A herança
arquitetônica brasileira sob risco na Nigéria
Ao
retornarem do Brasil à África no século 19, alguns milhares de ex-escravizados
levaram consigo uma série de hábitos relacionados às tradições brasileiras, tal
como a língua, a música e até alguns pratos típicos. Mas talvez a herança mais
palpável desse processo de regresso após 300 anos de trabalho forçado esteja
nos edifícios e obras arquitetônicas em países como Nigéria e Benin.
Na
região conhecida como bairro brasileiro, em Lagos, alguns prédios reproduzem a
arquitetura desenvolvida durante o período colonial no território brasileiro.
Ao andar pelos quarteirões dessa área, é quase impossível não notar as
semelhanças com o histórico Pelourinho, em Salvador, na Bahia.
E
não é um acaso. Ao final do século 19, com a revolta dos Malês, em Salvador,
em1835 (que envolveu cerca de 600 africanos escravizados, a maioria muçulmanos)
e posteriormente a abolição da escravatura, cerca de 8 mil escravizados
libertos e alforriados, ou que foram expulsos após a rebelião, retornaram à África.
Os
retornados ficaram conhecidos de diferentes formas ao longo da costa africana:
no Benin, no Togo e na Nigéria foram chamados de “agudás” e em Gana de
“tabons”.
Alguns
deles eram ourives, operários da construção civil ou outros trabalhadores que
aprenderam as técnicas de construção e arquitetura importadas da Europa e
adaptadas para a realidade brasileira da época.
A
historiadora e professora da Universidade de Harvard Suzanne Blier explica que
as marcas desse fenômeno podem ser reconhecidas não apenas em Lagos, mas em
outras partes da Nigéria e também em países como Benin, Angola, Congo e Serra
Leoa.
“Notamos
a influência em diferentes tipos de edifícios: em prédios religiosos, não só
igrejas mas mesquitas também, em sedes administrativas, palácios e casas da
elite da época”, explica.
Mas
os prédios que resistem na metrópole nigeriana estão entre os mais aclamados e
estudados.
Ainda
assim, há uma crescente preocupação com o estado de conservação dos edifícios,
que segundo especialistas contam uma parte importante da história de muitas
famílias nigerianas.
Femke
van Zeijl, secretária da ONG Legacy, que trabalha em prol da preservação de
monumentos e outros elementos culturais na Nigéria, afirma que há muito a
avançar em termos de conscientização sobre o valor dessa herança.
“Muito
desse legado está desaparecendo porque a Ilha de Lagos [onde está localizado o
bairro brasileiro] é o centro da cidade e um grande hub de negócios, onde se
lucra muito com a construção de novos prédios e arranha-céus”, afirma Van Zeijl
à BBC Brasil.
“Não
só as casas menores, térreas e mais simples estão sumindo, mas também
construções grandes e imponentes.”
Um
dos mais celebrados edifícios desse período, conhecido localmente como Ilojo
Bar, ou Casa Fernandez em português, foi demolido ilegalmente em 2016 apesar de
ter sido tombado pela Comissão Nacional de Museus e Monumentos e listado como
monumento nacional.
“Acordamos
em uma manhã de domingo em setembro de 2016 e o prédio simplesmente não estava
mais lá”, relata a pesquisadora da organização Legacy.
A
BBC News Brasil procurou o órgão nigeriano para esclarecimentos sobre esse
episódio e os esforços de conservação do quarteirão brasileiro e outros
edifícios no país, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
·
O legado
A
influência brasileira nos edifícios nigerianos pode ser notada principalmente
na estrutura e nos ornamentos das construções, segundo o arquiteto e professor
da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Fabio Velame.
“Há
influência do ponto de vista construtivo, por exemplo por meio do trabalho
extenso com pedra, o uso do óleo de baleia e da técnica do adobe, um método de
alvenaria em que se utilizam blocos em terra crua”, explica Velame.
“Mas
também se nota similaridades no acabamento dos telhados, nos arcos das janelas
e nos acabamentos com inspiração barroca e rococó.”
