Transportadora
ligada ao Grupo Zema é autuada por trabalho análogo à escravidão
Em
Araxá (MG), 22 trabalhadores foram encontrados em situação análoga à de escravo
prestando serviço no Centro de Distribuição e Apoio do Grupo Zema, pertencente
à família do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), em ação fiscal
realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em 4 de fevereiro deste
ano. A ação contou com a participação de seis auditores fiscais do trabalho,
dois procuradores do Ministério Público do Trabalho e seis policiais
rodoviários federais.
Os
trabalhadores eram motoristas da empresa Cidade das Águas Transportes,
contratados para levar móveis e eletrodomésticos às lojas do Grupo Zema,
gigante do setor moveleiro no estado.
A
inspeção foi realizada dentro do próprio Centro de Distribuição e Apoio do
Grupo Zema. Segundo o relatório de inspeção do Ministério Público do Trabalho
(MTE), a situação dos trabalhadores foi classificada como análoga a escravidão
pela existência de jornadas exaustivas, que chegavam a 19 horas diárias.
“Esses
dados foram analisados e são o fundamento para a caracterização da jornada
exaustiva, não havendo justificativa para a afirmação de que não foi informada
dos critérios utilizados pela equipe de fiscalização para a citada
caracterização ou de que não haveria elementos suficientes para tal”, destaca
trecho do relatório.
“Eles
[os motoristas] ficavam nessas jornadas exaustivas prestando serviço para o
Grupo Zema. O Grupo Zema, primeiro, tinha um serviço primarizado; depois de uns
dois ou três anos, resolveram encerrar essa atividade tocada por eles e
terceirizaram, passaram até os caminhões para essas empresas. Então eles têm
uma situação de amizade, favores, tanto com a Cidade das Águas como as outras
prestadoras que lá estão fazendo o serviço”, afirma Rogério Lopes Costa Reis,
auditor fiscal do trabalho responsável pela ação.
• O trajeto dos móveis
Os
dados que evidenciam as condições degradantes de trabalho foram consultados em
papeletas e roteiros de transporte disponíveis no próprio Centro de
Distribuição e Apoio do Grupo Zema. Eram relatórios de ponto e planilhas com as
anotações das jornadas dos motoristas.
Segundo
informações obtidas pela reportagem, toda a documentação dos empregados,
especialmente o controle de jornada, era responsabilidade da Cidade das Águas.
Mas era coordenação de transporte do Grupo Zema, segundo o relatório feito
pelos auditores-fiscais do trabalho, que estabelecia as rotas dos caminhões.
Com
base na distância e região de entrega dos produtos, os trajetos eram repassados
por e-mail para a empresa Cidade das Águas, que após análise, fazia ajustes
para evitar trechos de estrada de terra. Depois, a transportadora escalava os
motoristas de cada rota. As alterações feitas eram enviadas novamente para a
Coordenação do Grupo Zema.
Os
motoristas, segundo o relato dos auditores, só saíam do Centro de Distribuição
e Apoio do Grupo Zema após o funcionário da empresa de móveis assinar o
‘Controle da Viagem’. Os trabalhadores também recebiam o Conhecimento de
Transporte Eletrônico (CTe), documento digital obrigatório para o transporte de
cargas no Brasil.
Em cada
ponto de descarga de imóveis e eletrodomésticos, o gerente de cada loja do
grupo Zema anota o dia, a hora e o número do lacre do baú. Depois da entrega,
na volta para o CDA, o funcionário da cancela do grupo Zema registra a chegada
dos motoristas. É nesse momento que o ‘Controle da Viagem’ é retido.
De
acordo com o auditor Costa Reis, o Grupo Zema tinha acesso “indireto” aos
horários de trabalho dos motoristas. “O problema da jornada de trabalho são os
períodos de descanso, que eles não tinham. Ali [no sistema do grupo] tem só [o
registro da] saída e chegada, mas eles sabem quanto tempo o trabalhador parou
porque eles têm o acompanhamento de GPS em todos os automóveis”, explica.
