segunda-feira, 14 de abril de 2025

Jéssica Santos: A guerra às drogas é uma guerra à periferia

Na guerra às drogas que se supõe que as polícias travam há décadas milhares foram mortos, outros milhares encarcerados. Mas qual foi o resultado? Há menos droga circulando? Há menos armamento ilegal na mão de facções?

Ao longo de todo esse tempo, os investimentos em policiamento ostensivo e segurança pública só cresceram, sem que tivéssemos resultados visíveis: continuamos inseguros, as facções ampliaram seus negócios e armas ilegais circulam mais livremente por aí.

Uma moradora da favela do Siri, em Florianópolis, disse uma das frases mais assertivas que já li sobre o tema: “Só que isso não é pela droga, é para exterminar. Aqui no Norte da ilha só tem uma entrada: como que a gente passa sufoco na temporada [de verão] com o fluxo de carro, tudo trancado, um caos, e eles não conseguem controlar a droga que entra?”. No território, há o medo e a revolta: no último final de semana, a PM-SC fez a terceira execução em menos de três anos. Natanael França de Assis tirava uma selfie para a namorada quando foi morto por policiais. Como é de praxe, a alegação foi de confronto. A polícia não fez nenhuma apreensão de drogas ou armas com o rapaz de 19 anos.

Em Piracicaba, interior de SP, Gabriel Junior Oliveira Alves da Silva morreu ao defender a esposa grávida de 8 meses de uma agressão policial. Não foi encontrado nem arma nem drogas com ele. Na delegacia, os PMs alegaram que abordaram Gabriel por ter um volume suspeito e que atiraram em legítima defesa porque o jovem os teria ameaçado com… uma pedra ao ver um dos policiais puxando o cabelo da esposa. Só que um laudo obtido em primeira mão pela Ponte provou que o disparo foi por trás, perto da nuca.

Ambos os casos aconteceram em bairros nos quais políticas públicas são raridades ou mesmo nulidades. Afinal, temos estados, como São Paulo, que investem mais na secretaria de segurança pública (R$ 20 bilhões, sendo R$ 12 bilhões para a PM) do que em desenvolvimento econômico (R$ 376 milhões), cultura (R$ 1,4 bilhão), esportes (R$ 419 mi), habitação (R$ 3 bi), agricultura (R$ 1 bi), turismo (R$ 734 mi), políticas para mulher (R$ 36 mi) e para as pessoas com deficiência (R$ 72 mi), meio ambiente e infraestrutura (R$ 10,9 bi). Todos esses valores somados ficam abaixo do orçamento da SSP.

Os números foram levantados pelo Instituto Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR) no estudo Dossiê Orçamentário que avaliou as propostas orçamentárias dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo.

Serão R$ 42 bilhões somados desses três Estados destinados a uma guerra onde quem está perdendo é a população preta e favelada deste país e quem ganha é o tráfico e os políticos que assanham uma base política ao defender a morte como prática de segurança pública.

É um conflito em que o inimigo são corpos elimináveis, meros “CPFs” e não importa se não tinham drogas, nem armas, nem ligação com o crime. Afinal, como tem muita gente que pensa, se a polícia parou, abordou e matou é porque alguma coisa a pessoa fez.

Qual é a prioridade deste país? Investir em saúde, educação, habitação, qualidade de vida ou meter polícias tresloucadas nas periferias, favelas, aldeias indígenas e quilombos do Brasil? Os números falam melhor do que eu sobre qual é a perspectiva dos nossos governos, independentemente do lado político. A lógica adotada para segurança pública é a da guerra, uma que se “luta” há tanto tempo, mas que o resultado é gente preta morta ou na cadeia.

•        Linchamentos modernos: como o racismo autoriza mortes públicas no Brasil

Yuri, de 24 anos, é negro e mora em São Paulo. No final de março, quando estava voltando para casa, foi abordado por pessoas que começaram a persegui-lo, uma delas armada. Yuri, que é publicitário, achou que estava sendo assaltado — mas era ele o suspeito de roubo. Ao ser alcançado, já na frete de seu prédio, começou seu linchamento. “Tive certeza de que ia morrer”, contou ele depois. O jovem recobrou a consciência quando policiais militares de uma base vizinha ao seu condomínio surgiram no local. Só então entendeu o motivo de ter sido agredido, ao ser apontado como suspeito de um furto.

