Entre
‘islamofascistas’ é tradição fazer os mortos votarem, diz advogado de direitos
humanos na Turquia
Ahmet Kiraz Hukuk Bürosu nasceu na região que foi o
epicentro de uma épica tragédia na história contemporânea da Turquia: o
terremoto que, em 6 de fevereiro, deixou pelo menos 50 mil mortos (números
oficiais, 200 mil de acordo com fontes paralelas) na região fronteiriça à
Síria. O advogado, conhecido em seu país por militar pelos direitos humanos de
presos políticos, conta como retirou com as próprias mãos os corpos de
familiares dos escombros. Ele recebeu a RFI em Elvan, no
centro de Istambul.
Formado em Direito pela Universidade de Estrasburgo,
no leste da França, Ahmet Kiraz voltou à Turquia, onde se juntou à oposição
pela legenda CHP, de Kemal Kiliçdaroglu, grande adversário de Recep Tayyip Erdogan nestas eleições de 2023. Nascido no vilarejo de Marash, epicentro da tragédia de 6 de fevereiro
passado, onde houve cerca de 30 terremotos, na região montanhosa de Elbistan,
ele recordou junto à reportagem os momentos dramáticos da retirada dos
corpos e do resgate aos sobreviventes.
"Marash também foi o epicentro do segundo
terremoto. Foi no meu vilarejo, um vilarejo alevita, nas montanhas", precisou.
"Felizmente, a pressão e a pobreza do local fizeram com que muitos de
seus habitantes estivessem no continente europeu no dia do terremoto",
disse. "A maioria são casas de concreto armado, construídas nos últimos
anos, portanto, não houve muitas que desabaram. No entanto, a casa dos meus
pais e do meu tio desabaram, mas não havia ninguém lá; mas, no
centro, perdemos o primo de minha mãe, sua esposa, seu filho de 19 anos e
a esposa do outro primo. Também perdemos a sobrinha da minha esposa, uma jovem de 27 anos, com seu
marido e duas meninas, de 2 e 6 anos", lamenta.
"Infelizmente, não tínhamos muita esperança de
retirar nenhum deles com vida, mas continuamos esperando até o último momento,
sem muito sucesso", lembra o advogado, que desenvolve um amplo trabalho em
prol dos direitos humanos de prisioneiros políticos nas prisões turcas.
Ahmet é também membro do Comitê de Assuntos
Jurídicos do partido CHP, de Kiliçdaroglu, para Istambul. Sozinho ele é responsável pela
segurança eleitoral no 2º distrito eleitoral da cidade, que abrange 12
distritos e mais de 300 mil eleitores. No dia da eleição, no domingo (28),
ele estará coordenando cerca de 1,5 mil advogados em 600 escolas onde
as pessoas estarão votando, num total de 8 mil urnas eletrônicas.
·
Desaparecidos, ou quando "os mortos votam"
Como os restos mortais de diversos
desaparecidos depois do terremoto não foram encontrados, essas pessoas ainda
não foram contadas e registradas na lista de vítimas turcas da tragédia. “Há um
caso muito emblemático em Hatay. Lá, os corpos de 80 pessoas não foram
encontrados depois que uma residência de luxo desmoronou completamente. Bem,
sabemos disso, então elas estão desaparecidas, mas não foram oficialmente
contabilizadas porque suas mortes não foram declaradas, é claro”, afirma o
advogado.
“Análises de DNA estão sendo realizadas e, mais cedo
ou mais tarde, elas serão contabilizadas. Mas e depois? Bem, para chegar às
consequências desse tipo de problema para as eleições, as mortes dessas pessoas
não foram declaradas, mas será que vamos fazê-las votar ou não?”, ironiza, não
sem certa amargura, Kiraz. "No referendo de 2010, o Fethullah Gülen,
hoje emir de Erdogan, declarou na ocasião que, se 'fosse o caso',
seria necessário fazer os mortos votarem’. Entre os islamofascistas
turcos, é uma tradição fazer os mortos votarem", suspira o ativista.
"Tememos que eles façam esse tipo de coisa com
o voto dos mortos nessas regiões, mas na prática é muito difícil provar esse
tipo de fraude, porque, por causa dos terremotos, muitas pessoas perderam seus
documentos de identidade e muitos documentos provisórios foram
entregues", explica. "Os portadores desses documentos são realmente
as próprias pessoas ou outras quaisquer? Nós não sabemos, por isso pedimos que
fosse usada a impressão digital com tinta nas cédulas, e o partido de Erdogan
recusou", denuncia Ahmet Kiraz.
Kiliçdaroglu ainda poderia vencer as eleições
Para o advogado, o candidato de cores mais progressistas, Kemal Kiliçdaroglu, ainda está no páreo e poderia vencer as eleições no domingo.
"Cometemos erros no primeiro turno que já corrigimos. Em primeiro lugar,
as pesquisas indicavam a vitória do nosso candidato. Por uma grande maioria,
confortavelmente; então o eleitorado apolítico, mas que também votaria na
oposição, não foi às urnas pensando que Kiliçdaroglu venceria de qualquer maneira", avalia.