Ele
revelou que a prestação de serviço terceirizado era exclusiva para a
Eletrozema, do Grupo Zema, que frequentemente impunha uma carga de trabalho
excessiva. “Eles usavam e abusavam [dos trabalhadores], porque a Eletrozema
falava: ‘Vocês têm que entregar, não quero nem saber’. Eles não querem nem
saber se o trabalhador vai dobrar de turno, ou se quem vai pegar [o turno] no
outro dia é o mesmo trabalhador… Eles não tinham essa preocupação.”
Com
base nos documentos e no relato dos trabalhadores, a auditoria-fiscal do
trabalho identificou as seguintes irregularidades nas jornadas dos motoristas:
• Ausência de 11 horas de descanso dentro
do período de 24 horas;
• Ausência do intervalo mínimo de uma hora
para refeição;
• Prorrogação da jornada diária de
trabalho do motorista profissional e/ou do ajudante empregado nas operações por
lapso de tempo superior a duas horas extraordinárias ou, mediante previsão em
convenção ou acordo coletivo, por mais de quatro horas extraordinárias.
• Ausência de escala de revezamento nos
serviços exigidos no domingo.
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Os relatos dos trabalhadores
O
relatório de fiscalização da inspeção do trabalho reúne relatos de cinco dos 22
motoristas submetidos a jornadas excessivas de trabalho. Em um dos depoimentos,
o motorista afirma aos auditores de trabalho que, com a liberação da empresa, a
jornada média era de 16 horas por dia, registradas no ponto. Em algumas
entregas, diz o trabalhador, chegava a trabalhar 26 horas diretas.
O mesmo
prestador de serviço relatou que almoçava na boleia do caminhão, e não era raro
ter que dormir no veículo. A jornada, geralmente, começava entre 3h e 4h, e era
encerrada às 20h. Pai de cinco filhos, o trabalhador diz que tinha um salário
base de R$ 2.664. E, com as horas extras, chegava a tirar até R$ 7.000. Segundo
o relato do trabalhador inserido no relatório de fiscalização, ele não tinha o
FGTS depositado desde agosto de 2024.
Um
segundo trabalhador diz trabalhar “na empresa Cidade das Águas, prestadora de
serviços do Grupo Zema, como motorista de carreta, há aproximadamente sete
anos”. Antes da atividade ser terceirizada, ele trabalhava na Eletrozema. O baú
da sua carreta, inclusive, pertence à antiga Eletrozema, segundo o relato. Já o
cavalo, ou seja, a parte da frente da carreta, é da Cidade das Águas.
O
motorista descreve que é preciso “dirigir muitas horas para conseguir atender a
demanda de entrega nas lojas”. Em uma das rotas, ele chega a dirigir de
terça-feira a sábado, indo e voltando do Centro de Distribuição do Grupo Zema,
fazendo pernoites de duas a três horas.
Outro
trabalhador diz sofrer de ansiedade e que não consegue ir ao médico em decorrência
do excesso de jornada. A média de sua jornada são 19 horas por dia, e as
paradas para o almoço são raras. Ele afirma que dorme no caminhão deitando os
bancos, sob uma tábua e um colchonete de 4 cm.
O
relato do motorista apresenta uma série de impactos das jornadas excessivas,
como a alimentação prejudicada, a falta de academia e atividades físicas; a
ausência no velório de tios e da avó; e a perda de dezenas de aniversários.
“Eles
ficavam às vezes 12 horas disponíveis para o empregador, trabalhavam nos
feriados, nas folgas, o dia inteiro. Era esse tipo de irregularidade”,
acrescentou Rogério Reis.
• Empresa nega violações
Em 6 de
fevereiro de 2025, a Cidade das Águas recebeu uma notificação para paralisar
imediatamente as atividades dos trabalhadores submetidos a jornadas extenuantes
e rescindir seus contratos.