Gabriel é jovem negro de 26 anos de Açailândia (MA). Em setembro de 2021, ele consertava seu carro em frente ao prédio onde morava quando um casal de brancos vindos de deus-sabe-onde o agrediu, acusando-o de estar tentando furtar o próprio veículo. Mesmo explicando isso, ele quase foi morto ao ser espancado e asfixiado pelos agressores. Inclusive, o rapaz atendeu ao pedido dos agressores, um empresário e uma dentista, para sair do carro enquanto era acusado, fazendo-o com as mãos para cima, com a preocupação de deixar evidente que não oferecia risco algum.

Igor tem 31 anos, é jornalista e negro como eu. Em fevereiro, ele foi baleado na madrugada de segunda (24/2), quando voltava para casa na garupa de um mototáxi que pediu por um aplicativo, após fazer “bico” de garçom em um bar. No caminho, o PM da reserva Carlos Alberto de Jesus, que procurava pelos suspeitos de um suposto assalto contra sua esposa, Josilene da Silva Souza, emparelhou o carro junto à moto e deu dois tiros no jornalista, derrubando ele e o condutor. Igor passou horas escoltado no hospital, sem poder receber visita da família, como suspeito de um crime que não cometeu.

Rafael tem 32 anos, é negro e artista. Ele estava no Lollapalooza no último final de semana quando seguranças do festival — todos brancos — o abordaram. A desculpa é que ele era “parecido” com um suspeito de furto e, por isso, queriam revistá-lo. “Eu disse que eles não poderiam fazer isso e eles disseram ou por bem… a gente precisa abrir a sua bolsa”, relata. Com medo, o artista aceitou ser revistado.

Pedro Henrique tinha 20 anos, feirante, negro. Estava se preparando para mais um dia de feira quando Natalia Teles o acusou de agressão dentro de uma boate. O companheiro dela, o PM Fernando Ribeiro Baraún, atirou contra Pedro após um suposto desentendimento com o feirante. Pedro não vai mais voltar para casa. O caso aconteceu ontem (6/4) no Rio de Janeiro.

Todos os casos acima têm algo em comum: o racismo e a violência pública, o castigo público de corpos que são passíveis de castigo só por existirem. Eis novos pelourinhos surgindo. Quatro somente nesses casos. Em três, as vítimas quase morreram pelas mãos do justiçamento e do linchamento.

Parafraseando o poeta Akins Kintê, parece Strange Fruit, parece Alabama, mas é só o Brasil racista. Basta uma suspeita ser erguida que todas as etapas da justiça são ignoradas. A punição vem em público, no estilo joga pedra na Geni. E mesmo quando um dos algozes é um membro do sistema de justiça e segurança pública, um policial aposentado, ele prefere executar a sentença a entregar o caso para investigação e devido processo legal.

A veia escravagista pulsa em nossa sociedade que já adora uma punição. A mesma sociedade que, ao passar por uma abordagem com um jovem negro sendo revistado, diz: “Se esse aí fosse direito, a PM não teria parado.” Aquela que goza com corpos tombados, sangrando no chão para logo trocar de canal e elevar orações para expiar seus pecados com algum telepastor. Sempre são os outros os ladrões, os criminosos, os suspeitos, os meliantes. Aqueles outros com a pele preta, aquele povo que essa gente adoraria eliminar e tem o feito constantemente há, pelo menos, 400 anos.

Se Yuri, Igor, Gabriel e Rafael fossem brancos, ah… aí a coisa mudava de figura. A imprensa hegemônica elevaria e discutiria o caso incansavelmente por semanas. Apresentadores vespertinos estariam espumando pela boca, condenando o linchamento. Porque o corpo branco não é socialmente feito para ser linchado… ah, não mesmo. A violência ao corpo branco de classe média merece atenção. Corpos e corpos tombados constantemente são todos bandidos.

Li um comentário em uma reportagem que publicamos sobre as 77 crianças e adolescentes mortos pela PM no Estado de São Paulo. Dizia, basicamente que, se esses 77 guris não tivessem feito nada, estariam vivos (esta e outras pérolas você confere nos comentários do nosso Instagram. Essa gente é bem engajada). Penso em Ryan, de 4 anos, Ágatha, de 8, João Pedro e Marcos Vinícius, ambos com 14. Na lógica mesquinha dessa gente, eles fizeram algo, são culpados de sua própria morte.

