O apocalipse dos
insetos no Antropoceno
“Para
ser franco, não é provável, em um futuro previsível, que todos os insetos desapareçam: na verdade, alguns insetos provavelmente
sobreviveriam à humanidade. O que as evidências mostram é uma combinação
de extinções definitivas e declínios
populacionais drásticos que alguns cientistas chamam de defaunação”. A reflexão é de Ian Angus, filósofo
canadense.
>>>> Eis o artigo.
“A
questão é saber se uma civilização pode travar uma guerra implacável contra a
vida sem se autodestruir e sem perder o direito de ser chamada de civilizada”.
Já
se passaram seis décadas desde que Rachel Carson escreveu seu
brilhante livro Primavera silenciosa, muitas vezes descrito
como a obra fundadora do movimento ambientalista moderno. O objetivo de Rachel Carson era acabar com a matança de insetos,
e muitas pessoas pensaram que sua causa foi bem-sucedida quando o uso
generalizado do DDT foi
suspenso [Paul Hermann Müller,
funcionário da Geigy, é o
inventor do DDT, e recebeu
um Prêmio Nobel por esta façanha].
A
vitória durou pouco. Quando Primavera silenciosa foi publicado,
minha família tinha acabado de se mudar para a zona rural do leste de Ontário (Canadá). Na adolescência, não fiquei feliz por perder a vida
social urbana, mas me encantei pelas paisagens que nunca tinha visto na cidade.
Especialmente, no verão, um campo perto de nossa casa ficava repleto de
borboletas-monarca durante o dia e vaga-lumes à noite. Passei muitas horas observando
esses insetos.
Lis Angus e eu ainda moramos nesta casa. Esse
campo ainda existe, em estado
selvagem, mas não vemos uma monarca ou um vaga-lume há décadas. A
matança contínua dos animais de seis patas é maior e mais prejudicial do que
qualquer coisa que Rachel Carson poderia ter imaginado.
*
* *
Em
3 de fevereiro, um relatório detalhado mostrou que 80% das espécies de
borboletas do Reino Unido viram
seu número ou distribuição diminuir desde a década de 1970, e metade delas
agora é considerada ameaçada ou quase ameaçada de extinção.
Com as borboletas sendo de longe os insetos selvagens monitorados
com maior regularidade, seu declínio é comparável ao proverbial canário que
parou de cantar ou morreu alertando os mineiros de carvão sobre o acúmulo
de gases mortais. Se houver menos borboletas,
provavelmente haverá menos insetos de todos os
tipos.
No
mesmo dia, cientistas da Academia
Chinesa de Ciências Agrícolas relataram que, desde 2005, as 98
espécies de insetos voadores que migram a cada ano
para a Baía de Bohai, entre
a China e a Coreia, estão experimentando um
declínio constante. O número de insetos que
se alimentam de plantas (fitófagos) diminuiu 8% e os insetos predadores que as comem caíram quase 20%. Segundo os autores,
esses dados revelam “um declínio crítico na diversidade funcional (de insetos) e uma perda constante
de resiliência ecológica em todo o leste
da Ásia”.
Esses
estudos, realizados em todo o mundo, aumentam as evidências cada vez maiores de
um rápido declínio na vida dos insetos em
todo o mundo. Embora a maioria dos grupos de conservação ilustre seus apelos de
arrecadação de fundos com fotografias de pandas, tigres e pássaros raros, o
declínio generalizado de insetos representa
a maior ameaça a toda a vida no Antropoceno. Scott Black, diretor executivo da Xerces Society,
uma organização sem fins lucrativos que se concentra na proteção de insetos e outros invertebrados,
resume o perigo de forma concisa:
“Por
mais que cuidemos do planeta, vamos desaparecer antes dos insetos. Mas o que veremos são menos
pássaros no céu, se ainda houver algum. Para haver pássaros, você precisa
de insetos. Se você quer
frutas e legumes, precisa de insetos.
Se você quer solos saudáveis, precisa de insetos. Se você quer populações
diversas de plantas, precisa de insetos”.
Os insetos são fundamentais para
aquilo que Karl Marx chamou de metabolismo
universal da natureza, a reciclagem constante da energia e da matéria que torna
a vida possível. Os artrópodes – majoritariamente insetos, mas também aranhas, ácaros, centopeias e lacraias –
polinizam 80% de todas as plantas, reciclam os nutrientes essenciais à vida, criam solos saudáveis e
férteis, purificam a água e são o principal alimento de muitas aves e animais.
