Jéssica
Santos: A guerra às drogas é uma guerra à periferia
Na
guerra às drogas que se supõe que as polícias travam há décadas milhares foram
mortos, outros milhares encarcerados. Mas qual foi o resultado? Há menos droga
circulando? Há menos armamento ilegal na mão de facções?
Ao
longo de todo esse tempo, os investimentos em policiamento ostensivo e
segurança pública só cresceram, sem que tivéssemos resultados visíveis:
continuamos inseguros, as facções ampliaram seus negócios e armas ilegais
circulam mais livremente por aí.
Uma
moradora da favela do Siri, em Florianópolis, disse uma das frases mais
assertivas que já li sobre o tema: “Só que isso não é pela droga, é para
exterminar. Aqui no Norte da ilha só tem uma entrada: como que a gente passa
sufoco na temporada [de verão] com o fluxo de carro, tudo trancado, um caos, e
eles não conseguem controlar a droga que entra?”. No território, há o medo e a
revolta: no último final de semana, a PM-SC fez a terceira execução em menos de
três anos. Natanael França de Assis tirava uma selfie para a namorada quando
foi morto por policiais. Como é de praxe, a alegação foi de confronto. A
polícia não fez nenhuma apreensão de drogas ou armas com o rapaz de 19 anos.
Em
Piracicaba, interior de SP, Gabriel Junior Oliveira Alves da Silva morreu ao
defender a esposa grávida de 8 meses de uma agressão policial. Não foi
encontrado nem arma nem drogas com ele. Na delegacia, os PMs alegaram que
abordaram Gabriel por ter um volume suspeito e que atiraram em legítima defesa
porque o jovem os teria ameaçado com… uma pedra ao ver um dos policiais puxando
o cabelo da esposa. Só que um laudo obtido em primeira mão pela Ponte provou
que o disparo foi por trás, perto da nuca.
Ambos
os casos aconteceram em bairros nos quais políticas públicas são raridades ou
mesmo nulidades. Afinal, temos estados, como São Paulo, que investem mais na
secretaria de segurança pública (R$ 20 bilhões, sendo R$ 12 bilhões para a PM)
do que em desenvolvimento econômico (R$ 376 milhões), cultura (R$ 1,4 bilhão),
esportes (R$ 419 mi), habitação (R$ 3 bi), agricultura (R$ 1 bi), turismo (R$
734 mi), políticas para mulher (R$ 36 mi) e para as pessoas com deficiência (R$
72 mi), meio ambiente e infraestrutura (R$ 10,9 bi). Todos esses valores
somados ficam abaixo do orçamento da SSP.
Os
números foram levantados pelo Instituto Direito à Memória e Justiça Racial
(IDMJR) no estudo Dossiê Orçamentário que avaliou as propostas orçamentárias
dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo.
Serão
R$ 42 bilhões somados desses três Estados destinados a uma guerra onde quem
está perdendo é a população preta e favelada deste país e quem ganha é o
tráfico e os políticos que assanham uma base política ao defender a morte como
prática de segurança pública.
É um
conflito em que o inimigo são corpos elimináveis, meros “CPFs” e não importa se
não tinham drogas, nem armas, nem ligação com o crime. Afinal, como tem muita
gente que pensa, se a polícia parou, abordou e matou é porque alguma coisa a
pessoa fez.
Qual é
a prioridade deste país? Investir em saúde, educação, habitação, qualidade de
vida ou meter polícias tresloucadas nas periferias, favelas, aldeias indígenas
e quilombos do Brasil? Os números falam melhor do que eu sobre qual é a
perspectiva dos nossos governos, independentemente do lado político. A lógica
adotada para segurança pública é a da guerra, uma que se “luta” há tanto tempo,
mas que o resultado é gente preta morta ou na cadeia.
• Linchamentos modernos: como o racismo
autoriza mortes públicas no Brasil
Yuri,
de 24 anos, é negro e mora em São Paulo. No final de março, quando estava
voltando para casa, foi abordado por pessoas que começaram a persegui-lo, uma
delas armada. Yuri, que é publicitário, achou que estava sendo assaltado — mas
era ele o suspeito de roubo. Ao ser alcançado, já na frete de seu prédio,
começou seu linchamento. “Tive certeza de que ia morrer”, contou ele depois. O
jovem recobrou a consciência quando policiais militares de uma base vizinha ao
seu condomínio surgiram no local. Só então entendeu o motivo de ter sido
agredido, ao ser apontado como suspeito de um furto.