Ou, talvez, já esteja assumido quase publicamente a política adotada por um certo professor Caveira de um curso preparatório de concursos públicos, história que demos aqui na Ponte: “Por isso quando eu entrava chacinando eu matava todo mundo: mãe, filho, bebê, foda-se! Eu já elimino o mal na fonte.”

•        PM intimida com fuzil e exige celular de advogado que atua no caso Gabriel, morto por policial

O advogado Gustavo Pires e um estagiário de seu escritório, Brunno Barbosa, foram vítimas de uma abordagem truculenta da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP) na noite do dia 10/4 em Piracicaba (SP). Os policiais insistiram para que os dois entregassem seus celulares e chegaram a intimidá-los com um fuzil. Ambos atuam no caso de Gabriel Junior Oliveira Alves da Silva — jovem de 22 anos morto por policiais na terça da semana passada (1/4) ao tentar defender a esposa grávida de agressões da PM.

Gustavo é presidente da Comissão de Direitos Humanos da subseção de Piracicaba da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), enquanto Brunno é estudante de Direito e integrante de um comitê de direitos humanos na cidade. Em razão dos cargos que ocupam, eles têm prestado apoio à família de Gabriel e a outras testemunhas do episódio. Na quinta à tarde, os dois acompanharam três depoimentos e se reuniram com o Ministério Público estadual (MP-SP) para tratar do caso.

Já à noite, eles se deslocaram ao bairro Vila Sônia, onde Gabriel vivia e foi morto, para conversar com novos moradores. Na ocasião, havia intensa circulação de policiais no local — conforme a Ponte já havia mostrado. Desde a morte do jovem, a PM tem tido maior presença no bairro, no que a vizinhança vê como uma tentativa de intimidação.

Quando o advogado e seu assessor saíram de lá com um carro, por volta das 19h20, duas viaturas antes posicionadas na entrada da comunidade passaram a segui-los. Eles foram então interceptados na Rua Cupuaçu — a essa altura, desconfiados da movimentação policial, Brunno já filmava as viaturas, e Gustavo falava por chamada de vídeo com uma colega da Comissão de Direitos Humanos.

<><> Policiais questionaram o que advogado “queria” com caso

Eram quatro policiais, sendo três homens e uma mulher. De início, ordenaram que Gustavo e Brunno descessem do carro, o que eles acataram. Também aos gritos, determinaram que o advogado encerrasse a ligação e, por várias vezes, exigiram que entregasse o celular. Ele se negou a ceder o aparelho. Antes mesmo dos abordados se identificarem, os agentes já passaram a aludir ao caso de Gabriel.

“Nunca vi advogado querer tanto saber de um caso”, teria dito um dos policiais. Um outro agente, que parecia alterado e chegava a se aproximar do advogado com um fuzil, também tentava intimidá-lo aos gritos: “O que mais você quer com esse caso?”. “Eles falaram também para a gente tomar cuidado com o onde estávamos andando, que era um local perigoso dependendo do horário”, diz Brunno.

Gustavo solicitou que pudesse acionar um integrante da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB local — direito previsto aos advogados para que não tenham garantias violadas, mas teve o pedido negado pelos policiais. Eles revistaram itens pessoais da dupla, como notebook, mochila e roupas, e questionaram sobre o motivo de estarem com um carro registrado em nome de uma empresa.

O veículo pertence a uma locadora de veículos de atuação nacional — por segurança pessoal, o advogado opta por utilizar carros alugados, que consegue trocar a cada semana. Alertados pelos gritos dos policiais, moradores do entorno passaram a se aglomerar na rua e a fazer imagens da abordagem. Foi o que amenizou a tensão, conta presidente da Comissão de Direitos Humanos de Piracicaba. “Se não houvessem populares no local, ou teriam forjado coisas no nosso carro, ou talvez a gente estivesse hoje desaparecido, morto”, afirma o advogado.

<><> Advogado vai prestar queixa à PM

Gustavo e Brunno foram a uma delegacia em Piracicaba ao final da abordagem para relatar o ocorrido. A investigação sobre a conduta dos policiais compete, no entanto, à PM. Em razão disso, o comando dos militares compareceu à sede da Polícia Civil para registrar o relato do advogado e seu assistente.