A
empresa respondeu impetrando um Mandado de Segurança Preventivo na justiça,
alegando falta de apresentação formal dos motivos para a notificação por
trabalho escravo e outras ilegalidades.
No
mandado de segurança, a empresa afirmou ter recebido de “forma arbitrária a
notificação” e que não seria possível realizar as rescisões contratuais e o
pagamento integral das verbas rescisórias dos 22 trabalhadores até a data
sugerida pelo MTE, 11 de fevereiro.
O
pedido da empresa à justiça foi atendido por meio de uma decisão liminar, que
determinou que o MTE deveria se abster de rescindir os contratos de trabalho;
embargar e/ou interditar a operação da empresa; incluir a Impetrante na Lista
Suja do Trabalho Escravo; e veicular alguma notícia referente ao caso. Essas
determinações deveriam valer até que a empresa fosse formalmente notificada das
razões da autuação.
O
auditor fiscal do trabalho Rogério Reis afirmou que a Cidade das Águas “sonegou
informação para o juiz”, em audiência. “Falaram que não sabiam por que estavam
sendo caracterizados a trabalho análogo à escravidão, o que é mentira porque
tivemos uma reunião com a Cidade das Águas, com o gerente e o advogado do
empreendimento. Entregamos o papel e explicamos tudo o que está caracterizando,
o que consideramos das jornadas, o que está sendo ultrapassado.”
Para
esclarecer a situação, o MTE se reuniu com representantes do Ministério Público
Trabalho (MPT), da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Defensoria Pública da
União (DPU). “Depois dessa reunião, a AGU fez um parecer falando que a condição
resolutiva estava explícita e que já poderíamos dar prosseguimento aos atos
administrativos devidos pela notificação”, conta Costa Reis.
Neste
momento, como a liminar ainda não havia sido, de fato, revogada, a Cidade das
Águas acionou novamente a Justiça, com o pedido de uma liminar para que a
notificação não tivesse valor. “Então fizemos uma terceira notificação”, diz o
auditor.
Atuando
no setor há 13 anos, ele revela que foi a primeira vez que presenciou esse tipo
de resistência no campo judicial. “Esperamos que não vire moda porque isso
atrapalha os nossos procedimentos administrativos, além de significar um grande
prejuízo aos trabalhadores.”
A
liminar concedida no mandado de segurança perdeu a validade no dia 27 de março,
mais de um mês após os autos de infração terem sido lavrados pelo MTE. Dessa
forma, a rescisão dos contratos dos trabalhadores e o pagamento de verbas
rescisórias e demais obrigações estão programadas para ocorrer no dia 14 de
abril.
Sobre o
fato de o Grupo Zema não ter sido autuado diretamente, Rogério Reis explica: “O
auto de trabalho escravo é um pouco mais complicado porque as empresas podem
ser duplamente autuadas por irregularidades de segurança e saúde. No caso da
caracterização, nós respeitamos o vínculo empregatício com a empresa que está
prestando serviço.”
Conforme
o auditor, essa particularidade decorre da reforma trabalhista, que passou a
admitir a terceirização em qualquer situação: tanto para atividade fim, quanto
para atividade meio. “Só podemos descaracterizar uma terceirização quando é
feita com pessoa jurídica economicamente e financeiramente incapaz ou se não
atender alguns requisitos da própria lei alterada de terceirização, não é o
caso dessa situação.”
• Zema integra conselho do grupo familiar
e participa das decisões
O
governador de Minas Gerais, Romeu Zema (NOVO), é membro do conselho do Grupo
Zema. Em seu site institucional, o próprio governo de Minas destaca a
trajetória do governador à frente dos negócios da família. Ele assumiu o
comando das Lojas Zema em 1991 e foi responsável pela expansão da rede, que
saiu de quatro unidades em Minas Gerais para mais de 400 espalhadas por seis
estados.
