PEGOS PELO SUS: Ironia aumenta pelo fato de Bolsonaro ter sido apanhado por um sistema eletrônico público e auditável
Se
há dúvidas ainda pendentes sobre o destino jurídico de Jair Bolsonaro, algo
está claro desde logo: as coisas não estão ficando melhores a cada dia para
ele. Além das perspectivas sombrias na Justiça Eleitoral, onde é provável que
sua inelegibilidade seja em breve declarada pelo Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), outras tantas investidas têm se aproximado, cada uma a seu ritmo, do
ex-presidente e de seu círculo mais íntimo. Aos inquéritos penais sobre, entre
outros possíveis crimes, milícias digitais, tentativa de golpe no 8 de janeiro,
descaminho e desvio das joias sauditas, um punhado de crimes da pandemia e
interferência na Polícia Federal, soma-se agora a investigação sobre fraudes a
documentos e sistemas públicos de saúde.
A
apuração veio a público já com um conjunto robusto de evidências documentais
que levam o esquema a um palmo do nariz de Bolsonaro. Seu braço direito e homem
de absoluta confiança, com quem o ex-presidente talvez passasse mais tempo do
que gastava com a própria família, agiu, de forma planejada e através de
diversos atos, para (i) fraudar diversos cartões vacinais, entre os quais os do
ex-presidente e de sua filha; (ii) inserir essas informações fraudulentas em um
sistema informático do governo federal, visando a obter vantagens que sem elas
não estavam garantidas; (iii) apagar essas informações fraudulentas após
havê-las utilizado, na esperança de que isso eliminaria os rastros dos crimes
anteriores (sim, sim, que gênios…); e (iv) constituir, em seu favor, documento
público de teor falso, que pode ou não ter sido efetivamente usado, no Brasil
ou no exterior.
A
motivação para a prática dos crimes apontados pela Polícia Federal está desde
logo bastante clara: diversos dos envolvidos, Bolsonaro inclusive, precisavam
de um documento com fé pública que atestasse sua condição de vacinados, para
garantir que pudessem ingressar, permanecer e retornar de um país que exigia a
imunização de viajantes estrangeiros. Apenas um dos envolvidos precisava
remover obstáculos de outra ordem para obter um visto de viagem: Marcello
Siciliano (PP-RJ), ex-vereador do Rio de Janeiro, não conseguia obter vistos
para os Estados Unidos por ter sido citado nas investigações sobre a morte de
Marielle Franco, e pediu ajuda ao braço direito de Bolsonaro, o tenente-coronel
do Exército Cid, para que essa dificuldade fosse superada. Em troca, garantiria
que agentes públicos do município fluminense de Duque de Caxias, reduto de
políticos fiéis a Bolsonaro, inserissem informações falsas, inclusive as do
ex-presidente, no cadastro nacional de vacinação. “Quem quer rir tem que fazer
rir” é o lema da bandeira que tremula sobre essa irmandade.
Tudo
começou a dar errado quando, já há algum tempo, a Polícia Federal teve a boa
ideia de focar suas atenções em Mauro Cid, provável executor dos possíveis
crimes praticados em benefício de Jair Bolsonaro. Atuando como agente público
comum em funções civis, Cid não dispunha das proteções constitucionais e
privilégios funcionais que a Constituição guarda nem para a Presidência da
República nem para agentes militares. Seu celular, uma vez apreendido no
inquérito das milícias digitais, disse muito aos investigadores, inclusive
sobre potenciais crimes até então desconhecidos, como a fraude aos cartões de
vacina e ao sistema do SUS. Daí foi puxar o fio do novelo, e as perícias
mostraram que Jair Bolsonaro e sua filha caçula estiveram entre os
beneficiários do esquema.
