Os riscos da privatização do saneamento
básico no Brasil
Pesquisador
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais, Leo Heller ocupou até
dezembro de 2020 o cargo de relator das Nações Unidas para Água e Saneamento.
Profundo conhecedor dos processos e sistemas de saneamento do Brasil, Heller
faz coro com outros
especialistas contra
a onda de concessão das empresas públicas de saneamento para a iniciativa
privada.
Em
conversa com a Marco Zero, Heller criticou a atuação do BNDES e defendeu que os
investimentos para o setor sejam feitos nas empresas públicas. “Não quero
tampar o sol com a peneira, dizer que sempre a gestão pública é boa, que não
tem falhas. Mas eu acho que o risco da privatização é maior do que o risco de
investirmos e apostarmos na melhoria da gestão pública”, disse o pesquisador,
que também é coordenador de articulação internacional do Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas).
LEIA A ENTREVISTA:
- O
Brasil está vivendo uma onda de concessões à iniciativa privada de de
empresas públicas de saneamento e água. Como o senhor vê esse movimento?
Leo Heller – A concessão é uma das formas de privatização, porque você
transfere da gestão pública para a gestão privada toda a operação e a
arrecadação das tarifas. É como se o Estado estivesse abrindo mão de prestar o
serviço por um prazo determinado e agora estão fazendo concessões de 35 anos,
um prazo bastante longo. A concessão é a forma que está prevalecendo no Brasil,
mas também há vendas, como aconteceu com a Sabesp, de São Paulo.
A privatização da água e do esgoto tem sido
objeto de muita crítica por várias razões. Não só no Brasil, mas em várias
partes do mundo, muitos acadêmicos, têm discutido os riscos da privatização,
por exemplo, para cumprir com a obrigação dos direitos humanos à água e ao
saneamento. São várias as razões das críticas. Uma delas é o fato de que água e
saneamento são monopólios. Significa que você não tem mais de um prestador de
serviços, a população não tem opção de escolher um ou outro, como ocorre na telefonia
móvel, por exemplo. Então a empresa acaba impondo muito os seus interesses
econômicos.
Outra coisa que preocupa é a assimetria de
poder. As empresas, os concessionários em geral, são muito poderosas, são muito
grandes, são transnacionais. Para você ter uma ideia, estamos fazendo um
levantamento das concessões no Brasil e tem cinco empresas que controlam algo
como 85% da população atendida por empresas privadas.
São empresas que têm ações em bolsas
internacionais, com fundos de pensão e fundos de investimento como acionistas.
São muito estruturadas nesse sentido de defender seus interesses, com um bom
corpo jurídico e ótimos economistas para fazer simulação econômica. Muitas
vezes uma empresa com essas características, quando vai dialogar com o regulador
ou com o titular do serviço, tem muito mais argumento e muito mais capacidade
de pressão, para aumentar a tarifa, para justificar a falta de algum
investimento. Além do fato de poder haver cartel, acordos nas licitações,
corrupção. São fatos que não são invenção, já ocorreram em outros países.
- Nos
leilões que estão sendo feitos para as licitações estão ganhando as
empresas que oferecem maior valor da outorga e não quem oferece a tarifa
mais baixa. Isso é problemático?
É, esse é outro elemento de crítica. Na minha
opinião, é um grande equívoco que o modelo seja esse, porque esse recurso vai
pro Governo do Estado e, às vezes o governo do estadual compartilha com os
municípios, é um recurso que não é reinvestido em saneamento.
E quem vai pagar esse valor da outurga? Não é
a empresa que paga esse valor de outorga. Ela paga no primeiro momento, na hora
de quitar com as obrigações da licitação. Mas ela vai ter que recuperar isso, e
ela só tem uma maneira de recuperar, que é pela tarifa cobrada aos usuários.
Então, somos nós, usuários, que estamos
pagando a outorga sem que ela se reverta em melhorias do atendimento
populacional.
- Como
é que o senhor analisa o papel do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES), que é quem está dando suporte aos estados e
municípios para essas concessões à iniciativa privada?
Veja, o BNDES é um banco público e está
cumprindo um papel muito pernicioso na área de saneamento. Ele tem sido um
grande incentivador da privatização. É mais que um incentivador, aliás, ele tem
dado o apoio aos governos estaduais para preparar a documentação da licitação.
