Em
sua participação nas Jornadas de 2017 o jurista Pedro Serrano, professor de
Direito Constitucional da PUC-SP, abordou a questão do Estado de exceção na
contemporaneidade, mostrando como a exceção tomou conta do país ao ingressar no
ambiente do Direito e se tornar um modo de gestão estatal da violência pelo
Estado.
Partindo
das transformações do capitalismo global, a partir da década de 1980, Serrano
analisou como o Estado autoritário é uma exigência dessa nova ordem,
capitaneada pelo capital financeiro, tecnológico e militar. Uma de suas
atribuições, inclusive, é gerenciar a violência resultante da imensa
desigualdade social provocada por essas transformações.
A
exceção “se tornou uma forma de governabilidade”, subvertendo “o sentido, no
plano internacional, do Estado nação”, destacou o jurista. Às Forças Armadas,
por exemplo, cabe o papel de polícia mundial utilizando o mote da “segurança
nacional” para justificar as guerras globais contra o “inimigo”. Os Estados
nacionais, por sua vez, encontram-se reféns dos interesses das grandes
corporações já que “qualquer medida prejudicial aos interesses do capital pode
significar a saída deste capital do país”.
Essas
transformações do capitalismo global também promoveram um forte processo de
concentração dos poderes político e cultural nas mãos do poder econômico,
resultando em “um modelo extremamente conservador e autoritário”. Segundo
Serrano, essa forma distinta de “anarquia de produção intensa, que concentra
poder cultural e político, exige um estado nação autoritário que suprima as
liberdades públicas e os direitos sociais ao máximo possível”. Os dados
brasileiros atestam a dimensão desse processo: em 1990, o país contava com 3
mil a 4 mil mortos em violência; hoje, são 60 mil.
A
equação do chamado neoliberalismo é simples: “De um lado, se subtrai do Estado
o poder de realizar benefício social e integração; de outro, amplia a
possibilidade do Estado de suprimir liberdades e de aprisionar. No caso do
Terceiro Mundo, em especial, a possibilidade de realizar genocídio e ampliar a
violência”.
Neste
processo, destacou, dá-se a atuação de um poder desconstituinte, capitaneado
pelo sistema de justiça que engloba o juiz, o promotor, o legislador e a mídia.
“O sistema de justiça é fator dominante desse poder desconstituinte”, apontou
Serrano, ao exemplificar a atuação desse poder no Brasil: “não se altera
formalmente a pauta da Constituição de 1988, mas inicia-se um processo de
emendas constitucionais e com isso vai se esvaziando o sentido da Constituição.
O Judiciário aceita e isso se estabiliza no sistema”.
Roupagem democrática do Estado
autoritário
Destacando
a ideia da provisoriedade, a identificação de um inimigo social e a suspensão
de direitos como características do Estado de exceção, Serrano lembrou que “nas
ditaduras latino-americanas havia a interrupção assumida e performática do
ciclo democrático. Os governos de exceção e ditatoriais assumiam o comando
sempre com o discurso da provisoriedade. Essa era a característica dos governos
de exceção”.
Isso
mudou. “Como essa nova forma de capital vende para o mundo uma ideia de democracia,
mas ao mesmo tempo e contraditoriamente, pleiteia um Estado autoritário, surgiu
no mundo Ocidental a figura de um Estado com uma roupagem democrática e com um
conteúdo autoritário”.
Nesta
nova roupagem, “são mantidas as figuras da autoridade democrática, das
instituições democráticas, dos processos de decisão democráticas, mas eles são
subvertidos em seu sentido”. Este processo, reiterou, é “capitaneado pelo
sistema de justiça que se torna um gerenciador de medidas de exceção”,
marcadamente a partir dos anos 2000.
Essas
medidas de exceção podem ser facilmente identificadas na realidade brasileira.
Por exemplo, a utilização da figura do bandido e do bandoleiro como forma de
descaracterizar a identidade dos cidadãos. Uma figura, aliás, muito bem localizada
nos territórios ocupados pelas forças policiais locais que passaram a ser
forças de ocupação territorial. “A maioria das pessoas que tem contato com a
polícia nesses ambientes morre ou sofre graves prejuízos à sua integridade
física. E se é preso não tem direito de defesa”.
Os
dados falam por si: 42% da população carcerária está presa sem decisão de
primeiro grau; 70% não tiveram decisão definitiva; 2/3 dessa população - a 4ª.
maior população carcerária do mundo – não tiveram decisão definitiva e as pessoas
estão presas por ordem cautelar. “A gente desobedece claramente a determinação
da ONU e da OEA de não utilizar prisão cautelar como forma de controle social”,
avaliou.