O
pesquisador afirma ainda que a inspiração vem da arquitetura colonial
luso-brasileira, que se instalou no Brasil a partir do século 17 e até final do
século 18 e início do 19 com a colonização portuguesa.
A
estética foi adotada na construção de edifícios religiosos, militares e de
moradia - especialmente casas da elite, formada na época por barões do café e
senhores de engenho.
Essa
influência persistiu até a chegada da comitiva de Dom João 6º ao Brasil em
1808, quando o Rio de Janeiro recebeu também artistas franceses que
introduziram influências arquitetônicas neoclassicistas.
“Os africanos que trabalhavam nas obras aqui
no Brasil, sobretudo em Recife e Salvador, acumularam conhecimento sobre os
materiais, as tecnologias de construção e a linguagem arquitetônica própria”,
explica Fabio Velame.
Segundo
a historiadora Suzanne Blier, essa herança foi reproduzida na Nigéria também em
edifícios voltados para a elite local da época.
“Muitos
palácios, casas de figuras políticas importantes e de mercadores e famílias
ricas foram construídos usando esses conhecimentos importados. Por isso esse
estilo ficou conhecido como uma marca da elite e um símbolo de riqueza.”
·
Conservação
Apesar
de sua relevância passada, esse legado brasileiro está em risco atualmente,
afirma Femke van Zeijl.
Algumas
famílias em Lagos ainda carregam marcas dos costumes brasileiros. Organizações
locais estruturam com frequência festas tradicionais, oferecem aulas de
português e atualmente estão trabalhando, em parceria com o consulado do Brasil
em Lagos, na construção de um museu para celebrar a sua herança.
Mas
para a pesquisadora, o patrimônio arquitetônico não recebe tanta atenção das
autoridades como deveria.
“Precisamos mostrar como o legado e a história
desses prédios estão ligados à população que mora ali. Muitas pessoas veem esse
passado como história brasileira e acham que não tem nada a ver com os nativos
de Lagos - mas não é verdade”, diz.
Além
da demolição do prédio conhecido como Ilojo Bar em 2016, outro belo edifício
foi destruído na década de 1980, afirma Van Zeijl. “Essa construção magnífica,
chamada Casa Araromi, foi destruída por um incêndio”, lamenta.
Uma
das poucas grandes construções que ainda restam na região de Lagos é a chamada
Casa d'Água. O prédio construído com tijolos tem pelo menos 15 janelas com
arcos e fica na movimentada rua Kakawa, cercado por lojas, bancos e outros
estabelecimentos comerciais.
A
representante da Legacy ressalta que casas menores e menos imponentes, mas que
possuem todos os elementos arquitetônicos importados do Brasil, também são
muitas vezes esquecidas e mantidas em péssimo estado.
“Essas
construções térreas não são monumentos nacionais, mas ainda assim merecem estar
ali e são extremamente charmosas”, diz Van Zeijl.
“Uma
vez eu estava admirando um desses prédios e uma pessoa me parou na rua para
perguntar porque eu estava olhando para aquele ‘lixo velho’. Esse é o grande
problema: se um prédio tem aparência de ‘lixo velho’ é assim que as pessoas vão
tratá-lo.”
Segundo
a pesquisadora, o órgão responsável pelas construções declaradas monumentos
nacionais na Nigéria é a Comissão Nacional de Museus e Monumentos, mas a
instituição não é transparente sobre quais prédios foram tombados e quais
esforços estão sendo empregados para sua conservação.
A
BBC News Brasil tentou contato com a comissão para esclarecimentos, mas não
obteve resposta. Em seu site, a instituição lista a Casa d'Água e o Ilojo Bar
como monumentos nacionais, mesmo este segundo tendo sido demolido.
Na
página o órgão define sua missão como “a sistemática preservação, estudo e
interpretação de evidências materiais (tangíveis e intangíveis) do
desenvolvimento dos povos da Nigéria e da diáspora nigeriana”.
Fonte:
BBC News Brasil
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