E prepara mal os planos, as modelagens – vide os erros na concessão de Sergipe,
por exemplo. Muitas vezes temos aquela ideia do BNDES ser um centro de
excelência, que faz tudo muito bem feito, mas não faz e acaba dando uma
legitimidade ao processo. Fica muito mais difícil você questionar um processo
tendo um banco com o prestígio do BNDES na retaguarda desse processo.
O BNDES deveria estar cumprindo um papel
diferente por ser um banco público: deveria estar preocupado não com a
privatização, mas com a universalização do acesso. Ele poderia estar investindo
os bilhões no fortalecimento da gestão pública e não na transferência para a
empresa privada.
Em governos anteriores, como o de Fernando
Henrique Cardoso e o de Bolsonaro, o BNDES vem cumprindo esse papel. Mas é
muito surpreendente que isso aconteça no governo Lula, que é um governo que tem
um certo discurso de fortalecer a gestão pública e o próprio Lula, na campanha,
falou que água e saneamento não se transfere, não se privatiza, que é um
direito da população. Mas parece que o BNDES acaba tendo uma certa autonomia e
faz uma política numa direção contrária, aparentemente, à intenção mais central
do Governo Federal.
- Todos
os governos, quando começam essas concessões, dizem que a justificativa é
que precisa da iniciativa privada para universalizar o serviço de água e
saneamento. O Brasil realmente não consegue atingir a universalização sem
as concessões e vendas?
Olha, os estudos internacionais mostram que,
quando se privatiza, as empresas investem muito pouco com recursos próprios.
Quando elas investem, elas investem com recursos das tarifas pagas pelos
usuários. Ou de empréstimos dos bancos públicos, muitas vezes empréstimos subsidiados.
Então, o BNDES tem também cumprido esse papel de financiar as empresas privadas
com juros baixos, o que me parece uma distorção.
A narrativa de que precisamos das empresas
privadas para trazer dinheiro novo para o saneamento é uma narrativa falaciosa.
O dinheiro novo em geral não vem. Então a grande pergunta é por que a empresa
privada? Por que não a empresa pública? Se o dinheiro investido é de tarifa, se
os financiamentos são públicos? Por que o BNDES não financia as empresas
públicas? Eu sou muito mais em apostar no aperfeiçoamento da prestação pública,
sem desconhecer também que tem problemas. Não quero também tampar o sol com a
peneira, dizer que sempre a gestão pública é boa, é perfeita, não tem falhas.
Mas eu acho que o risco da privatização é maior do que o risco de nós
investirmos e apostarmos na melhoria da gestão pública.
- Nos
últimos 20 anos tem havido uma tendência de tornar o sistema de saneamento
novamente público em vários lugares, seja por meio de contratos que foram
desfeitos, ou concessões que já acabaram e não foram renovadas. Teve
Paris, Jakarta, Buenos Aires. E aqui no Brasil estamos nesse movimento
contrário ao mundo. Há alguma interferência internacional ou são pressões
internas?
Eu não identifico muita interferência
internacional. Havia nos anos 1990, início dos anos 2000, muita pressão dos
financiadores internacionais para a privatização com o Banco Mundial, o Banco
Interamericano de Desenvolvimento, o BID, o Banco Asiático. A política deles
era: “eu só te empresto se você privatizar”. Isso mudou, mas não significa que
eles não sejam a favor ainda da privatização.
Tem havido alguns casos pouco transparentes
de empréstimos vinculados à privatização, como a pressão que o Banco Mundial
fez em Lagos, na Nigéria. No Brasil, eu não identifico muito essa pressão. Eu
tenho a impressão que é um movimento mais interno. Existe muito lobby das
empresas brasileiras para que se amplie a privatização.
A lei que inaugura, ou que fortalece a
privatização, é de 2020, a lei 14.026, que contou com uma pressão enorme das
empresas e uma adesão muito acrítica dos parlamentares, da Câmara, do Congresso
e do Senado. É importante também dizer que teve uma campanha feita pela
imprensa. A imprensa estampava, na época da aprovação da lei, que essa seria a saída
para universalizar os serviços, que não havia outra forma. Associado a essas
pressões, houve uma grande abertura do governo para que isso acontecesse por
meio do BNDES.
