domingo, 28 de maio de 2023

As habilidades profissionais que inteligência artificial ainda não consegue replicar

Desde o início da Revolução Industrial, surgem ameaças de que novas máquinas — de teares mecanizados a microchips — podem se apropriar dos empregos humanos. Na maior parte das vezes, os humanos levaram a melhor.

Mas, agora, já podemos ver a inteligência artificial onipresente no horizonte. E especialistas afirmam que esta ameaça está se tornando realidade: os robôs realmente estão chegando para assumir parte dos empregos humanos.

Um relatório do grupo financeiro Goldman Sachs, publicado em 2023, estima que a inteligência artificial capaz de gerar conteúdo pode fazer um quarto de todo o trabalho atualmente realizado por seres humanos. Segundo o relatório, 300 milhões de empregos podem ser perdidos para a automação em toda a União Europeia e nos Estados Unidos.

As consequências podem ser desastrosas, de acordo com Martin Ford, autor do livro Rule of the Robots: How Artificial Intelligence Will Transform Everything ("A regra dos robôs: como a inteligência artificial irá transformar tudo", em tradução livre).

"Não é algo que pode acontecer apenas individualmente, pode ser bastante sistêmico", diz ele.

"Pode acontecer com muita gente, talvez subitamente, talvez com todos ao mesmo tempo. E isso traz consequências não só para aqueles indivíduos, mas para toda a economia."

Felizmente, nem tudo são más notícias. Os especialistas fazem uma ressalva: ainda existem coisas que a inteligência artificial não consegue fazer — tarefas que envolvem qualidades claramente humanas, como a inteligência emocional e o pensamento criativo.

Por isso, mudar para funções centralizadas nestas habilidades pode ajudar a reduzir as chances de ser substituído pela inteligência artificial.

"Acho que existem três categorias gerais que vão estar relativamente protegidas no futuro próximo", afirma Ford.

"Primeiro, os empregos genuinamente criativos. Você não está fazendo um trabalho previsível, nem simplesmente reorganizando as coisas. Você está genuinamente criando novas ideias e construindo algo novo."

Isso não significa, necessariamente, que todos os empregos considerados "criativos" estejam seguros. Na verdade, atividades como o design gráfico e relacionadas às artes visuais podem estar entre as primeiras a desaparecer. Algoritmos básicos podem orientar um robô a analisar milhões de imagens, permitindo que a inteligência artificial domine instantaneamente a estética.

Mas existe alguma segurança em outros tipos de criatividade, segundo Ford:

"Na ciência, na medicina e no direito... pessoas cujos empregos geram novas estratégias legais ou comerciais. Acho que, ali, continuará a haver um lugar para seres humanos."

A segunda categoria protegida, de acordo com Ford, é a dos empregos que exigem relações interpessoais sofisticadas. Ele destaca enfermeiros, consultores comerciais e jornalistas investigativos.

Para ele, estes são empregos "nos quais você precisa de compreensão muito profunda das pessoas. Acho que vai levar muito tempo até que a inteligência artificial tenha a capacidade de interagir da forma que realmente estabelece relacionamentos."

A terceira zona segura, na opinião de Ford, é a dos "empregos que realmente exigem muita mobilidade, agilidade e capacidade de solução de problemas em ambientes imprevisíveis".

Muitos empregos no setor de serviços — eletricistas, encanadores, soldadores etc. — se encaixam nesta classificação.

"São tipos de trabalho em que você lida com uma nova situação o tempo todo", ele acrescenta ele.

"Provavelmente, são os de mais difícil automação. Para automatizar trabalhos como estes, você precisaria de um robô de ficção científica. Você precisaria do C-3PO de Star Wars."

Embora os empregos que se enquadram nestas categorias provavelmente vão continuar sendo ocupados por seres humanos, isso não significa que essas profissões estejam totalmente protegidas contra a ascensão da inteligência artificial.

Na verdade, segundo a professora de economia trabalhista Joanne Song McLaughlin, da Universidade de Buffalo, nos Estados Unidos, a maioria dos empregos, independentemente do setor, tem aspectos que provavelmente serão automatizados pela tecnologia.

