Faz
parte de uma certa leitura hegemônica da vida social moderna a ideia de que a
razão se realiza necessariamente na vida social por meio da consolidação de um
horizonte de diálogo.
Assim,
uma sociedade cujas instituições e práticas são racionais seria necessariamente
capaz de regular seus conflitos a partir da capacidade de exigir dos sujeitos a
explicitação de suas razões para agir e a avaliação de tais ações a partir da
procura do melhor argumento. Ou seja, a razão nos permitiria orientar nossas
ações a partir do consenso possível produzido pela procura do melhor argumento.
Uma
posição como esta, no entanto, só pode produzir niilismo e violência. Pode
parecer paradoxal afirmar que a organização dos conflitos a partir da
expectativa de diálogo produza necessariamente niilismo e violência, afinal
aprendemos que o diálogo é exatamente o inverso da violência, que ele é seu
melhor antídoto. Mas talvez devamos assumir que há uma violência implícita no
diálogo.
O
filósofo francês Jacques Derrida lembrava, com propriedade, que não há nada
mais violento do que dizer: "posso ouvir suas considerações, posso levar
em conta o que você tem a dizer, mas desde que você fale a minha língua".
Esta
"minha língua" não é exatamente a língua que falo agora, mas algo
mais determinante, a saber, o conjunto de valores, a gramática que organiza
minha sintaxe, a compreensão do que é um enunciado válido ou não.
Para
dialogar é necessário pressupor uma gramática comum. Mais do que isto. É
necessário pressupor que todos os conflitos e todas as posições conflitantes
farão sempre referência à mesma gramática comum.
No
entanto, talvez o problema esteja exatamente neste ponto. Pois e se boa parte
de nossos conflitos visassem exatamente mostrar que não há uma gramática comum
no interior da vida social? Que quando nos digladiamos a respeito do que
significa "liberdade", "justiça" não temos uma gramática
comum na qual nos apoiarmos, pois estamos ligados, pois somos legatários de
experiências históricas muito distintas?
Nossas
sociedades não são só momentaneamente antagônicas. Não estamos simplesmente
divididos e voltaremos a nos unir assim que as paixões se arrefecerem. Nossas
sociedades são estruturalmente antagônicas e a divisão é sua verdade. Pois
julgamos a partir da adesão a formas de vida e o que nos distingue são formas
diferente de vida. Não queremos as mesmas coisas, não temos as mesmas
histórias.
Neste
ponto, há os que dirão que esta é a maior prova de que precisamos de sociedades
baseadas no respeito a diferença. Sendo sociedades antagônicas, devemos
neutralizar os combates e construir uma forma de convivência entre as
diferenças.
Mas
o que fazer quando temos aqueles que defendem a tortura, que exaltam ditaduras
militares (e, por favor, que não venha pela enésima vez dizer: "mas, e
Cuba?".
Há
muitos de esquerda que não compactuam com regimes degenerados como o cubano) ou
que naturalizam a espoliação social das mulheres? Há de se respeitar esta
"diferença"? Mas você realmente acredita que podemos resolver tais
diferenças por meio do diálogo?
Neste
ponto, seria importante lembrar que nem todos os modos de circulação da linguagem
se resumem ao diálogo e à comunicação.
A
palavra que circula na experiência estética do poema, na experiência analítica
da clínica e mesmo nas conversões de toda ordem não argumenta nem comunica. Ela
instaura, ela mobiliza novos afetos e desativa antigos, ela reconstrói
identificações, em suma, ela persuade com uma persuasão que não se resume a
explicitação de argumentos, e isto vale também para os verdadeiros embates
políticos.
O
que nos falta não é diálogo, mas encontrar a palavra nesta sua força
instauradora.
Triste
é a sociedade que vê nesta persuasão a explosão da irracionalidade, pois ela
conhece apenas um conceito de razão baseado em dicotomias que remetem, ao fim,
a distinção metafísica entre o corpo e a alma. Um conceito pré-pascaliano de razão.
Pois há de se lembrar de Pascal, para quem: "o coração conhece razões que
a razão desconhece". A frase foi muito usada e gasta, mas a ideia era
precisa. Compreender circuitos de afetos não é calar a razão, mas ampliá-la.
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