E você tem toda razão em dizer que estamos na
contramão das tendências internacionais. Parece que a maior parte dos países já
concluiu, depois de um período de experiência de gestão privada, de que não é
esse o caminho. Que a gente precisa mudar. Mas o Brasil não aprende com as
lições de outros países, infelizmente. Mesmo com governos tão ideologicamente
diferentes, como Bolsonaro e Lula, permanece a mesma lógica. Podemos dizer que
a política iniciada por Bolsonaro permanece e teve continuidade no governo
Lula.
- Uma
questão que está sendo também debatida são as formas de proteger as populações
mais pobres do aumento de tarifas. Aqui, a Compesa tem fixou um valor, no
começo desse ano, de R$ 27,47 por mês na conta de água e de R$ 54,94
mensais onde também há saneamento, o que, segundo a Compesa, dá um
desconto de 55% na conta. Como é que o senhor vê essa regulamentação sobre
a tarifa social com essa onda de privatizações?
O que Pernambuco está fazendo é cumprir a
lei. Tem uma lei nova que estabelece a tarifa social, a lei 14.898, do ano
passado, que fala que todos os inscritos no CadÚnico e beneficiários de Bolsa
Família e BPC têm direito à tarifa social. E que a tarifa social deve promover
um desconto de pelo menos 50% da tarifa normal. A Compesa está dando desconto
de 55%, um pouco mais.
Mas todas as empresas vão ter que se adequar
a essa lei. Não tem nenhuma novidade aí em termos de uma inovação, de uma
política social mais agressiva.É uma lei boa, melhor com ela do que sem ela,
mas poderia ser mais ousada.
Há dois aspectos na tarifa social que têm que
ser considerados. Um é o critério de inclusão. A inclusão via CadÚnico me
parece bom. Já há uma experiência acumulada de que é melhor ser por esse
critério e que seja de forma automática a aplicação, que não requeira que o
beneficiário solicite, porque muitos não estão bem informados. Então a lei dá
conta disso.
Outro aspecto é o desconto. O desconto de 50%
é um número cabalístico. Há populações que precisam ter um desconto de 99%. Eu
penso que num segundo momento vai ter que se discutir a estratificação dessa
população beneficiada por faixas de desconto, porque não estamos falando de uma
população carente que é homogênea. Tem heterogeneidade nessa população.
Ao dar o desconto de 55%, digamos, a 20% dos
usuários significa aumentar um pouco a tarifa dos que não têm o desconto, o que
em geral não é um impacto tão grande no sistema tarifário. Não é justo que a
prestadora de serviços seja onerada com a tarifa social, mas ela tem que fazer
o que nós chamamos de subsídio cruzado entre os diferentes usuários. Existe o
que nós chamamos de elasticidade na tarifa: quem mora em Boa Viagem pode pagar
um pouco mais na tarifa de água sem comprometer muito. Acho que as agências
reguladoras têm que trabalhar com essa elasticidade para compensar. Aumentar um
pouco a tarifa das indústrias, do comércio, também pode subsidiar a tarifa
social residencial.
- E
nessa nova onda de privatizações, já tem algum estudo, alguma comprovação,
se está havendo aumento de tarifa? Em geral, as tarifas estão aumentando
ou ainda é cedo para avaliar isso?
Ainda é um pouco cedo. Nós temos percebido,
pelo Ondas, alguns movimentos. No Rio de Janeiro, por exemplo, as empresas já
estão solicitando realinhamento tarifário, alegando que a tarifa não está sendo
suficiente para o investimento. Ainda está um pouco no início das concessões,
mas eu não tenho dúvida de que vai haver uma enorme pressão nas entidades
reguladoras, nas agências, para realinhar a tarifa. Primeiro porque uma parte
da tarifa tem que ser transformada em lucro.
As empresas, se não fizerem lucro, deixam de
ter razão de existir. Segundo, como falamos, para recuperar o valor da outorga.
E para justificar o investimento.
Os argumentos das empresas para aumentar a
tarifa vão ser muito sólidos. Vai ser muito difícil para as agências
reguladoras não permitirem esse aumento de tarifários. Eu acho que fatalmente
isso vai ocorrer. Já estamos percebendo alguma coisa, mas acho que vai
aumentar.