Além
disso, a população carcerária no Brasil é composta, basicamente, de pequenos
traficantes, furtadores e pessoas que realizam roubos sem vítimas. “Essa é a
essência da nossa população carcerária. Dos homicídios, apenas 5% são
resolvidos”. Trata-se, portanto, de “um sistema altamente punitivo que deixa de
punir o crime mais grave que existe que é a ofensa à vida”.
Só pode haver inquérito onde não
houver devassa
Outro
aspecto de exceção salientado por Serrano é a perseguição política, sobretudo
contra líderes de esquerda na América Latina. “Essa segunda modalidade de
políticas de exceção constitui-se na instituição de um processo penal de
exceção, com capa e proteção da autoridade democrática de um juiz, visando a
perseguição por razões políticas”.
Tradicionalmente,
explicou, a exceção foi concebida como zona de anomia, ou seja, “uma atividade
de soberania absoluta não governada por norma nenhuma”. No caso da América
Latina, em especial no Brasil, ocorreu o contrário. Nós tivemos uma hipernomia,
“uma ampliação imensa do número de normas sancionatórias em várias áreas do
Direito” visando sancionar a cidadania.
Junto
à quantidade absurda de normas sancionatórias, ocorreram dois outros processos:
“a produção de normas penais por conceitos indeterminados, subvertendo o
sentido do Estado de Direito no país”, e a criação de mecanismos de
investigação contrários aos inquéritos de investigação. “O inquérito é um
direito da pessoa. Só pode haver inquérito onde não houver devassa”, afirmou
Serrano ao citar o exemplo do ex-presidente Lula. “O que se promove contra o
Lula é uma devassa. Não se está investigando uma conduta para saber se ele é o
autor”, a ideia é investigar tudo o que ele fez, “vamos pescar, vamos ver o que
o Lula tem de ruim”.
Segundo
Serrano, como o Estado autoritário não pode colocar todo mundo na cadeia, quem
aplica as normas, escolhendo quem será ou não culpado, detém um imenso poder de
seleção. Com isso “a ideia de inocência e culpa se dilui” e a “a sociedade
inteira fica com a faca no pescoço”. Fragilizada e atomizada, a sociedade
permanece quieta achando que assim irá escapar. Um fenômeno que Serrano
denomina “espectro de exceção” pelo qual a sociedade permanece sob domínio do
autoritarismo.
Diluição do pacto humanista
Um
terceiro elemento da política de exceção destacado pelo jurista é o apoio da
sociedade. Trabalhando com os conceitos de Hannah Arendt de ralé (os que
almejam uma sociedade indivisível e rechaçam a política) e de povo (os que
defendem a política e a democracia como instrumento na solução dos conflitos),
ele destacou que “o estamento populista é um elemento essencial na formação da
ralé na América Latina”.
Em
1964, os militares brasileiros traziam a ideia “de estarem acima dos outros, de
serem superiores moralmente e dotados da capacidade de purificar os pecados da
política, além do uso da força para trazer a ordem, que é a essência da
reivindicação da ralé”. Esse papel, agora, vem sendo cumprido pelo juiz ou pelo
promotor: “a ralé exige deles não a aplicação do Direito, mas o combate ao
crime e a ordem”.
Lembrando
que hoje a ralé é criada pela mídia, Serrano apontou que “a figura do
Justiceiro é a figura do novo populista latino-americano”. A incompatibilidade
disso com a democracia é antiguíssima, salientou: “uma incompatibilidade óbvia
entre a democracia e figuras personalizadas que utilizam a função pública para
ter promoção pessoal, vendendo-se como fazedoras de Justiça, acima da ordem
jurídica de Constituição, como seres providos de uma moralidade
substancialmente acima do resto da sociedade”.
Serrano
avalia que “o pacto humanista que fazia parte desse frágil encontro entre
capitalismo e democracia liberal no século XX se dilui”, as pessoas deixaram de
ter “sublimação por conta de valores humanistas”. Ressaltando que “essa agressividade,
essa desumanidade, essa flexibilização da sublimação inerente ao processo
civilizatório” são elementos constituintes da ralé, Serrano foi preciso em seu
diagnóstico: “nós vivemos um problema de ultra repressão no campo político e de
ausência de repressão da subjetividade”.
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