As duas vítimas do episódio terão de voltar a prestar queixa nesta sexta (11/4), mas desta vez em um batalhão da Polícia Militar. Eles vão estar acompanhados de outros representantes da OAB local.

A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) sobre o ocorrido e se pretende afastar os policiais que intimidaram Gustavo e Brunno. Em resposta, a pasta reenviou uma nota já cedida anteriormente, citando ter afastado os dois policiais da ocorrência em que Gabriel foi morto. A reportagem contestou que o posicionamento não contemplava a abordagem ao advogado e pediu uma nova manifestação. Ainda não houve um segundo retorno da SSP-SP.

Também em contato com a Ponte, a seção paulista da OAB prestou solidariedade a Gustavo e comunicou acompanhar o caso. “O presidente da Ordem paulista, Leonardo Sica, já entrou em contato com a Corregedoria da Polícia Militar do Estado de São Paulo para pedir providências”, escreveu.

<><> Vítima foi morta com tiro por trás

A vítima do caso no qual o advogado Gustavo Pires atua foi morta por um policial com um tiro por trás, conforme revelou a Ponte. O disparo entrou entre a nuca e a orelha direita e saiu um pouco mais acima, também por trás da cabeça. A informação consta em um laudo médico.

Na ocasião em que foi morto pela PM, Gabriel e a esposa — Rebeca Alves Braga, grávida de quase oito meses — voltavam para casa após terem ido a um comércio comprar refrigerante, na vizinhança de onde moram, por volta das 19h30. O jovem caminhava um pouco à frente na Rua Cosmorama, próximo à esquina com a Rua Raul Ataíde, no bairro Vila Sônia, quando foi abordado por dois policiais que chegaram ao local a bordo de uma viatura — a mulher de Gabriel ainda tentava alcançar o marido também a pé, após ter parado brevemente para comprar milho cozido com um ambulante na rua.

Além do jovem, os policiais abordaram um outro rapaz que passava pelo local, alheio ao casal. Os dois homens foram colocados de frente para um muro e revistados, sob a alegação de que teriam um “volume suspeito”. Não foi apreendida arma de fogo ou qualquer item ilícito com a vítima.

Em dado momento, o policial Júnior César Rodrigues passou a agredir Gabriel. A esposa dele, já mais perto da cena, repreendeu o agente e afirmou que aquilo não era necessário. O segundo PM da ocorrência, Leonardo Machado Prudêncio, que até ali cercava o outro homem abordado, veio então em direção a Rebeca e passou a também agredi-la, com empurrões e puxões nos cabelos. Foi quando Gabriel tentou interceder pela esposa e acabou baleado.

Rebeca diz que o socorro demorou cerca de 40 minutos e só veio por insistência dos vizinhos que presenciaram a cena — eles chegaram a filmar em parte a ocorrência. Já os policiais tiveram reforço em cinco minutos e isolaram o local para que ninguém se aproximasse de Gabriel. Ela afirma ainda ter sido mantida dentro do camburão da viatura enquanto o marido agonizava. Leonardo, um dos policiais, teria debochado da situação, dizendo que o jovem morto seria “lixo”. A vítima chegou a ser levada ao Hospital dos Fornecedores de Cana, mas não resistiu.

Os PMs alegaram que teriam agido em legítima defesa. Segundo eles, Gabriel teria pego uma pedra para atacá-los durante a abordagem, o que Rebeca nega. Em contato anterior com a Ponte, a SSP-SP disse que o caso é investigado e que não compactua com “desvios de conduta ou excessos”.

<><> Leia a íntegra do que diz a OAB-SP

A Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo (OAB SP) expressa sua total solidariedade ao Dr. Gustavo Henrique Pires, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB Piracicaba, pelos fatos ocorridos na data de ontem (10) naquela cidade.

Como medida frente ao caso, o presidente da Ordem paulista, Leonardo Sica, já entrou em contato com a Corregedoria da Polícia Militar do Estado de São Paulo para pedir providências e acompanhamento do caso.

A OAB SP se coloca à inteira disposição do advogado, especialmente para assegurar o respeito aos seus direitos e prerrogativas no exercício da profissão. Reafirmamos nosso compromisso inabalável com a ética, dedicando-nos incansavelmente à defesa e proteção dos direitos de todos os advogados e advogadas.

 

Fonte: Ponte Jornalismo

 

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