Primeiro
diretor negro em 215 anos da UFBa diz que ainda ‘vamos ver mais negros como
diretores’
Foi em 1970 que o então estudante Antonio Alberto da
Silva Lopes começou sua trajetória na Faculdade de Medicina da Bahia (FMB).
Tinha acabado de ser aprovado na Ufba e também em primeiro lugar na Escola
Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Tornou-se médico nefrologista, fez
mestrado e, depois, tornou-se PhD em Ciência Epidemiológica pela Universidade
de Michigan, nos Estados Unidos.
Desde 1980, é professor da Ufba, onde já foi
pró-reitor de pesquisa e pós-graduação, coordenador do programa de Medicina e
Saúde e chefe do Núcleo de Medicina Baseada em Evidências do Hospital
Universitário Professor Edgard Santos. Pesquisador reconhecido
internacionalmente, Lopes deu um novo passo na carreira esta semana.
Na última quinta-feira (25), 53 anos após ter
iniciado seus estudos, ele foi eleito diretor da FMB.
"Como professor e pesquisador, acredito que a
comunidade considerou o fato de ser um estudioso e inovador na educação médica
e um pesquisador reconhecido internacionalmente", avalia.
Mas o feito não é apenas histórico para ele: pela
primeira vez, depois de 215 anos de existência, a primeira faculdade de
medicina do Brasil terá um diretor negro.
Ele chegou a ser vítima de ataques racistas durante
os dias que antecederam ao pleito. "Como diretor, terei tolerância zero a
qualquer tipo de preconceito", adianta. Em entrevista ao CORREIO, o médico
e professor conversou sobre o futuro da faculdade, a carreira e o ensino da
Medicina no país.
<<< Confira os principais trechos da
entrevista
• O
senhor acaba de ser eleito o novo diretor da FMB. Que mensagem o senhor
acredita que a comunidade da faculdade deu com esse resultado?
Entendo que, como deve ocorrer em instituição
universitária, a comunidade levou em consideração os currículos acadêmicos dos
candidatos a diretor e vice-diretor, o professor Eduardo Reis. Como professor e
pesquisador, acredito que a comunidade considerou o fato de ser um estudioso e
inovador na educação médica e um pesquisador reconhecido internacionalmente
através de trabalhos desenvolvidos na Faculdade de Medicina.
• Ao
longo de sua carreira, o senhor se destacou tanto por ser um dos pesquisadores
mais importantes (com grande número de citações em publicações) da faculdade
quanto por ter desempenhado cargos como o de pró-reitor na Ufba. Como essa
experiência anterior pode ajudar nessa nova função?
A pró-reitoria permitiu entender a administração
central da Ufba, como buscar recursos de manutenção de prédios e pesquisa
através de editais, ampliar bolsas de auxílio a estudantes carentes, entre
outras ações. Além disso, vai me facilitar dialogar com administração central
da Ufba visando as nossas propostas específicas para a FMB.
• Como
começou a sua relação com a própria FMB? Pode falar um pouco de sua trajetória,
inclusive os principais interesses de pesquisa?
Entrei como estudante de Medicina da Faculdade de
Medicina da Ufba, logo após ter sido aprovado em primeiro lugar no concorrido
vestibular de Medicina da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
Já como estudante, exercia liderança acadêmica de
diversas formas, formando grupos de estudos com os colegas e organizando
atividades extracurriculares com professores que se entusiasmavam em ensinar ao
ver a nossa vontade de aprender medicina.
Era indicado pelos colegas de turma para ser
representante de grupos em atividades extra-curriculares prioritariamente
acadêmicas como sessões de discussões de casos, de correlação
clínico-radiológicas e sessões anátomo-clínicas em hospital de emergência (no
antigo Hospital Getúlio Vargas) e no Hospital Couto Maia. Após a conclusão do
curso de medicina, fiz residência de clínica médica e nefrologia, parte no
Hupes/Ufba na Universidade de São Paulo (USP). Fiz mestrado em medicina interna
no programa de pós-graduação em Medicina e Saúde da FMB e mestrado em Saúde
Pública e PhD em Ciência Epidemiológica na Universidade de Michigan.
• Os
dias que antecederam à consulta foram marcados por ofensas e ataques, inclusive
de cunho racista. Como o senhor viu esses ataques à candidatura da sua chapa?
Achei extremamente deploráveis e procurei agir
serenamente para não interferir na nos projetos de campanha da minha chapa nos
momentos finais que antecederam à eleição. Como diretor, terei tolerância zero
a qualquer tipo de preconceito. Será criada uma ouvidoria para quem se sentir
atingido por preconceitos reporte e as queixas sejam investigadas pelas vias
competentes.
• Sua
candidatura foi abraçada por grandes pesquisadores da Ufba e também de outras
instituições (como Júlio Croda, da Fiocruz e da Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul). A que atribui esse movimento?
