo assim. Penso que pelo menos
aborda alguns temas que elenquei acima…
·
Sua história questiona, como indivíduo, nossa
relação com o mundo em um momento de mudança climática. Qual é a nossa
responsabilidade agora? Em que consiste a nossa liberdade na era do
Antropoceno?
Sim, como indiquei acima, parto da minha própria
experiência, como pessoa, como ser humano, que estremece porque prova este
sentimento de responsabilidade – uma responsabilidade
que a maioria de nós tem consciência, mas da qual só por vezes tem a
possibilidade de sentir toda a sua extensão. A ideia é justamente descrever
essa experiência de outra maneira, esperando que ela possa gerar o que Donna Haraway chama de “capacidade de resposta” (response-ability),
a capacidade de responder ao fato de ser um outro tipo de ser em um outro
mundo.
Novamente, este é um exercício de responsabilidade e
de sensibilidade – mas não apenas para nos tornarmos sensíveis a outras formas
de vida, a outros seres vivos, mas também para nos tornarmos sensíveis ao fato
de que nós nos transformamos em uma criatura bizarra e estranha! Um humano sim,
mas um humano que deixa uma série de rastros, e que consequentemente tem outro
conjunto de responsabilidades. Novamente, qual é a experiência dessa
transformação? Quais são os efeitos dessa mutação?
Assim, uma maneira de abordar a crise de sensibilidade de que falei acima é, naturalmente,
descrever todas as formas de vida não humanas entre
as quais e através das quais vivemos e das quais dependemos – sejam cogumelos, lobos, polvos, plantas, etc. –, como muitos
teóricos ecológicos fizeram para entender nossa condição terrestre. Mas uma
outra maneira de proceder é voltar à figura do humano e concentrar-se nos
efeitos de sua transformação em outro ser. Penso que precisamos de ambos os
tipos de livros e estratégias, e provavelmente mais outros.
Um último ponto relacionado com isso, porque essa
“figura individual” que você menciona é, obviamente, uma noção delicada e
pesadamente carregada. Mas o interesse em retornar a essa figura obviamente não
é se ater à sua forma moderna, mas partir dela e depois mostrar, por meio de um
relato empírico e teórico, como essa figura muda de forma hoje. No posfácio do
livro [em sua publicação em inglês], Dipesh Chakrabarty descreve bem essa
abordagem: trata-se de mostrar através do livro como essa ideia de ser humano
autônomo, indivisível, impenetrável é uma má descrição do ser humano,
revelando-se como um mito – e como o ser humano é sempre permeado por, e
permeia a si mesmo, uma multidão de outros seres, dos quais depende e que ao
mesmo tempo destrói. E talvez, como Chakrabarty também sugere, a descrição dessa mutação
poderia ser um caminho possível para a recuperação de si mesmo.
·
O seu questionamento sobre a liberdade não suscita
também o da relação natureza/cultura, da sua
necessária superação?
Na verdade, é a mesma coisa. Eu sei que muitos
pensadores ambientais pensam que a liberdade é um conceito terrivelmente
ultrapassado, por causa de suas conotações modernas, e é verdade que algumas
concepções da liberdade provavelmente foram profundamente cúmplices da situação
em que nos encontramos...
No entanto, penso que seria um grande erro desistir
desse ideal de liberdade ou de dizer às pessoas que elas devem esquecê-lo
completamente, que esse valor é apenas um ideal imperfeito e perigoso do
passado. Por quê? Porque as pessoas estão muito apegadas a esse ideal –
existencialmente, emocionalmente, politicamente – para abandoná-lo. Como disse
recentemente em outra entrevista, temo que a ecologia não tenha nenhuma chance
se tiver que competir com a liberdade.
Portanto, não podemos abandonar essa noção ou fingir
que não significa nada para as pessoas. Mas o que podemos fazer é descrever
como antigas concepções de liberdade se tornaram problemáticas hoje e como elas
nos levaram em parte e continuam a nos levar a certos impasses, e então tentar
redefini-los, reconceituá-los. Tratar-se-ia então de permanecer fiel ao valor,
mas de questionar o seu sentido atual.
É também uma longa discussão que tive com Bruno Latour ao longo dos anos, e em particular quando ele
escreveu Onde estou? – um livro que tentou responder a essas
perguntas de maneira diferente –, que ele estava escrevendo ao mesmo tempo que
eu escrevia Land Sickness [título inglês de Mal de Terre]. É
claro que Bruno Latour sempre suspeitou do conceito de liberdade, mas
acabou concordando comigo: ele quase colocou “emancipação” no título da
tradução inglesa e, como você deve se lembrar, a penúltima frase do ensaio se
refere a um grupo de humanos composto de forma diferente: “Eles finalmente se
emancipam”.