Gabriel
é jovem negro de 26 anos de Açailândia (MA). Em setembro de 2021, ele
consertava seu carro em frente ao prédio onde morava quando um casal de brancos
vindos de deus-sabe-onde o agrediu, acusando-o de estar tentando furtar o
próprio veículo. Mesmo explicando isso, ele quase foi morto ao ser espancado e
asfixiado pelos agressores. Inclusive, o rapaz atendeu ao pedido dos
agressores, um empresário e uma dentista, para sair do carro enquanto era
acusado, fazendo-o com as mãos para cima, com a preocupação de deixar evidente
que não oferecia risco algum.
Igor
tem 31 anos, é jornalista e negro como eu. Em fevereiro, ele foi baleado na
madrugada de segunda (24/2), quando voltava para casa na garupa de um mototáxi
que pediu por um aplicativo, após fazer “bico” de garçom em um bar. No caminho,
o PM da reserva Carlos Alberto de Jesus, que procurava pelos suspeitos de um
suposto assalto contra sua esposa, Josilene da Silva Souza, emparelhou o carro
junto à moto e deu dois tiros no jornalista, derrubando ele e o condutor. Igor
passou horas escoltado no hospital, sem poder receber visita da família, como
suspeito de um crime que não cometeu.
Rafael
tem 32 anos, é negro e artista. Ele estava no Lollapalooza no último final de
semana quando seguranças do festival — todos brancos — o abordaram. A desculpa
é que ele era “parecido” com um suspeito de furto e, por isso, queriam
revistá-lo. “Eu disse que eles não poderiam fazer isso e eles disseram ou por
bem… a gente precisa abrir a sua bolsa”, relata. Com medo, o artista aceitou
ser revistado.
Pedro
Henrique tinha 20 anos, feirante, negro. Estava se preparando para mais um dia
de feira quando Natalia Teles o acusou de agressão dentro de uma boate. O
companheiro dela, o PM Fernando Ribeiro Baraún, atirou contra Pedro após um
suposto desentendimento com o feirante. Pedro não vai mais voltar para casa. O
caso aconteceu ontem (6/4) no Rio de Janeiro.
Todos
os casos acima têm algo em comum: o racismo e a violência pública, o castigo
público de corpos que são passíveis de castigo só por existirem. Eis novos
pelourinhos surgindo. Quatro somente nesses casos. Em três, as vítimas quase
morreram pelas mãos do justiçamento e do linchamento.
Parafraseando
o poeta Akins Kintê, parece Strange Fruit, parece Alabama, mas é só o Brasil
racista. Basta uma suspeita ser erguida que todas as etapas da justiça são
ignoradas. A punição vem em público, no estilo joga pedra na Geni. E mesmo
quando um dos algozes é um membro do sistema de justiça e segurança pública, um
policial aposentado, ele prefere executar a sentença a entregar o caso para
investigação e devido processo legal.
A veia
escravagista pulsa em nossa sociedade que já adora uma punição. A mesma
sociedade que, ao passar por uma abordagem com um jovem negro sendo revistado,
diz: “Se esse aí fosse direito, a PM não teria parado.” Aquela que goza com
corpos tombados, sangrando no chão para logo trocar de canal e elevar orações
para expiar seus pecados com algum telepastor. Sempre são os outros os ladrões,
os criminosos, os suspeitos, os meliantes. Aqueles outros com a pele preta,
aquele povo que essa gente adoraria eliminar e tem o feito constantemente há,
pelo menos, 400 anos.
Se
Yuri, Igor, Gabriel e Rafael fossem brancos, ah… aí a coisa mudava de figura. A
imprensa hegemônica elevaria e discutiria o caso incansavelmente por semanas.
Apresentadores vespertinos estariam espumando pela boca, condenando o
linchamento. Porque o corpo branco não é socialmente feito para ser linchado…
ah, não mesmo. A violência ao corpo branco de classe média merece atenção.
Corpos e corpos tombados constantemente são todos bandidos.
Li um
comentário em uma reportagem que publicamos sobre as 77 crianças e adolescentes
mortos pela PM no Estado de São Paulo. Dizia, basicamente que, se esses 77
guris não tivessem feito nada, estariam vivos (esta e outras pérolas você
confere nos comentários do nosso Instagram. Essa gente é bem engajada). Penso
em Ryan, de 4 anos, Ágatha, de 8, João Pedro e Marcos Vinícius, ambos com 14.
Na lógica mesquinha dessa gente, eles fizeram algo, são culpados de sua própria
morte.