Se eles desaparecessem completamente, a biosfera entraria em colapso, e o homem
não sobreviveria por muito tempo.
“A
maioria dos peixes, anfíbios, pássaros e mamíferos seriam extintos em questão
de pouco tempo. Em seguida, a maioria das plantas com flores desapareceria e,
com elas, a estrutura física da maior parte das florestas do mundo e de
outros habitats terrestres. A terra apodreceria. À
medida que a vegetação morta se acumulasse e secasse, encolhendo e obstruindo
os circuitos dos ciclos de nutrientes, outras formas complexas de vegetação
desapareceriam e, com elas, os últimos vestígios de vertebrados. Os fungos remanescentes,
depois de experimentarem uma explosão populacional de proporções assombrosas,
também desapareceriam. Em poucas décadas, o mundo voltaria ao estado de um
bilhão de anos atrás, consistindo principalmente de bactérias, algas e algumas
outras plantas multicelulares muito simples”.
Para
ser franco, não é provável, em um futuro previsível, que todos os insetos desapareçam:
na verdade, alguns insetos provavelmente
sobreviveriam à humanidade. O que as evidências mostram é uma combinação
de extinções definitivas e declínios
populacionais drásticos que alguns cientistas chamam de defaunação [desaparecimento
gradual de animais em uma comunidade]. “Se não for controlada, a defaunação
pode se tornar não apenas uma característica da sexta extinção em massa do
planeta, mas também um impulsionador de transformações globais fundamentais no
funcionamento do ecossistema”.
A
maioria dos relatos sobre a vida na Terra concentra-se
em mamíferos, pássaros, peixes e répteis, mas, na verdade, a grande maioria dos
animais são insetos.
Ninguém sabe exatamente quantos são, mas uma boa estimativa é de dez
quintilhões – 10 seguido de dezoito zeros, ou bem mais de um bilhão de insetos para cada ser humano.
Juntos, eles pesam muito mais do que todos os outros tipos de animais
(incluindo os humanos) juntos. São imensamente variados: só nos Estados Unidos existem
aproximadamente 23.700 espécies de besouros, 19.600 espécies de moscas, 17.500
espécies de formigas, abelhas e vespas e 11.500 espécies de mariposas e de
borboletas diurnas. Um milhão de espécies de insetos foram registradas em todo o mundo, e acredita-se que
outras quatro milhões ainda não foram identificadas ou nomeadas. No ritmo
atual, muitos delas desaparecerão antes que os humanos saibam que elas existem.
Com
populações tão grandes, é difícil imaginar que todas as espécies, ou mesmo uma
proporção significativa delas, possam estar ameaçadas. Além das borboletas, que
são bonitas, e das abelhas, que são úteis, até recentemente as ameaças à vida
dos insetos raramente
eram mencionadas nos relatórios de degradação
da biodiversidade. O premiado livro de Elizabeth Kolbert, A sexta extinção, publicado em
2014 [a versão portuguesa é da Intrínseca, 2015], por exemplo, refere-se apenas
brevemente ao declínio dos insetos,
como uma consequência difícil de mensurar do desmatamento da Amazônia. Dodging Extinction. Power, Food, Money, and the Future of Life on
Earth, de Anthony Barnosky, também publicado
em 2014 [University of California Press], menciona os insetos apenas duas vezes. Da mesma forma, o
best-seller de David Wallace-Wells de
2019, A terra inabitável: Uma
história do futuro (Companhia das Letras, 2019) contém apenas
três parágrafos sobre insetos.
Esses
autores não ignoraram arbitrariamente nossos parentes de seis patas: suas
omissões refletem uma lacuna de longa data na literatura científica. Embora os
entomologistas tenham publicado muitos relatórios sobre a biologia e o
comportamento de espécies específicas, poucos examinaram ou mediram a evolução
das populações de insetos ao
longo do tempo. Mesmo entre as abelhas, um dos grupos de insetos mais
estudados, a Academia Nacional de
Ciências dos Estados Unidos lamentou em 2007 que “faltam dados de
longo prazo sobre as populações e o conhecimento de seu ecossistema básico é
incompleto”.