Pesquisadores valorizam o que produzimos em prol do
conhecimento científico, o que as pesquisas contribuem para a sociedade e a
contribuição para formar novos pesquisadores. Atribuo o movimento pelo
reconhecimento das minhas contribuições ao conhecimento científico, de
desenvolver uma linha de pesquisa com foco em problemas prevalentes na
sociedade com doença renal crônica e hipertensão arterial e já ter contribuído
para formar inúmeros mestres e doutores. Júlio Croda é um bom exemplo de egresso da FMB de grande
destaque como pesquisador e gestor, particularmente pelo trabalho durante a
pandemia da Covid-19.
• Em 215
anos, a Faculdade de Medicina mais antiga do Brasil nunca teve um diretor negro
e sequer teve candidato negro em outras eleições. Por que acredita que demorou
tanto a acontecer, em uma cidade com a população majoritariamente negra?
Boa pergunta. Não sei dizer exatamente as razões,
embora acredite que seja devido a vários fatores, sendo um deles o percentual
de pessoas negras bem menor que as brancas que entravam na Faculdade de
Medicina e outras faculdades até pouco tempo. Acredito que vamos ver mais
professores negros como diretores da Faculdade de Medicina da Bahia nas
próximas décadas com o maior acesso de pessoas negras nas faculdades públicas
de Medicina.
• No
começo da semana, publicamos uma reportagem sobre a nova cara dos estudantes de
Medicina da Ufba, que são mais diversos, inclusive racialmente. Como o senhor
vê esse novo momento da faculdade? Como essa diversidade pode ajudar a
desenvolver o ensino, a pesquisa e a extensão na unidade?
A nova cara dos estudantes representa o que muitos
de nós queríamos. É muito bem-vinda. Os dados mostram que os estudantes são
muito interessados em aproveitar ao máximo as oportunidades de ensino, pesquisa
e extensão que não teriam se não fossem as políticas de maior inclusão de
pessoas pobres e negras.
• Quais
são os seus planos para a FMB? Quais serão as prioridades para os próximos
quatro anos?
Os planos são vários e estão descritos no plano de
gestão. Entre eles estão: ampliação dos campos de práticas, de urgência-emergência,
atenção básica à saúde, saúde da família e terapia ocupacional que sejam
próprios da Faculdade de Medicina de uma forma que evite que os estudantes
tenham o aprendizado comprometido por não terem prioridade de atuação com
relação a estudantes de escolas privadas de medicina.
(Vamos) Incentivar um modelo pedagógico orientado
por evidências científicas da área educacional, saúde e medicina, que integre
áreas de conhecimento para melhorar a formação dos novos médicos, mais hábitos
a atenderem a demanda do Sistema Único de Saúde. Na área de extensão, uma das
nossas propostas é a criação do Centro Internacional de Estudos da Saúde da
População Negra e Indígena, agregado ao Memorial da Medicina Brasileira no
prédio da Faculdade de Medicina no Terreiro de Jesus.
Entre as atividades do centro está formação de um
grupo de fomento à pesquisa que promova maior integração de pesquisadores e das
pós-Graduações da Faculdade de Medicina com outras unidades da Ufba, Fiocruz e
outros institutos de pesquisa nacionais e do exterior, para incentivar
pesquisas em áreas temáticas que respondam a questões prioritárias de saúde da
nossa população. Exemplos disso são estudos para avaliar efetividade de
tratamento, e programas educativos
visando redução de crises, prevenção de complicações em portadores
doenças prevalentes e graves na nossa população como anemia falciforme,
hipertensão arterial, diabetes, doenças neurológicas, doenças renais,
hepatopatias, cardiopatias, depressão, doenças endócrinas e pulmonares.
• Nos últimos
anos, vimos um crescimento grande de vagas de graduação em Medicina em
universidades privadas que cobram altas mensalidades. Como o diretor da
faculdade mais antiga do país, de que forma vê essa ampliação de vagas em
geral?
Vemos o grande crescimento grande de vagas de
graduação em Medicina em universidades privadas que cobram altas mensalidades
como muito preocupante, particularmente ao se observar que o crescimento de
vagas não se acompanha de melhor qualidade na formação médica.
• Vivemos
um momento em que, apesar de ter aumentado o número de vagas de graduação,
inclusive no interior, a concentração de médicos especialistas fora de Salvador
ainda é pequena. Pensando em sua ligação com a comunidade e em seu dever
social, como a faculdade pode contribuir para a interiorização de mais médicos
especialistas no estado?
Formar médico com boa formação geral, que inclua
conhecimento e prática em atenção básica, saúde da família e
urgência/emergência de forma a atender as demandas das comunidades do interior.
Desenvolver trabalho conjunto com o programa de residência médica do Hospital
Universitário Professor Edgard Santos da Faculdade de Medicina visando médicos
especialistas. (Também) Em parcerias com o governo estadual e Ministério da
Saúde (MS), a nível nacional criar condições favoráveis de trabalho, incluindo
bons salários, para que os médicos
permaneçam em atividades prioritariamente em cidades do interior da Bahia, o
que atualmente deve ser facilitado pelo estrutura de cargos, salários e
benefícios para os médicos desenvolvida pelo MS.
Fonte: Correio
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