Ou,
talvez, já esteja assumido quase publicamente a política adotada por um certo
professor Caveira de um curso preparatório de concursos públicos, história que
demos aqui na Ponte: “Por isso quando eu entrava chacinando eu matava todo
mundo: mãe, filho, bebê, foda-se! Eu já elimino o mal na fonte.”
• PM intimida com fuzil e exige celular de
advogado que atua no caso Gabriel, morto por policial
O
advogado Gustavo Pires e um estagiário de seu escritório, Brunno Barbosa, foram
vítimas de uma abordagem truculenta da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP) na
noite do dia 10/4 em Piracicaba (SP). Os policiais insistiram para que os dois
entregassem seus celulares e chegaram a intimidá-los com um fuzil. Ambos atuam
no caso de Gabriel Junior Oliveira Alves da Silva — jovem de 22 anos morto por
policiais na terça da semana passada (1/4) ao tentar defender a esposa grávida
de agressões da PM.
Gustavo
é presidente da Comissão de Direitos Humanos da subseção de Piracicaba da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB-SP), enquanto Brunno é estudante de Direito e
integrante de um comitê de direitos humanos na cidade. Em razão dos cargos que
ocupam, eles têm prestado apoio à família de Gabriel e a outras testemunhas do
episódio. Na quinta à tarde, os dois acompanharam três depoimentos e se
reuniram com o Ministério Público estadual (MP-SP) para tratar do caso.
Já à
noite, eles se deslocaram ao bairro Vila Sônia, onde Gabriel vivia e foi morto,
para conversar com novos moradores. Na ocasião, havia intensa circulação de
policiais no local — conforme a Ponte já havia mostrado. Desde a morte do
jovem, a PM tem tido maior presença no bairro, no que a vizinhança vê como uma
tentativa de intimidação.
Quando
o advogado e seu assessor saíram de lá com um carro, por volta das 19h20, duas
viaturas antes posicionadas na entrada da comunidade passaram a segui-los. Eles
foram então interceptados na Rua Cupuaçu — a essa altura, desconfiados da
movimentação policial, Brunno já filmava as viaturas, e Gustavo falava por
chamada de vídeo com uma colega da Comissão de Direitos Humanos.
<><>
Policiais questionaram o que advogado “queria” com caso
Eram
quatro policiais, sendo três homens e uma mulher. De início, ordenaram que
Gustavo e Brunno descessem do carro, o que eles acataram. Também aos gritos,
determinaram que o advogado encerrasse a ligação e, por várias vezes, exigiram
que entregasse o celular. Ele se negou a ceder o aparelho. Antes mesmo dos
abordados se identificarem, os agentes já passaram a aludir ao caso de Gabriel.
“Nunca
vi advogado querer tanto saber de um caso”, teria dito um dos policiais. Um
outro agente, que parecia alterado e chegava a se aproximar do advogado com um
fuzil, também tentava intimidá-lo aos gritos: “O que mais você quer com esse
caso?”. “Eles falaram também para a gente tomar cuidado com o onde estávamos
andando, que era um local perigoso dependendo do horário”, diz Brunno.
Gustavo
solicitou que pudesse acionar um integrante da Comissão de Direitos e
Prerrogativas da OAB local — direito previsto aos advogados para que não tenham
garantias violadas, mas teve o pedido negado pelos policiais. Eles revistaram
itens pessoais da dupla, como notebook, mochila e roupas, e questionaram sobre
o motivo de estarem com um carro registrado em nome de uma empresa.
O
veículo pertence a uma locadora de veículos de atuação nacional — por segurança
pessoal, o advogado opta por utilizar carros alugados, que consegue trocar a
cada semana. Alertados pelos gritos dos policiais, moradores do entorno
passaram a se aglomerar na rua e a fazer imagens da abordagem. Foi o que
amenizou a tensão, conta presidente da Comissão de Direitos Humanos de
Piracicaba. “Se não houvessem populares no local, ou teriam forjado coisas no
nosso carro, ou talvez a gente estivesse hoje desaparecido, morto”, afirma o
advogado.
<><>
Advogado vai prestar queixa à PM
Gustavo
e Brunno foram a uma delegacia em Piracicaba ao final da abordagem para relatar
o ocorrido. A investigação sobre a conduta dos policiais compete, no entanto, à
PM. Em razão disso, o comando dos militares compareceu à sede da Polícia Civil
para registrar o relato do advogado e seu assistente.
As duas
vítimas do episódio terão de voltar a prestar queixa nesta sexta (11/4), mas
desta vez em um batalhão da Polícia Militar. Eles vão estar acompanhados de
outros representantes da OAB local.