Uma
inflexão se deu em outubro de 2017, quando doze cientistas europeus publicaram
um relatório inovador sobre o declínio de insetos voadores em áreas de conservação da natureza na Alemanha. Durante quase três décadas,
membros da Sociedade Entomológica de Krefeld (Renânia do Norte-Vestfália),
administrada por voluntários, capturaram e contaram insetos em sessenta e três
reservas naturais, usando armadilhas em forma de tenda. Uma análise de suas
pesquisas, publicada na revista PLOS One, revelou uma tendência alarmante
no tocante a abelhas, vespas, borboletas, moscas, besouros e outras espécies.
“Nossos
resultados documentam um declínio dramático na biomassa média de insetos suspensos no ar de 76%
(até 82% no meio do verão) em apenas 27 anos nas áreas naturais protegidas
da Alemanha…
O
declínio generalizado da biomassa de insetos é alarmante, especialmente porque todas as armadilhas
foram colocadas em áreas protegidas destinadas a preservar as funções do
ecossistema e da biodiversidade. Embora o declínio gradual de espécies raras
de insetos seja
conhecido há algum tempo (por exemplo, as borboletas especializadas,
dependentes de certos tipos de vegetação), nossos resultados ilustram um
declínio contínuo e rápido na quantidade total de insetos voadores ativos no espaço e no tempo.
Em
2018, outro grupo de cientistas mostrou que entre 2008 e 2017 a diversidade, a
biomassa e a abundância de insetos diminuíram
significativamente nas pastagens e nas florestas alemãs, e um estudo publicado
no Proceedings of the National
Academy of Sciences revelou que as populações de insetos nas florestas tropicais
porto-riquenhas caíram 98% desde a década de 1970. (Embora houvessem debates
sobre os números precisos e a metodologia, agora existem – como escreveu o
ecologista britânico William Kunin na prestigiada
revista Nature –
“sólidas evidências sobre o declínio de insetos”.)
Essas
conclusões levaram os ecologistas e os entomologistas de todo o mundo a se debruçar
sobre os estudos e registros anteriores, em busca de dados que possam ser
usados para medir as mudanças nas populações de insetos. Em 2019, a revista Biological Conservation apresentou
uma revisão detalhada de 73 estudos publicados sobre o declínio dos insetos.
“A
partir da nossa compilação dos relatórios científicos publicados, estimamos que
a proporção atual de espécies de insetos em
declínio (41%) é duas vezes maior que a de vertebrados, e que a taxa de
extinção de espécies locais (10%) é oito vezes maior, o que confirma os
resultados anteriores. Atualmente, cerca de um terço de todas as espécies
de insetos estão
ameaçadas de extinção nos
países estudados. Além disso, a cada ano, cerca de 1% de todas as espécies
de insetos são
adicionadas à lista, e esse declínio na biodiversidade resulta em uma perda
anual de 2,5% de biomassa em escala mundial”.
De
lá para cá, como ilustram os estudos citados no início deste artigo,
proliferaram as pesquisas sobre as populações de insetos. Em fevereiro de 2023, o Google encontrou mais de 30.600
entradas para “insetos ameaçados” e o Google Scholar encontrou mais de 1.000 artigos acadêmicos. Para
relatos acessíveis das pesquisas mais recentes, recomendo ardorosamente dois
livros recentes: Silent Earth, de Dave Goulson, e The Insect Crisis,
de Oliver Milman. Ambos são
escritos por estudiosos sérios que evitam o sensacionalismo; no entanto, um se
refere a um “apocalipse dos insetos” e o outro descreve o
declínio das populações de insetos como
“uma situação desastrosa [que] dificilmente pode ser compreendida”.
Em The Cosmic Oasis, uma história da
biosfera publicada em 2022, Mark Williams e Jan Zalasiewicz, dois importantes
cientistas especializados na questão do Antropoceno, alertam que é impossível exagerar a ameaça
representada pelo declínio da vida dos insetos, o que pesquisas recentes
confirmaram.
“Cerca
de dois quintos das espécies de insetos do
mundo podem estar ameaçadas de
extinção dentro de algumas décadas; elas estão sendo amplamente
exterminadas nas paisagens urbanas e agrícolas, e são dizimadas pela poluição
em ambientes aquáticos… Sendo os insetos profundamente
integrados ao funcionamento dos ecossistemas terrestres, uma redução
significativa do seu número e de sua diversidade teria efeitos incalculáveis;
na verdade, provavelmente causaria um colapso total dos
ecossistemas, incluindo aqueles que nos sustentam”.
Fonte:
Alencontre - tradução do Cepat, para IHU
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