Atualmente,
segundo a pequena biografia profissional publicada no portal da gestão
estadual, Zema segue participando das decisões do grupo empresarial. A
Eletrozema, citada na fiscalização trabalhista como tomadora dos serviços
terceirizados em que foram identificadas jornadas exaustivas, integra o
conglomerado.
• Outro lado
Em
resposta à reportagem, a transportadora Cidade das Águas declarou que “durante
todo o procedimento de fiscalização a empresa foi impedida de usufruir do seu
direito de contraditório e ampla defesa, sofrendo por consequência uma
interpretação arbitrária dos auditores e fora da realidade vivenciada pelos
funcionários”.
A
companhia afirma ser “fiel cumpridora das obrigações legais, notadamente
trabalhista, preservando integralmente todos os direitos individuais e
coletivos dos seus funcionários”. O posicionamento pode ser lido na íntegra ao
final desta matéria.
O
Brasil de Fato também enviou pedidos de posicionamento para o governador
de Minas Gerais e à Eletrozema, mas até
a publicação da reportagem não obteve resposta.
• Lista Suja
Nesta
semana, o MTE divulgou a atualização da “lista suja” do trabalho escravo, que
exibe os empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à
escravidão. O estado de Minas Gerais lidera o ranking no Brasil e é responsável
por 159 dos 745 nomes divulgados, equivalente a 21% do total.
Em
outubro de 2023, a Lei 24.535/2023, de autoria do deputado Luta Betão (PT) foi
sancionada, determinando a divulgação da “lista suja” de empregadores no site
oficial do governo de Minas Gerais. A bancada, no entanto, denuncia que até
hoje o governo Zema descumpre a medida.
Além do
não cumprimento da legislação, o Bloco Democracia e Luta da Assembleia
Legislatiba de Minas Gerais (ALMG), da qual Betão faz parte, denuncia que Zema
já fez apologia à escravidão contemporânea.
Em
fevereiro de 2022, Zema defendeu em
vídeo publicado nas redes sociais que empresas devem investir no Vale do Mucuri
e do Jequitinhonha porque são regiões tão pobres que se “você oferecer um
salário-mínimo ao trabalhador, haverá fila de pessoas para trabalhar para
você”.
O
governador afirmou ainda que nessas regiões de Minas Gerais se “contrata uma
empregada doméstica para ganhar 300 reais por mês”. O comentário foi visto,
pelos parlamentares, como uma apologia ao trabalho análogo ao de escravo.
>>>>
Íntegra do posicionamento da empresa Cidade das Águas
A
empresa Cidade das Águas, consultada pelo jornal Brasil de Fato sobre o
processo de fiscalização ocorrido em fevereiro pelo Ministério do Trabalho,
esclarece que a realidade dos funcionários da empresa não contempla o
entendimento subjetivo e arbitrário dos auditores do trabalho relacionado a
situação análoga à escravo.
Durante
todo o procedimento de fiscalização a empresa foi impedida de usufruir do seu
direito de contraditório e ampla defesa, sofrendo por consequência uma
interpretação arbitrária dos auditores e fora da realidade vivenciada pelos
funcionários.
A
Cidade das Águas reforça seu compromisso de fiel cumpridora das obrigações
legais, notadamente trabalhista, preservando integralmente todos os direitos
individuais e coletivos dos seus funcionários.
A
empresa vem adotando todas as medidas legais e administrativas para combater as
ilegalidades dos procedimentos de fiscalização e o próprio entendimento
distorcido da realidade.
Por
fim, a empresa rebate todas as alegações apresentadas pelos auditores do
trabalho, principalmente no Auto de Infração injustamente lavrado, sendo certo
que as condições de trabalho desenvolvidas são adequadas e em consonância com a
legislação que trata a matéria e normas coletivas aplicadas aos funcionários,
com a devida assistência do Sindicato dos Trabalhadores.
Fonte:
ICL Notícias
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