A Ponte
questionou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) sobre o
ocorrido e se pretende afastar os policiais que intimidaram Gustavo e Brunno.
Em resposta, a pasta reenviou uma nota já cedida anteriormente, citando ter
afastado os dois policiais da ocorrência em que Gabriel foi morto. A reportagem
contestou que o posicionamento não contemplava a abordagem ao advogado e pediu
uma nova manifestação. Ainda não houve um segundo retorno da SSP-SP.
Também
em contato com a Ponte, a seção paulista da OAB prestou solidariedade a Gustavo
e comunicou acompanhar o caso. “O presidente da Ordem paulista, Leonardo Sica,
já entrou em contato com a Corregedoria da Polícia Militar do Estado de São
Paulo para pedir providências”, escreveu.
<><>
Vítima foi morta com tiro por trás
A
vítima do caso no qual o advogado Gustavo Pires atua foi morta por um policial
com um tiro por trás, conforme revelou a Ponte. O disparo entrou entre a nuca e
a orelha direita e saiu um pouco mais acima, também por trás da cabeça. A
informação consta em um laudo médico.
Na
ocasião em que foi morto pela PM, Gabriel e a esposa — Rebeca Alves Braga,
grávida de quase oito meses — voltavam para casa após terem ido a um comércio
comprar refrigerante, na vizinhança de onde moram, por volta das 19h30. O jovem
caminhava um pouco à frente na Rua Cosmorama, próximo à esquina com a Rua Raul
Ataíde, no bairro Vila Sônia, quando foi abordado por dois policiais que
chegaram ao local a bordo de uma viatura — a mulher de Gabriel ainda tentava
alcançar o marido também a pé, após ter parado brevemente para comprar milho
cozido com um ambulante na rua.
Além do
jovem, os policiais abordaram um outro rapaz que passava pelo local, alheio ao
casal. Os dois homens foram colocados de frente para um muro e revistados, sob
a alegação de que teriam um “volume suspeito”. Não foi apreendida arma de fogo
ou qualquer item ilícito com a vítima.
Em dado
momento, o policial Júnior César Rodrigues passou a agredir Gabriel. A esposa
dele, já mais perto da cena, repreendeu o agente e afirmou que aquilo não era
necessário. O segundo PM da ocorrência, Leonardo Machado Prudêncio, que até ali
cercava o outro homem abordado, veio então em direção a Rebeca e passou a
também agredi-la, com empurrões e puxões nos cabelos. Foi quando Gabriel tentou
interceder pela esposa e acabou baleado.
Rebeca
diz que o socorro demorou cerca de 40 minutos e só veio por insistência dos
vizinhos que presenciaram a cena — eles chegaram a filmar em parte a
ocorrência. Já os policiais tiveram reforço em cinco minutos e isolaram o local
para que ninguém se aproximasse de Gabriel. Ela afirma ainda ter sido mantida
dentro do camburão da viatura enquanto o marido agonizava. Leonardo, um dos
policiais, teria debochado da situação, dizendo que o jovem morto seria “lixo”.
A vítima chegou a ser levada ao Hospital dos Fornecedores de Cana, mas não
resistiu.
Os PMs
alegaram que teriam agido em legítima defesa. Segundo eles, Gabriel teria pego
uma pedra para atacá-los durante a abordagem, o que Rebeca nega. Em contato
anterior com a Ponte, a SSP-SP disse que o caso é investigado e que não
compactua com “desvios de conduta ou excessos”.
<><>
Leia a íntegra do que diz a OAB-SP
A Ordem
dos Advogados do Brasil Seção São Paulo (OAB SP) expressa sua total
solidariedade ao Dr. Gustavo Henrique Pires, presidente da Comissão de Direitos
Humanos da OAB Piracicaba, pelos fatos ocorridos na data de ontem (10) naquela
cidade.
Como
medida frente ao caso, o presidente da Ordem paulista, Leonardo Sica, já entrou
em contato com a Corregedoria da Polícia Militar do Estado de São Paulo para
pedir providências e acompanhamento do caso.
A OAB
SP se coloca à inteira disposição do advogado, especialmente para assegurar o
respeito aos seus direitos e prerrogativas no exercício da profissão.
Reafirmamos nosso compromisso inabalável com a ética, dedicando-nos
incansavelmente à defesa e proteção dos direitos de todos os advogados e
advogadas.
Fonte:
Ponte Jornalismo
Nenhum comentário:
Postar um comentário