Também enfatizamos a necessidade de manter o ideal
de liberdade no Memorando. E se continuo acreditando que isso é possível, é
porque o significado, a compreensão e a experiência da liberdade assumiram
muitas formas diferentes ao longo da história. O que a liberdade poderia se
tornar? É verdade que todas as concepções modernas de liberdade conduzem a um
impasse, justamente porque, como você justamente aponta, todas elas são
construídas com base nessa distinção entre natureza e cultura que não pode mais
ser mantida. Isso se aplica tanto à concepção pessoal de liberdade como a
ausência de restrições externas em Hobbes, quanto à concepção moral da liberdade como
controle de si em Kant, ou ainda para a concepção social da liberdade como
a realização de si em Hegel, que estão todas fundamentalmente centradas no
homem, e baseadas nesta ideia de uma natureza fora de nós, algo à parte (out
there).
Em vez disso, devemos desenvolver uma ideia de
liberdade como algo negociado com os muitos seres terrestres com e através dos
quais os humanos coexistem, uma liberdade alcançada cultivando conexões com
humanos e não humanos. É talvez uma espécie de liberdade experimentada como
“ser-eu-com-o-outro” (Being-myself-with-another), como diria Hegel, mas
que alarga o campo dos “outros” para incluir outras formas de vida e outros
seres vivos do que os humanos, aqueles que antes eram excluídos do domínio da
liberdade. Em outras palavras, a liberdade deve estar situada ou ancorada em
condições terrestres de habitabilidade. Mas é claro que uma coisa é delinear
tais princípios, outra coisa bem diferente é fazer com que essas novas
concepções de liberdade ressoem afetivamente no nível da experiência...
·
A sua narrativa questiona o impacto das mudanças
climáticas sobre o sentido da existência e a nossa condição humana. O que
então, neste contexto, é o mal da Terra? E filosoficamente falando, não podemos
então falar de um novo existencialismo?
Voltamos então ao ponto de partida da entrevista. Na
verdade, o que estou tentando descrever é como o mundo se metamorfoseia e como
a figura do homem e suas condições existenciais são transformadas em
conformidade. Por quê? Porque as mutações destrutivas da Terra são causadas
pelo ser humano e suas ações! Neste contexto, utilizo a metáfora do mal da
Terra para descrever o abalo simultâneo do homem e da Terra, fruto desta
constatação de que é um ser diferente de antes, de que é impossível escapar a
estas questões, de que os problemas nos acompanham.
E, de fato, acredito que isso reconfigura certas
questões existenciais. Voltando ao meu compatriota Kierkegaard, trata-se certamente de temor e tremor, mas não
tanto sobre as profundezas infinitas de nossa liberdade interior, mas sobre as
consequências externas que nossa liberdade deixa para trás, um conjunto de
consequências que estamos experimentando agora, e que ameaçam a habitabilidade do planeta e, portanto, a subsistência de
nossa própria espécie!
Podemos falar de um “novo existencialismo”? Não sei,
talvez seja um existencialismo na tradição de Karl Jaspers e Peter Sloterdijk. O assunto ainda é a
existência, mas se trata menos do "sentido" ou do
"propósito" da existência humana do que sobre como os seres
"permitem" ou "impedem" que outros seres permaneçam na
existência. Ou, pelo menos, esses dois conjuntos de questões não podem mais ser
separados!
Outra maneira de dizer isso é que a questão
existencial torna-se muito mais intimamente ligada aos seres vivos que
condicionam a existência humana, com os quais os humanos ainda coexistem, numa
época em que estes não podem mais ser tomados como certos, quando estão até
sendo aniquilados, por causa do próprio modo de existência humana cotidiana.
Qual é a “condição humana”? E qual é a “náusea”? Como podemos imaginar isso?
Os “bons e velhos existencialistas” certamente não
teriam imaginado tal reviravolta, mas se estivessem aqui hoje, provavelmente
teriam feito perguntas relativas aos muitos seres vivos dos quais o ser humano
depende para existir, e outras para entender o fato de que os humanos hoje
causam a aniquilação desses seres vivos e, portanto, de sua própria existência.
E, de fato, o que me interessa é entender os efeitos dessa “monstruosa”
transformação humana.
Fonte: Entrevista com Nikolaj Schultz para Alexandre
Minet, publicada por Fondation Jean Jaurès. Tradução do Cepat, em IHU
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