- Para
a concessão da Compesa ocorreram apenas duas audiências públicas, somente
uma no Recife. Lá, com o auditório da Federação das Indústrias do Estado
de Pernambuco (Fiepe) lotado e quase todos que pegaram o microfone foram
contra a concessão. Como o senhor vê a participação popular nessas
decisões?
A população é ouvida, mas o que ela fala não
é levado em consideração. As audiências públicas são problemáticas: acabam
sendo uma instância de legitimar decisões já tomadas. Eu vejo com preocupação.
Muitas vezes nem há mobilização da população, nem há interesse. Existe um
discurso na mídia de que o Estado é ineficiente e de que melhora com a
privatização. Talvez uma parcela grande da população tenha comprado essa
explicação. Uma esperança deveria ser a Assembleia Legislativa, haver alguma
reação, já que ela é a representante formal do povo, mas imagino que também o
Governo do Estado controle as decisões da Assembleia.
- O
mundo todo, e o Brasil em especial, está vivendo as consequências das
mudanças climáticas. Há uma imprevisibilidade maior de enchentes e de
secas. Como dar alguma resiliência aos sistemas de abastecimento de água
em meio a esses eventos extremos? Ao longo de 35 anos de concessões é
esperado que o clima fique ainda mais imprevisível, as licitações estão
incorporando os riscos das mudanças climáticas?
É uma pergunta interessante. O setor de
saneamento é muito conservador, não coloca na sua agenda o tema da mudança
climática. O que é um absurdo, porque uma das primeiras coisas que acontecem –
quando você tem seca, ou quando tem enchente, vamos lembrar aí do Rio Grande do
Sul – é o abastecimento de água ficar prejudicado.
E o esgoto também, porque pode haver
lançamento de mistura do esgoto na água da enchente. Poucos são os planos de
saneamento que incluem essa componente no planejamento. Com a privatização,
pior ainda, porque investir em medidas para se contrapor a mudanças climáticas
não significa aumentar a receita. É um investimento mais para garantir, como
você disse, resiliência, adaptabilidade dos sistemas. Por exemplo, se uma
empresa amplia a rede de água, ela vai aumentar a receita, vai ter novos
usuários. Se ela faz uma nova adutora ou um novo sistema de captação de água,
não aumenta. Então essa é uma preocupação. Quer dizer, o que precisa fazer para
confrontar a mudança climática? Primeiro é fazer uma análise muito adequada das
vulnerabilidades do sistema.
Segundo, em função dessa análise, eu gosto de
pensar em flexibilidade dos sistemas. Sistemas que dependem só de um manancial,
só de uma adutora, são muito mais frágeis. Se esse manancial é impactado pela
mudança climática, você pode ter toda uma população desabastecida.
Teve um exemplo que para mim é muito
emblemático, que foi em São Paulo, em 2014. A Sabesp não fazia investimentos.
Ao contrário, transferia dividendos, porque a Sabesp era uma empresa com
capital aberto. Então ela tinha 49% das ações na mão de acionistas privados e a
prioridade era transferir dividendos.
Houve uma seca enorme. Uma parte grande da
capital ficou sem água, porque um dos mananciais de São Paulo ficou com nível
muito baixo, não tinha como captar em uma seca muito forte. Como sempre, quando
isso acontece, são os pobres que são mais afetados.
No ano seguinte à seca, a Sabesp fez umas
obras interligando os diferentes sistemas de produção de água. De tal maneira
que se um sistema ficava sem água, você poderia transferir água de um para
outro. Foi uma solução muito inteligente, adequada. O sistema ganhou muito em
capacidade de resistir às situações de estiagem.
As mudanças climáticas precisam entrar na
equação do saneamento. E eu duvido muito que as empresas privadas vão priorizar
isso.
As licitações são baseadas nos planos de
saneamento. Na verdade, a concessão é para que o concessionário atenda o que o
plano prevê. Então os planos que deveriam incluir essas medidas, mas não
incluem. Em Sergipe, por exemplo, um dos erros do plano era que previa uma
adutora de 300 mil quilômetros, o que dá para dar a volta na Terra não sei
quantas vezes. Então, se cometem esse tipo de erro, vão se lembrar de pensar
nas mudanças climáticas? Enfim, um quadro muito triste, muito pessimista pela
frente.
Fonte: Marco Zero Conteúdo

Nenhum comentário:
Postar um comentário