Para ela, "em muitos casos, não existe ameaça imediata aos empregos, mas as tarefas vão mudar". Os empregos humanos vão ficar mais concentrados nas habilidades interpessoais, segundo McLaughlin.

"É fácil imaginar, por exemplo, que a inteligência artificial vai detectar câncer muito melhor do que os seres humanos", ela explica.

"No futuro, imagino que os médicos vão usar essa nova tecnologia. Mas não acho que todo o papel do médico será substituído."

McLaughlin afirma que, embora um robô possa ostensivamente fazer um trabalho melhor de diagnóstico do câncer, a maioria das pessoas ainda vai querer um médico — uma pessoa de verdade — para informá-las.

Ela acrescenta que isso é válido para quase todos os empregos e, por isso, desenvolver habilidades distintamente humanas poderá ajudar as pessoas a aprender a fazer seus trabalhos em parceria com a inteligência artificial.

"Acho que é inteligente pensar: 'Que tipo de tarefas no meu trabalho serão substituídas ou feitas com melhor qualidade pelo computador ou pela inteligência artificial? E quais são minhas habilidades complementares?'"

McLaughlin menciona o exemplo dos caixas bancários, que, antigamente, precisavam contar dinheiro com muita precisão. Agora, esta tarefa foi automatizada, mas ainda existe lugar no banco para os caixas.

"A tarefa de contar dinheiro ficou obsoleta devido à máquina", ela explica.

"Mas, agora, os caixas se concentram mais em criar um relacionamento com os clientes e apresentar novos produtos. As habilidades sociais ficaram mais importantes."

É preciso observar, segundo Ford, que um nível de escolaridade avançado ou um cargo com alto salário não são defesas contra a chegada da inteligência artificial.

"Podemos pensar que as pessoas em cargos administrativos estão em posição superior na cadeia alimentar em relação a alguém que dirige um carro para viver", ele afirma.

"Mas o futuro do funcionário de escritório está mais ameaçado do que o do motorista de Uber, pois ainda não temos carros autônomos, enquanto a inteligência artificial pode certamente escrever relatórios."

"Em muitos casos, os profissionais formados serão mais ameaçados do que aqueles com menos formação. Pense na pessoa que trabalha limpando quartos de hotel — é muito difícil automatizar esse serviço."

Em resumo, procurar trabalho em ambientes dinâmicos e versáteis, que incluem tarefas imprevisíveis, é uma boa forma de evitar perder o emprego para a inteligência artificial. Pelo menos, por enquanto.

 

Ø  Por que cientistas temem futuro catastrófico causado pela inteligência artificial

 

A inteligência artificial tem o incrível poder de mudar a forma como vivemos, para o bem e para o mal — e os especialistas têm pouca confiança de que os que estão no poder estejam preparados para o que está por vir.

Em 2019, o grupo de pesquisa sem fins lucrativos OpenAI criou um software que era capaz de gerar parágrafos de texto coerente e fazer análise e compreensão rudimentar de textos sem instruções específicas.

Inicialmente, a OpenAI decidiu não tornar sua criação — chamada de GPT-2 — totalmente disponível para o público. O receio era de que pessoas mal intencionadas pudessem usá-la para gerar grandes quantidades de desinformação e propaganda.

Em comunicado à imprensa anunciando a decisão, o grupo chamou o programa de "perigoso demais" na época.

Desde então, três anos se passaram, e a capacidade da inteligência artificial aumentou exponencialmente.

Em contraste com a distribuição limitada do GPT-2, a nova versão, o GPT-3, foi disponibilizada prontamente em novembro de 2022.

A interface ChatGPT derivada dessa programação gerou milhares de artigos de notícias e postagens de rede social, enquanto repórteres e especialistas testavam seus recursos — muitas vezes, com resultados impressionantes.