"Em segundo lugar, tínhamos medo de que, na
noite da eleição, se ganhássemos, e achávamos que ganharíamos, haveria
violência e excessos; então, de repente, com nosso candidato presidencial na
liderança, conclamamos nosso eleitorado a ir votar e depois a ir para casa, a
ficar em casa, a manter a calma. Nossos membros das seções eleitorais, nossos
observadores, se viram sozinhos diante das ordens do partido de Erdogan, que os
pressionou e invalidou votos válidos para a oposição, além de validarem votos
inválidos para o governo", denuncia.
"Portanto, esses dois problemas que tivemos no
primeiro turno não existirão no segundo. Nossos ativistas monitoram as urnas e
convocaram pelo menos cinco observadores para cada uma delas. Portanto, vamos
nos mobilizar muito mais fortemente do que no primeiro turno",
completou.
Voto na Turquia é comunitário, religioso e étnico
"Essencialmente, na Turquia, a população vota
em uma base comunitária. O voto é comunitário e étnico. E religioso,
infelizmente", lemanta Ahmet. "Acima de tudo, e isso foi confirmado
mais uma vez, mas, mesmo assim, os reflexos estão mudando pouco a pouco porque
a situação econômica é realmente muito complicada para muitas pessoas. A AKP
[partido de Erdogan] tem mais de 100 mil membros, e todas essas pessoas recebem
ajuda do Estado. E ajuda pública por meio das fundações da legenda. Portanto,
essa população dificilmente é afetada pela situação econômica porque é
subsidiada pelo Estado", denuncia o advogado.
"Na Turquia atual, sabemos que desde a chegada
ao poder de Erdogan, o partido AKP recebe das empresas 20% do preço dos
contratos públicos. Esse dinheiro vai para fundações, para fundos secretos e é
distribuído para membros do partido, para seus parentes e para seu
eleitorado", afirma.
"E é por isso que o eleitorado da oposição, o
cidadão comum, é diretamente afetado pela situação econômica. Mas os ativistas,
os membros do AKP e suas famílias, não são afetados porque recebem, além de
seus salários, ajuda direta não declarada do Estado", conclui Kiraz.
Ø Erdogan busca mobilizar sua base conservadora
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, visitou
neste sábado (27) o túmulo de seu modelo político, um nacionalista-islâmico
enforcado por um governo militar em 1961, buscando mobilizar sua base
conservadora na véspera de um segundo turno histórico.
A visita ao mausoléu do ex-primeiro-ministro Adnan
Menderes, em Istambul, representa um importante símbolo para o chefe de Estado
de 69 anos, grande favorito nas eleições presidenciais de domingo contra o
social-democrata Kemal Kiliçdaroglu.
Menderes, uma figura emblemática da direita
conservadora da Turquia, foi julgado e enforcado um ano depois que os militares
deram um golpe de Estado em 1960 para conduzir a Turquia a um rumo mais laico.
Erdogan, que sofreu uma tentativa de golpe em 2016,
se projeta em Menderes e o mencionou em seus discursos de campanha.
Há duas semanas, e apesar do desgaste de 20 anos no
poder, Erdogan contrariou as pesquisas e ficou à frente de Kiliçdaroglu no
primeiro turno, com 49,5% dos votos, e uma diferença de 2,5 milhões de votos
ante o adversário, que obteve 45%
Desde então, Kiliçdaroglu, de 74 anos e líder de uma
coalizão heterogênea de seis partidos, tem feito todo o possível para mobilizar
o eleitorado, inclusive buscando simpatizantes da direita.
Seus apoiadores foram às ruas das principais cidades
para buscar apoios e, neste sábado, o popular prefeito de Istambul, Ekrem
Imamoglu, membro do partido de Kiliçdaroglu, o CHP, fará um discurso.
Mas ao contrário do presidente atual, onipresente
nos palcos e na televisão, Kiliçdaroglu teve que lutar para ser ouvido em todo
o país.
Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, a
televisão pública TRT deu a Erdogan “sessenta vezes mais tempo de antena” do
que seu rival durante a campanha.
– “Manter-se no poder” –
Kiliçdaroglu voltou a denunciar, na sexta-feira, o
bloqueio das suas mensagens de texto “por ordem de Erdogan” por parte da BSK, a
autoridade reguladora das telecomunicações.
O presidente “tenta por todos os meios se manter no
poder”, disse ele, em entrevista à rede Fox.
“Eles tomaram o controle de todas as instituições
(que) pertencem a 85 milhões de pessoas, não a um homem”, acusou.
Erdogan acusou “a mídia ocidental de tentar, como
sempre, fabricar notícias falsas”.
Em todo caso, a aritmética favorece o atual
presidente, depois de ter obtido o apoio do terceiro candidato que disputou o
primeiro turno, Sinan Ogan, um ultranacionalista que obteve 5,2% dos votos.
Foi em parte para lisonjear esse eleitorado que
Erdogan decidiu, no último dia de campanha, visitar o túmulo de Mederes, cujo
modelo inspirou o partido conservador islâmico AKP que acompanhou sua ascensão
ao poder no início dos anos 2000.
Fonte: RFI/IstoÉ
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