Entre
os possíveis crimes que figuram no horizonte de alguns ou todos os investigados
estão, em primeiro lugar, a falsidade ideológica, com pena de dois a cinco
anos. Todo o esquema começou com a inserção de dados mentirosos em um documento
público, o cartão físico de vacinação, assinado por um agente com fé pública
(um médico do SUS), com o objetivo de alterar a verdade sobre um fato de
relevância jurídica (o status vacinal). O passo seguinte, que implicaria outro
crime em potencial – inserção de dados falsos em sistema de informações, pena
de dois a doze anos –, foi a transposição dessa informação falsa do documento
físico para o sistema do SUS. Na sequência, veio um terceiro ato: a alteração
não autorizada do mesmo sistema, dessa vez para suprimir os dados falsos
inseridos, com pena de até dois anos. Finalmente, para cada vez que o atestado
fraudulento de vacinação tiver sido efetivamente utilizado, restará configurado
um delito de uso de documento falso, com pena de dois a cinco anos. Mesmo que o
crime de corrupção de menores, aventado pela PF, pareça por ora improvável,
pois não há indícios de que a filha de Bolsonaro tenha sido diretamente
envolvida ou exposta à execução de qualquer delito, a encrenca não é pequena,
como parecem acreditar os bolsonaristas que desdenham da gravidade dos delitos
para defender o ex-presidente nas redes.
Como
a materialidade dos crimes parece estar convincentemente demonstrada pelos
muitos rastros digitais deixados pelos investigados, seja nas mensagens de seus
celulares, seja no próprio sistema do SUS (que documenta cada acesso e cada
alteração, tentada ou consumada, sobre seus dados), o esforço daqui em diante
deve se concentrar na determinação do quinhão de responsabilidade de cada um
dos envolvidos. Bolsonaro sabe disso, razão pela qual apressou-se em dizer que
ele não tinha conhecimento, nem participou da execução, de nenhum dos atos de
fraude praticados em benefício dele e da sua filha. De fato, quem tem as mãos
sujas com os rastros do crime são os médicos que assinaram a fraude, os agentes
públicos que inseriram os dados mentirosos no sistema, e os militares,
comandados por Mauro Cid, que agiram positiva e diretamente para colocar em
andamento essa engenhoca de crimes de falso.
Mas
não é impossível que Bolsonaro seja alcançado, pois sua relação hierárquica e
sobretudo o nível de confiança pessoal que o une a Mauro Cid podem levar à
interpretação de que as condutas praticadas pelo ajudante de ordens eram também
suas. Isso porque Cid agia de forma regular e rotineira em nome de Bolsonaro,
sendo notoriamente reconhecido como um longa manus do presidente – inclusive
pela chancela pública que o próprio Jair lhe dava. O ajudante de ordens está
para Bolsonaro como os diretores-corruptores das empreiteiras estavam para seus
chefes. Era com ele que Bolsonaro contava não apenas para as tarefas
ordinárias, que são típicas da ajudança, como também para as inconfessáveis.
Foi o mesmo Mauro Cid que enviou um emissário para, sem sucesso, tentar liberar
os diamantes que Bolsonaro queria guardar para si. Alexandre de Moraes e a
Polícia Federal não parecem acreditar que Cid tenha tido um arroubo de
pró-atividade insubordinada e agido à revelia de seu chefe. Só Lindôra Araújo,
a vice-procuradora-geral que não consegue ver maldade em Bolsonaro, acredita
nisso.
Além
da medida de autoria de todos os investigados, a principal questão jurídica
remanescente tem a ver com a competência processual. Moraes e a PF sustentam
que há íntima relação entre a fraude aos cartões e os atos antidemocráticos,
pois ela serviria para permitir ao presidente manter sua persona antivacinal.
Daí porque, diz Moraes, o juiz prevento seria ele, que já cuida dos atos
antidemocráticos. Mas a modificação da competência pela prevenção exige mais do
que a circunstância de um fato ter sido descoberto no contexto da investigação
sobre outro, sob pena de um procedimento de objeto mais amplo fagocitar tudo no
seu entorno, em prejuízo da regra constitucional do juiz natural. Nunca é
demais lembrar que foi esse o pecado jurídico que desmontou a operação Lava
Jato, que tentou constituir a 13ª Vara Federal de Curitiba como uma espécie de
juízo universal para assuntos de corrupção federal.
Além
da defesa jurídica do “fraudaram meu cartão, foi?”, Bolsonaro e seu entorno
montaram também um discurso político para o revés de ontem. Apontaram para a
natureza política da operação, que teria sido armada para reagir a uma semana
boa do ex-presidente, que desbancou o ministro da agricultura como principal
personagem de um grande evento de ruralistas no interior de São Paulo, e ruim
para o governo, que deu mostras de sua fraqueza na Câmara ao não conseguir
garantir a votação do PL 2630, sobre transparência e responsabilidade na
internet.