O ChatGPT escreveu roteiros de stand-up comedy no estilo do falecido humorista americano George Carlin sobre a falência do Silicon Valley Bank. Opinou sobre a teologia cristã, escreveu poesia e explicou física quântica para uma criança usando a linguagem e trejeitos do rapper Snoop Dogg.

Outros modelos de inteligência artificial, como o Dall-E, produziram imagens tão convincentes que geraram polêmica sobre sua inclusão em sites de arte.

Pelo menos a olho nu, as máquinas aprenderam a ser criativas.

Em 14 de março, a OpenAI apresentou a última versão do seu programa, o GPT-4. O grupo afirma que ele apresenta proteções mais sólidos contra usos abusivos. Os primeiros clientes incluem a Microsoft, o banco Merrill Lynch e o governo da Islândia.

E o tema mais quente na conferência interativa South by Southwest — uma reunião global de formuladores de políticas, investidores e executivos da área de tecnologia, realizada em Austin, no Estado americano do Texas — foi o potencial e o poder dos programas de inteligência artificial.

·         'Para o bem e para o mal'

Arati Prabhakar, diretora do Escritório de Política de Ciências e Tecnologia da Casa Branca, afirmou estar entusiasmada com as possibilidades da inteligência artificial, mas também fez um alerta.

"O que todos nós estamos vendo é o surgimento dessa tecnologia extremamente poderosa. É um ponto de inflexão", declarou ela na conferência.

"Toda a história demonstra que esse tipo de tecnologia, nova e potente, pode e será usada para o bem e para o mal."

Já Austin Carson, fundador da SeedAI, um grupo de consultoria sobre políticas de inteligência artificial, que participou do mesmo painel, foi um pouco mais direto.

"Se, em seis meses, vocês não tiverem perdido completamente a cabeça [e soltou um palavrão], pago um jantar", disse ele ao público presente.

"Perder a cabeça" é uma forma de descrever o que pode vir a acontecer no futuro.

Amy Webb, chefe do instituto Future Today e professora de negócios da Universidade de Nova York, nos EUA, tentou prever as possíveis consequências. Segundo ela, a inteligência artificial pode seguir uma dentre duas direções nos próximos 10 anos.

Em um cenário otimista, o desenvolvimento da inteligência artificial vai se concentrar no bem comum, com um design de sistema transparente, e os indivíduos vão ter a capacidade de decidir se suas informações disponíveis ao público na internet serão incluídas na base de dados de conhecimento da inteligência artificial.

Nesta visão, a tecnologia serve como uma ferramenta que facilita a vida, tornando-a mais integrada, à medida que a inteligência artificial passa a estar disponível em produtos de consumo que podem antecipar as necessidades do usuário e ajudar a desempenhar virtualmente qualquer tarefa.

O outro cenário previsto por Webb é catastrófico. Envolve menos privacidade de dados, poder mais centralizado em poucas companhias, e uma inteligência artificial que antecipa necessidades do usuário, mas as entende errado ou restringe escolhas possíveis.

Ela acredita que o cenário otimista tem apenas 20% de chance de acontecer.

Webb afirmou à BBC que o rumo que a tecnologia vai tomar depende, em grande parte, do grau de responsabilidade das empresas que vão desenvolvê-la. Será que elas vão fazer isso de forma transparente, revelando e fiscalizando as fontes das quais os chatbots — chamados pelos cientistas de Grandes Modelos de Linguagem (LLM, na sigla em inglês) — extraem suas informações?

O outro fator, segundo ela, é se o governo — incluindo os órgãos federais de regulamentação e o Congresso — pode agir rapidamente para estabelecer proteções legais para orientar os desenvolvimentos tecnológicos e evitar seu uso indevido.

Nesse sentido, a experiência dos governos com as empresas de redes sociais — Facebook, Twitter, Google e outras — é um indicativo. E não é uma experiência encorajadora.

"O que ouvi em muitas conversas foram preocupações de que não existe nenhuma barreira de proteção", afirmou Melanie Subin, diretora-gerente do instituto Future Today, na conferência South by Southwest.

"Existe a sensação de que algo precisa ser feito."