Esse
argumento pode colar perante a claque, mas faz pouco sentido juridicamente. Não
apenas porque a ação da PF foi precedida de uma longa investigação, que estava
em curso muito antes das sortes e reveses desta semana, mas principalmente porque
uma operação de porte, como a desta quarta-feira, precisa ser preparada com
certa antecedência. É jurídica e logisticamente impossível que uma ação da PF
contra múltiplos investigados, em diferentes locais do país, seja posta em
marcha na quarta-feira porque na noite do dia anterior o governo não conseguiu
encaminhar uma votação no Congresso.
Ao
mesmo tempo em que os bolsonaristas buscam reagir, é impossível negar a
significação política de que esse apuro específico, que chega próximo de
Bolsonaro como nenhuma outra ação anterior – a busca e apreensão em sua
residência, inclusive de seu celular, são um novo patamar de pressão contra ele
– tenha se dado em uma série de crimes contra o SUS, a quem sua presidência
tanto maltratou. Não bastasse isso, as provas fartas que parece haver quanto
aos crimes cometidos só existem porque o sistema eletrônico violado, o banco de
dados vacinal, é auditável. Se os crimes tivessem ficado no papel, e os cartões
físicos tivessem sido destruídos após sua utilização, é possível que a
materialidade dos delitos não pudesse ser comprovada. Mas graças a um sistema
de informações que registrou cada passo de seus violadores, Bolsonaro e sua
trupe não podem contar com a impunidade em seu favor.
PF e CGU também investigam registro falso
de vacina de Bolsonaro em São Paulo
A
investigação da Polícia Federal (PF) que apura a suposta inserção de dados
falsos de vacinação contra a Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde
também encontrou, no ConecteSUS do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), um
registro de dose única da Janssen, que teria sido aplicada em São Paulo.
Além
das duas doses da Pfizer supostamente aplicadas em Duque de Caxias (RJ), onde a
PF investiga o funcionamento de uma organização criminosa composta por
funcionários da prefeitura e servidores do município, o sistema do Ministério
da Saúde também apontou o registro de uma dose aplicada no presidente em 19 de
julho de 2021.
A
vacinação teria sido feita na UBS Parque Peruche, na zona norte da capital
paulista. Depois da inserção dos dados fraudulentos, a conta de Bolsonaro no
ConecteSUS emitiu comprovantes de vacinação outras quatro vezes.
Como
adiantado pela coluna de Guilherme Amado, do Metrópoles, ontem, investigação
conduzida pela Controladoria-Geral da União (CGU) aponta que o registro foi
inserido no sistema entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2022,
mais de um ano depois da suposta vacina, o que é um indício de fraude.
A
primeira emissão foi feita do Palácio do Planalto, em 22 de dezembro, às 8h. Às
19h da noite anterior, em 21 de dezembro, o secretário municipal de governo de
Duque de Caxias (RJ), João Carlos de Sousa Brecha, inseriu as duas doses da
Pfizer no sistema do Ministério da Saúde.
Um
segundo acesso ao ConecteSUS para emitir comprovante de vacinação para
Bolsonaro foi feito quase uma semana depois, em 27 de dezembro, às 14h. As duas
doses da Pfizer ainda constavam no sistema, assim como a da Janssen.
Poucas
horas depois, por volta das 21h, a servidora da Prefeitura de Duque de Caxias
Claudia Helena Acosta Rodrigues da Silva excluiu os registros das duas doses
que Bolsonaro teria tomado na cidade, nos dias 13 de agosto e 14 de outubro. No
mesmo momento, a servidora apagou também o registro da vacinação da filha do
ex-presidente, Laura Bolsonaro.
Para
a PF, o pequeno intervalo entre a inserção e a retirada dos dados e a emissão
dos comprovantes demonstra a ciência, por parte dos auxiliares de Bolsonaro, da
operação fraudulenta.
Duas
horas antes da viagem de Bolsonaro a Orlando, em 30 de dezembro, um novo acesso
ao ConecteSUS do ex-presidente foi feito pelo celular do ex-ajudante de ordens
Mauro Cid. Ele emitiu um terceiro certificado de vacinação em nome de Bolsonaro
– desta vez, constava apenas a dose única da Janssen, que teria sido aplicada
em São Paulo.
Em
14 de março, como mostrou a coluna de Igor Gadelha, do Metrópoles, Bolsonaro
emitiu um novo certificado de vacinação poucos dias antes de voltar ao Brasil,
depois de passar uma temporada nos Estados Unidos.
Fonte:
Revista Piauí/Metrópoles
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