"E acho que as redes sociais, como uma preocupação, é o que fica na mente das pessoas quando observam a rapidez do desenvolvimento da inteligência artificial como geradora de conteúdo", acrescentou.

·         Combatendo o assédio e o discurso de ódio

Nos Estados Unidos, a supervisão federal das empresas de redes sociais é baseada, em grande parte, na Lei de Decência nas Comunicações, aprovada pelo Congresso americano em 1996, além de uma cláusula curta, mas poderosa, contida no artigo 230 da lei.

O texto protege as empresas da internet de serem responsabilizadas pelo conteúdo gerado por usuários em seus sites. A lei é creditada permitir um ambiente legal bastante favorável às empresas de redes sociais. E, mais recentemente, também foi acusada de permitir que essas mesmas empresas ganhem muito poder e influência.

Políticos de direita reclamam que a lei permitiu que os Googles e Facebooks da vida censurassem ou reduzissem a visibilidade das opiniões conservadoras. Já os de esquerda acusam as empresas de não fazerem o suficiente para evitar a disseminação de discursos de ódio e ameaças violentas.

"Temos a oportunidade e a responsabilidade de reconhecer que o discurso de ódio gera ações de ódio", afirmou Jocelyn Benson, secretária de Estado de Michigan, nos EUA.

Em dezembro de 2020, a casa de Benson foi alvo de protestos por parte de apoiadores armados de Donald Trump, organizados no Facebook, que contestavam os resultados da eleição presidencial de 2020.

Ela apoiou leis contra práticas enganosas no seu Estado, que responsabilizaria empresas de rede social por espalhar informações prejudiciais conscientemente.

Propostas similares têm sido apresentadas a nível federal e em outros Estados americanos, além de legislação que exige que os sites de redes sociais forneçam uma proteção maior a usuários menores de idade, sejam mais abertos sobre suas políticas de moderação de conteúdo e tomem ações mais efetivas para diminuir o assédio online.

Mas as chances de sucesso dessas reformas dividem opiniões. As grandes empresas de tecnologia mantêm equipes inteiras de lobistas na capital americana, Washington, e nas capitais dos Estados. Elas também contam com cofres abarrotados para influenciar políticos com doações de campanha.

"Apesar das imensas evidências de problemas no Facebook e em outros sites de redes sociais, já se passaram 25 anos", afirma a jornalista de tecnologia Kara Swisher.

"Ficamos esperando uma legislação do Congresso para proteger os consumidores, e eles abriram mão da sua responsabilidade."

Swisher afirma que o perigo reside no fato de que muitas das empresas que são grandes players nas redes sociais — Facebook, Google, Amazon, Apple e Microsoft — agora são líderes na área de inteligência artificial.

Se o Congresso não conseguir regulamentar com sucesso as redes sociais, será um desafio agir rapidamente para lidar com as preocupações sobre o que Swisher chama de "corrida armamentista" da inteligência artificial.

As comparações entre as regulamentações de inteligência artificial e as redes sociais também não são apenas acadêmicas. A nova tecnologia de IA pode navegar pelas águas já turbulentas de plataformas como Facebook, YouTube e Twitter e transformá-las em um mar revolto de desinformação, à medida que se torna cada vez mais difícil distinguir postagens de seres humanos reais de contas falsas — mas totalmente convincentes — geradas por IA.

Mesmo se o governo for bem-sucedido na aprovação de novas regulamentações para as redes sociais, elas podem acabar sendo inúteis se houver um imenso fluxo de conteúdo pernicioso gerado por inteligência artificial.

Entre as incontáveis sessões da conferência South by Southwest, houve uma intitulada "Como o Congresso [americano] está construindo a política de IA a partir do zero". Depois de cerca de 15 minutos de espera, os organizadores informaram ao público que o painel havia sido cancelado porque os palestrantes haviam se deslocado para o lugar errado.

Para quem estava na conferência e esperava mostras de competência entre os humanos no governo, o episódio não foi nada encorajador.

 

Fonte: BBC Worklife

 

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